O direito de morrer
18/07/2002
- Opinión
A aprovação pelo parlamento holandês da eutanásia está provocando
acaloradas discussões também entre nós. A questão é polêmica e permite
múltiplas posições. Queremos apresentar uma das posições, compartilhada
por significativo grupo de teólogos cristãos. Embora não gozem de
unanimidade, representam uma contribuição a ser considerada.
Há de se partir do fato de que a morte pertence à vida. E a vida pertence
à eternidade que é a realização plena das virtualidades da vida. Como
somos responsáveis pela nossa vida assim devemos . ser responsáveis
também pela nossa morte.
Temos direito a uma vida digna e também o direito de uma morte digna.
Esse direito muitas vezes nos é negado pelo fato de sermos obrigados a
ficar atrelados a aparelhos e a medicamentos que nos prolongam a vida no
sentido meramente vegetativo (chamamos a isso distanásia), o que é
insuficiente para a integralidade da vida minimamente humana.
A vida como auto-organização da matéria comparece como o fruto mais
elevado da evolução e, numa perspectiva espiritual, representa o maior
dom de Deus. Mesmo assim, como seres éticos, somos responsáveis pelo
comêco da vida e também responsáveis pelo fim da vida.
Outrora, as Igrejas relutavam em acolher o planejamento familiar, pois
imaginavam, erroneamente, que seria interferir no desígnio de Deus de
introduzir vidas no mundo. Hoje, as mesmas igrejas ensinam o
planejamento familiar responsável. Ensinam, outrossim, que todo ser
humano tem o direito de morrer humanamente. Cabe ao próprio ser humano,
mortalmente doente, decidir de forma qualificada sobre o prolongamento ou
não de seu estado irreversível. Na sua impossibilidade, ocupam o seu
lugar os familiares e os médicos.
Isso implica que o médico fará tudo para curar o paciente e
proporcionar os remédios para aliviar-lhe a dor. Não significa que deva
recorrer a tratamentos extraordinários para prolongar a vida ou
prostergar a morte, sobretudo, em situações limite. Uma terapia só tem
sentido quado se ordena à reabilitação e à restituição das funções
essenciais e vitais e não simplesmente garantir uma vida vegetativa.
Importa “deixar morrer”, o que não é a mesma coisa que “fazer morrer”.
O cuidado pelo doente não deve ser apenas coisa dos médicos e
enfermeiros, mas também dos familiares, dos conselheiros espirituais
(sacerdotes, pastores, rabinos, pais ou mães de santo etc) e dos amigos
próximos.
Devem ser respeitadas as convicções e as crenças religiosas do paciente,
especialmente ao sentido que dá à vida e à morte. Caso contrário lhe
fazemos violência, sempre, entretanto, no pressuposto de que a vida é o
bem supremo em nome do qual nenhuma visão, ideologia ou convicção
religiosa contrária, possa prevalecer.
Para o cristianismo - a religião da maioria do povo brasileiro - a morte
não é um fim mas um peregrinar para a Fonte originária de toda vida. Não
é um diluir-se na poeira cósmica mas um cair nos braços do Pai e Mãe
eternos que têm infinita saudade de seus filhos e filhas peregrinantes.
Estamos sempre nascendo e com a morte acabamos de nascer. Destarte, a
morte perde seu caráter de brutal interrupção do ciclo da vida para se
transfigurar numa passagem benaventurada para a plenitude da vida.
São Francisco, o primeiro depois do Unico, morreu cantando, agradecendo a
vida por tudo o que ela lhe proporcionara. Morrer é então fechar os
olhos para ver melhor, como disse José Marti, o maior dos cubanos. Ver o
sentido do universo e o nosso lugar no conjunto de todos os seres,
carregados pelo Mistério no qual mergulharemos.
Tais visões ajudam a humanizar a morte e a desdramatizar os casos
terminais. Pois não vivemos para morrer, como dizem os existencialistas,
mas morremos para ressuscitar, para viver mais e melhor, como crêem os
cristãos.
* Leonardo Boff é teólogo e professor emérito de ética da UERJ.
https://www.alainet.org/pt/articulo/106147
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