Dia do trabalhador, tempo de desemprego

30/04/2002
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A Bíblia exalta o trabalho, ouvi da boca de professores de teologia. Comerás o pão com o suor do teu rosto nunca me pareceu um mérito. É castigo. Fomos criados, diz o Gênesis, para viver num paraíso. Devido ao nosso egoísmo, deixamos escapar a vida como dádiva. Ela passou a exigir-nos luta por conquistas. Expulsos do Jardim do Éden pelo anjo, fomos à cata de emprego, penalizados por haver trocado os frutos cedidos pelo fruto proibido. Como as pessoas, as palavras têm identidade. Numa multidão, todos os rostos se parecem. Ao prestar atenção a um deles e falar com aquela pessoa, descobrimos ali um ser singular. Assim são as palavras. Têm história. Trabalho vem de tripalium, instrumento de tortura feito de três paus. E salário de sal, gosto amargo. Inviável edificar uma civilização mediante tão amarga tortura. Então, as ideologias vieram em socorro, exaltando o valor do trabalho sem, no entanto, redimir o trabalhador. Prova disso os milênios de escravidão. Varredor que varres a rua, varres o reino de Deus, cantava dom Marcos Barbosa, sem jamais indagar quanto ganhava o varredor, se tinha carteira assinada e plano de saúde, morava em favela e mantinha os filhos na escola. Nos países socialistas, o trabalho revestiu-se de caráter idólatra. Basta ver os cartazes do realismo socialista, com trabalhadores exibindo músculos rígidos como as forjas, moldando o paraíso na Terra. Tudo desabou, tragado pela fissura aberta entre o mutirão produtivo e a centralização política. Socializou-se o fazer e não o poder. Saciou-se, em boa parte, a fome de pão, mas não a de beleza. Agora o neoliberalismo despe o trabalho de qualquer encanto. Na minha adolescência, faziam sentido termos como vocação, carreira, trabalho. Hoje, vocação é utopia; carreira, desafio; trabalho, luxo; emprego, tábua de salvação. Aliás, qualquer emprego, pois sem ele a pessoa se cobre de vergonha, desprovida de identidade social. Estar desempregado é, no mínimo, uma humilhação para quem tem saúde e disposição ao trabalho. O atual modelo de globalização afunila empresas e reduz postos de trabalho. O desemprego é uma tragédia mundial. Os salários são reduzidos e, graças à informatização, também o número de empregados. Hoje, uma pessoa de 40 anos é considerada velha para o mercado de trabalho. O mais grave é que os governos, com raras exceções, abraçaram a lógica canibal do sistema. Investem cada vez menos em políticas sociais e não têm projetos para evitar a multiplicação do desemprego. Querem combater a violência sem enfrentar a redução das desigualdades. E todo esse sacrifício em nome do progresso! Mas que progresso é esse que, na cauda de seus avanços técnicos e científicos, arrasta uma multidão de famintos e desamparados? Como proclamar que as coisas vão bem se, dos 6,1 bilhões de habitantes do planeta, 4 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza? No Brasil, além do crescente desemprego - índice que, na Região Metropolitana de São Paulo, subiu para 19,9%, o que significa 1,838 milhões de desempregados (Dieese) -, do aumento gritante de trabalhadores informais, dos 15 milhões de sem-terra, das crianças excluídas da escola pelo trabalho precoce, das fazendas com trabalho escravo, agora o governo decide flexibilizar a CLT. Sim, nossas leis trabalhistas são arcaicas. Precisam ser mudadas. Mas não para pior, favorecendo o sucateamento de nossa mão-de-obra e isentando as empresas de suas obrigações trabalhistas. As coisas ficarão melhores no dia em que o Produto Interno Bruto der lugar ao índice de Felicidade Geral da Nação. Então, a acumulação privada de riquezas cederá vez à disseminação coletiva de direitos. Filha da justiça, a paz brotará. E esses tempos em que vivemos serão evocados como um passado tenebroso, em que nenhum animal era visto em público padecendo fome, exceto o bicho homem e o bicho mulher, o que provocou horror em Manuel Bandeira. Frei Betto é escritor, autor da novela indianista Uala, o amor (FTD), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105823
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