Valores de uma nova civilização
05/02/2002
- Opinión
2o Fórum Social Mundial Porto Alegre 2002
Propomos, nestas páginas, alguns temas possíveis para o debate em torno da
questão: «Princípios e valores da nova sociedade». Não se tratam de axiomas, mas
de hipóteses de trabalho e sugestões de reflexão.
Nós, do Fórum Social Mundial, acreditamos em certos valores, que iluminam o nosso
projeto de transformação social e inspiram a nossa imagem de um novo mundo
possível. Aqueles que se reúnem em Davos - banqueiros, executivos e chefes de
Estado, que dirigem a globalização neoliberal (ou globocolonização) - também
defendem valores. Não devemos subestimá-los, pois eles acreditam em três grandes
valores e estão dispostos a lutar com todos os meios para salvaguardá-los até
guerra, se for preciso. Três importantes valores, contidos no coração da
civilização capitalista ocidental, na sua forma atual. Os três grandes valores do
credo de Davos: o dólar, o euro e o yen. Estes três não deixam de ter suas
contradições, mas, juntos, constituem a escala de valores neoliberal globalizada.
A principal característica comum destes três valores é a sua natureza estritamente
quantitativa: eles não conhecem o bem e o mal, o justo e o injusto. Conhecem
apenas quantidades, números, cifras: um, cem, mil, um milhão, um bilhão. Quem tem
um bilhão de dólares, euros ou yens vale mais do que quem tem só um milhão, e
muito mais do que aquele que só tem mil. E, obviamente, aquele que não tem nada,
ou quase nada, nada vale na escala de valores de Davos. É como se não existisse.
Está fora do mercado e, portanto, do mundo civilizado.
Juntos, os três valores constituem uma das divindades da religião econômica
liberal: a Moeda ou, como se dizia em aramaico, Mamon. As outras duas divindades
são o Mercado e o Capital. Trata-se de fetiches ou ídolos, objetos de um culto
fanático e exclusivo, intolerante e dogmático. Este fetichismo da mercadoria,
segundo Marx ; ou esta idolatria do mercado - para utilizar a expressão dos
teólogos da libertação Hugo Assmann e Franz Hinkelammert - e do dinheiro e do
capital, é um culto que tem suas igrejas (as Bolsas de Valores); seus Santos
Ofícios (FMI, OMC etc.) ; e a perseguição aos herejes (todos nós que acreditamos
em outros valores).
Trata-se de ídolos que, como os deuses cananeus Moloch ou Baal, exigem terríveis
sacrifícios humanos: no Terceiro Mundo, as vítimas dos planos de ajuste
estrutural, homens, mulheres e crianças sacrificados no altar do fetiche Mercado
Mundial e do fetiche Dívida Externa.
Um corpo impressionante da regras canônicas e princípios ortodoxos serve para
legitimar e santificar esses rituais sacrificiais. Um vasto clero de
especialistas e gestores explica os dogmas do culto às multidões profanas,
mantendo as opiniões heréticas longe da esfera pública. As regras éticas desta
religião são as já estabelecidas, há dois séculos, pelo teólogo econômico Sir Adam
Smith: que cada indivíduo busque, da maneira mais implacável possível, seu
interesse egoísta, sem prestar atenção a seu próximo, e a mão invisível do deus-
mercado cuidará do resto, trazendo harmonia e prosperidade a toda a nação.
Esta civilização do dinheiro e do capital transforma tudo em mercadoria - a terra,
a água, o ar, a vida, os sentimentos, as convicções -, que se vende pelo melhor
preço. Até as pessoas ficam submissas à mercadoria, pois subverte a relação
humanitária pessoa-mercadoria-pessoa. Visto esta camisa de algodão, que é uma
mercadoria, para humanizar minha convivência social, pois seria estranho que eu
comparecesse sem camisa no trabalho ou num encontro entre amigos. Agora, a
relação predominante é mercadoria-pessoa-mercadoria. A grife da camisa que visto
me imprime valor.
Em outras palavras, se chego à sua casa de ônibus ou bicicleta, tenho um valor Z.
Se chego de BMW, tenho um valor A. Sou a mesma pessoa e, no entanto, a mercadoria
que me reveste me imprime mais ou menos valor, reificando-me.
Já no século XIX, um crítico da economia política havia previsto, com lucidez
profética, o mundo de hoje: «Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os seres
humanos haviam considerado inalienável tornou-se objeto de troca, de tráfico e
pode alienar-se. É o tempo em que as coisas mesmas, que até então eram
comunicadas, mas nunca trocadas; dadas, mas nunca vendidas; conquistadas, mas
nunca compradas virtude, amor, opinião, ciência, consciência etc em que tudo,
enfim, passou para o comércio. É o tempo da corrupção geral, da venalidade
universal ou, para falar em termos de economia política, o tempo em que qualquer
coisa, moral ou física, tendo-se tornado valor venal, é levada ao mercado para ser
apreciada por seu valor adequado».
Valores qualitativos
Face a esta civilização da mercantilização universal, que afoga todas as relações
humanas nas « águas geladas do cálculo egoísta », o Fórum Social Mundial
representa, antes de tudo, uma recusa : « o mundo não é uma mercadoria » ! Isto é,
a natureza, a vida, os direitos do homem, a liberdade, o amor, a cultura, não são
mercadorias. Mas o FSM encarna também a aspiração a um outro tipo de civilização,
baseada em outros valores que não o dinheiro ou o capital. São dois projetos de
civilização e duas escalas de valores que se enfrentam, de forma antagônica e
perfeitamente irreconciliável, no umbral do século XXI.
Quais os valores que inspiram este projeto alternativo? Trata-se de valores
qualitativos, éticos e políticos, sociais e culturais, irredutíveis à
quantificação monetária. Valores que são comuns à maior parte dos grupos e das
redes que constituem o grande movimento mundial contra la globalização neoliberal.
Podemos partir dos três valores que inspiraram a Revolução Francesa de 1789 e,
desde então, estão presentes em todos os movimentos de emancipação social da
história moderna: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Como assinala Ernst Bloch
em seu livro Direito Natural e Dignidade Humana (1961), estes princípios,
inscritos pela classe dominante no frontão dos edifícios públicos na França, nunca
foram por ela realizados. Na prática, escrevia Marx, eles foram, muitas vezes,
substituídos por Cavalaria, Infantaria e Artilharia... Fazem parte da tradição
subversiva do inacabado, do ainda não-existente, das promessas que não foram
cumpridas. Possuem uma força utópica concreta, que « vai bem além do horizonte
burguês », uma força de dignidade humana que aponta para o futuro, para a « marcha
de cabeça levantada » da humanidade, para o socialismo. Se examinarmos de perto
estes valores, do ponto de vista das vítimas do sistema, descobriremos seu
potencial explosivo e sua atualidade no combate atual contra a mercantilização do
mundo.
O que significa « liberdade »? Antes de tudo, liberdade de expressão, de
organização, de pensamento, de crítica, de manifestação duramente conquistada
por séculos de lutas contra o absolutismo, o fascismo e as ditaduras. Mas,
também, e hoje mais do que nunca, a liberdade em relação a uma outra forma de
absolutismo: a ditadura dos mercados financeiros e da elite de banqueiros e
empresários multinacionais que impõem seus interesses ao conjunto do planeta. Uma
ditadura imperial sob a hegemonia econômica, política e militar dos Estados
Unidos, única superpotência global - que se esconde por detrás das anônimas e
cegas « leis do mercado », e cujo poder mundial é bem superior ao do Império
Romano ou dos impérios coloniais do passado. Uma ditadura que se exerce pela
própria lógica do capital, mas que se impõe com a ajuda de instituições
profundamente antidemocráticas, como o FMI ou a OMC, e sob a ameaça de seu braço
armado (a OTAN). O conceito de « libertação nacional » é insuficiente para dar
conta deste significado atual da liberdade, que é, ao mesmo tempo, local, nacional
e mundial, como o demonstra tão bem este movimento profundamente original e
inovador que é o zapatismo.
Uma das grandes limitações da Revolução Francesa de 1789 foi ter excluido as
mulheres da cidadania. A feminista republicana Olympe de Gouges, que escreveu a «
Declaração dos direitos da mulher e da cidadã », foi guilhotinada em 1793. O
conceito moderno de liberdade não pode ignorar a opressão de gênero que recae
sobre a metade da humanidade, e a importãncia capital da luta das mulheres por sua
libertação. Neste combate tem particular significado o direito das mulheres de
disporem de seu próprio corpo.
Igualdade e Fraternidade
O que significa « igualdade »? Nas primeiras Constituições revolucionárias
inscreveu-se a igualdade perante a lei. Esta é absolutamente necessária - e longe
de existir na realidade do mundo de hoje mas bem insuficiente. O problema de
fundo é a monstruosa desigualdade entre o Norte e o Sul do planeta e, dentro de
cada país, entre a pequena elite que monopoliza o poder econômico e os meios de
produção, e a grande maioria da população, que vive de sua força de trabalho -
quando não está no desemprego, e excluída da vida social. As cifras são
conhecidas: quatro cidadãos dos EUA Bill Gates, Paul Allen, Warren Buffett e
Larry Ellyson - concentram em suas mãos uma fortuna equivalente ao Produto Interno
Bruto de 42 países pobres, com uma população de 600 milhões de habitantes. O
sistema da dívida externa, a lógica do mercado mundial e o poder ilimitado do
capital financeiro levam a uma agravação dessa desigualdade, que se agravou nos
últimos 20 anos. A exigência de igualdade e de justiça social - dois valores
inseparáveis inspira os vários projetos sócio-econômicos alternativos que estão
na ordem do dia. Do ponto de vista de uma perspectiva mais ampla, isso implica um
outro modo de produção e distribuição.
A desigualdade econômica não é a única forma de injustiça na sociedade capitalista
liberal: a perseguição dos « indocumentados » na Europa ; a exclusão dos
descendentes de escravos negros e indígenas nas Américas ; a opressão de milhões
de indivíduos que pertencem às castas de « intocáveis » na Índia ; e tantas outras
formas de racismo ou discriminação por razões de cor, religião ou língua, são
onipresentes do Norte ao Sul do planeta.
Uma sociedade igualitária significa a radical supressão destas discriminações.
Ela implica também uma outra relação entre homens e mulheres, rompendo com o mais
antigo sistema de desigualdade da história humana - o patriarcado -, responsável
pela violência contras as mulheres, por sua marginalização na esfera pública, e
por sua exclusão do emprego. A grande maioria de pobres e desempregados no mundo
são mulheres.
O que significa « fraternidade »? É a tradução moderna do velho princípio judaico-
cristão: o amor ao próximo. É a substituição das relações de competição,
concorrência feroz, guerra de todos contra todos - que fazem do indivíduo, na
sociedade atual, um homo homini lupus (um lobo para os outros seres humanos) -,
por relações de cooperação, partilha, ajuda mútua, solidariedade. Uma
solidariedade que inclui só os irmãos («frater », em latim), mas também as irmãs,
e que supera os limites da família, do clã, da tribo, da etnia, da comunidade
religiosa, da nação, para se tornar autenticamente universal, mundial,
internacional. Em outras palavras: internacionalista, no sentido que deram a este
valor gerações inteiras de militantes do movimento operário e socialista.
A mundialização neoliberal produz e reproduz os conflitos tribais e étnicos, as
guerras de "purificação étnica », os expansionismos belicosos, os integrismos
religiosos intolerantes, as xenofobias. Tais pânicos induzidos pelo sentimento de
perda de identidade são o outro lado da mesma medalha, o complemento inevitável da
globalização imperial. A civilização com que sonhamos será "um mundo no qual
cabem muitos mundos" (segundo a bela fórmula dos zapatistas), uma civilização
mundial da solidariedade e da diversidade. Face à homogeneização mercantil e
quantitativa do mundo, face ao falso universalismo capitalista, é mais do que
nunca importante reafirmar a riqueza que representa a diversidade cultural, e a
contribuição única e insubstituível de cada povo, de cada cultura, de cada
indivíduo.
A democracia como valor imprescindível
Há outro valor que, desde 1789, é inseparável dos outros três: a democracia.
Não só no sentido limitado que este conceito político tem no discurso
liberal/democrático - a livre eleição de representantes cada tantos anos , na
realidade deformada e viciada pelo controle que exerce o poder econômico sobre os
meios de comunicação. Esta democracia representativa - também fruto de muitas
lutas populares, e constantemente ameaçada pelos interesses dos poderosos, como o
demonstra a história da América Latina de 1964 a 1985 é necessária mas
insuficiente. Necessitamos de formas superiores, participativas, que permitam à
população exercer diretamente seu poder de decisão e controle como no caso do
orçamento participativo do município de Porto Alegre e do estado do Rio Grande do
Sul.
O grande desafio, do ponto de vista de um projeto de sociedade alternativa, é
estender a democracia para o terreno econômico e social. Por que permitir, neste
campo, o poder exclusivo de uma elite que recusamos na área política? Uma
democracia social significa que as grandes opções sócio-econômicas, as prioridades
de investimentos, as orientações fundamentais da produção e da distribuição, são
democraticamente discutidas e decididas pela própria população, e não por um
punhado de exploradores ou pelas supostas « leis do mercado » (ou, ainda, variante
que já foi à falência, por um Birô Político onipotente).
A estes grandes valores, produto da história revolucionária moderna, devemos
acrescentar um outro, que é ao mesmo tempo o mais antigo e o mais recente: o
respeito ao meio ambiente. Encontramos este valor no modo de vida das tribos
indígenas das Américas e das comunidades rurais pré-capitalistas de vários
continentes, mas também no centro do moderno movimento ecológico. A mundialização
capitalista é responsável por uma destruição e envenenamento acelerados em
crescimento geométrico do meio ambiente: poluição da terra, do mar, dos rios e
do ar; « efeito de serra », com conseqüências catastróficas; perigo de destruição
da capa de ozônio, que nos protege das irradiações ultravioleta mortais;
aniquilamento das florestas e da biodiversidade. Uma civilização da solidariedade
não pode ser senão uma civilização da solidariedade com a natureza, porque a
espécie humana não poderá sobreviver se o equilíbrio ecológico do planeta for
rompido.
Socialismo como alternativa
Esta lista não tem nada de exaustiva. Cada um poderá, em função de sua
experiência própria e de sua reflexão, acrescentar outros. Como resumir em uma
palavra este conjunto de valores presentes, de uma forma ou de outra, no movimento
contra a globalização capitalista, nas manifestações de rua de Seattle a Gênova, e
nos debates do Fórum Social Mundial? Creio que a expressão civilização da
solidariedade é uma síntese apropriada deste projeto alternativo. Isto significa,
não só uma estrutura econômica e política radicalmente diferente, mas, sobretudo,
uma sociedade alternativa que valorize as idéias de bem comum, de interesse
público, de direitos universais, de gratuidade.
Proponho definir esta sociedade com um termo que resume, há quase dois séculos as
aspirações da humanidade a uma nova forma de vida, mais livre, mais igualitária,
mais democrática e mais solidária. Um termo que como todos os outros («
liberdade », « democracia » etc.) - foi manipulado por interesses profundamente
antipopulares e autoritários, mas que, nem por isso, perdeu seu valor originário e
autêntico: socialismo.
Em recente pesquisa de opinião pública brasileira, encomendada pela Confederação
Nacional das Indústrias ( !), 55% dos interrogados afirmaram que o Brasil
precisava de uma revolução socialista. Ao serem perguntados o que entendiam por
socialismo, responderam citando alguns valores: « amizade », « comunhão », «
partilha », « respeito », « justiça » e « solidariedade ». A civilização da
solidariedade é uma civilização socialista.
Para concluir: um outro mundo é possível, baseado em outros valores, radicalmente
antagônicos aos que dominam hoje. Mas não podemos esquecer que o futuro começa
desde agora: estes valores já estão prefigurados nas iniciativas que orientam o
nosso movimento hoje. Eles inspiram a campanha contra a dívida do Terceiro Mundo
e a resistência aos projetos da OMC ; o combate aos transgênicos e os projetos de
taxação da especulação financeira.
Estão presentes nos combates sociais, nas iniciativas populares, nas experiências
de solidariedade, de cooperação e de democracia participativa - desde o combate
ecológico dos camponeses da Índia, até o orçamento participativo do Rio Grande do
Sul; desde as lutas pelo direito de sindicalização na Coréia do Sul, até as greves
em defesa dos serviços públicos na França ; desde as aldeias zapatistas de
Chiapas, até os acampamentos do MST.
O futuro começa hoje e aqui, nessas sementes de uma nova civilização, que estamos
plantando em nossa luta, e com o nosso esforço de construir homens e mulheres
novos a partir dos valores subjetivos e éticos que assumimos em nossas vidas
militantes.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105700
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