A entrega da cultura, da identidade e da soberania
31/07/2002
- Opinión
A maior parte da burguesia nacional, que combatíamos nos anos
rebeldes, foi à bancarrota e uma outra parte vive hoje dos
rendimentos de aplicações do capital obtido com a venda de seus
negócios a grupos empresariais estrangeiros.
"Abaixo a burguesia! Queremos pão e poesia!". Essa palavra de ordem
ainda ecoa em minha memória. Era das minhas prediletas. Diferenciava-
se das demais, também honestas e justas, porém pobres e repetitivas
como a singela e eterna "O povo, unido, jamais será vencido!".
Vivíamos o começo dos anos 70 e víamos no empresariado um inimigo,
que hoje percebemos quixotesco.
Lutávamos, sobretudo, por
justiça social, democracia e por um Estado de Direito - o que, em
absoluto, não é pouco. Ainda lembro do cheiro sufocante de fumaça e
gás lacrimogêneo, a insuportável ardência nos olhos. Ainda lembro do
som cadenciado das botas do pelotão de choque marchando no asfalto.
Lembro, com pavor presente, do amigo Celso, ao meu lado, cuspindo
sangue e alguns dentes: um cassetete da polícia acertara em cheio a
sua boca. Sinto ainda profunda tristeza e ausência quando lembro dos
amigos que "desapareceram". Assim tentamos, e seguimos tentando,
mudar as coisas. O país e o mundo eram bem diferentes, tínhamos a
energia e a vontade da mocidade. Agora, mais maduros, temos a razão.
A paixão, no entanto, se perdeu.
Sem dúvida, experimentamos hoje o exercício da (ainda não plena)
democracia. Espalha-se - contaminada por forte ranço autoritário, é
bem verdade - a melodia maledicente de que nos dias de hoje "até" a
polícia faz greve. A polícia, por sua vez, segue atuando como braço
armado do Estado. Continua descendo o cassetete (e por vezes tiros)
nas manifestações antiglobalização, nos sem-terra, nos sem-teto, nos
trabalhadores grevistas, nos marginais. Os menores infratores e os
pobres também seguem levando porrada. Quando teremos uma polícia
cidadã?
É curioso lembrar aquela época, quando estudantes e trabalhadores
ainda lutavam unidos por uma causa e os "inimigos" aparentes eram o
capital estrangeiro, a burguesia nacional e os militares. Os inimigos
já não são os mesmos e as aparências já não enganam mais. Hoje, os
militares estão em seu devido lugar (nos quartéis), a burguesia
nacional está em extinção e o capital estrangeiro monopoliza e
"sustenta" a economia. O prestigiado acadêmico que teorizava sobre a
dependência das economias periféricas é hoje o presidente do país.
Triste ironia. Tristes trópicos.
À revelia dos arroubos intelectuais do presidente sociólogo, o
receituário econômico prescrito pelo Consenso de Washington, adotado
à risca pelo governo, torna a economia brasileira de tal forma
dependente do capital externo que se tornou absolutamente temerário e
extemporâneo fazer qualquer discurso, que viesse a "pôr em risco"
esse pilar do capitalismo financeiro globalitário. Será mesmo? As
palavras e as idéias podem mesmo corroer os alicerces da nova ordem
mundial? O pensamento único, tal qual os dogmas religiosos, funciona
como um espantalho das idéias. O termo protecionismo tornou-se grave
palavrão e ofensa, exceto, é claro, quando flagrado em cláusulas
pétreas da política externa dos países líderes do mercado
globalizado, reunidos no G7. Nesses países, subsídios e
protecionismos comerciais são armas legítimas do Estado na
preservação de seus mercados. Nos países pobres, os chamados
"nacionalistas" devem deixar a barba de molho. Ou talvez fosse melhor
fazer a barba, cabelo e bigode. No reinado dos yuppies, a estética
rebelde pode soar passadista.
Não se sabe se por perplexidade ou servilismo estabeleceu-se cúmplice
e compungido silêncio na mídia nacional diante da progressiva (e
quase completa) desnacionalização da economia brasileira. Grupos
estrangeiros já compraram o "filé" das empresas estatais, as
indústrias e as empresas comerciais brasileiras - quase sempre com
incentivos governamentais, leia-se subsídios, diretos ou indiretos,
financiamentos e deságios generosos. A agricultura e agroindústria,
que alguns já chamam de agrobusiness, se esforça em preservar
competitivas, e nativas, suas commodities. A maior parte da burguesia
nacional, que combatíamos nos anos rebeldes, foi à bancarrota e uma
outra parte vive hoje dos rendimentos de aplicações do capital obtido
com a venda de seus negócios a grupos empresariais estrangeiros.
Vítima "inocente" dos juros estratosféricos e do dólar
sobrevalorizado, o câmbio aprisiona o país numa situação de iminente
insolvência graças a uma impagável dívida pública, que já não é assim
tão pública. O green gold encanta a eterna colônia com seu brilho
tentador.
A imprensa se omite diante de matérias de interesse nacional. As
empresas de comunicação (TVs, rádios, jornais, revistas etc.),
protegidas da pilhagem estrangeira por norma constitucional (art.
222), seguem céleres para o balcão de negócios do capitalismo
globalitário. Já saiu do forno de negociatas e lobbies dos salões e
gabinetes do Congresso Nacional, aprovadíssima em dois turnos, uma
proposta de emenda à Constituição que prevê a participação de capital
estrangeiro nos grupos de mídia. Era o que faltava. Onde irão parar a
cultura, a soberania e a identidade nacionais? Berlusconi será o novo
magnata da nossa mídia?
Não se trata de xenofobia ou nacionalismo. Creio ser necessário, pelo
menos, propiciar um amplo e maduro debate nacional, antes de
"entregar o ouro ao bandido" - e pensar que outrora expulsamos com
fúria cívica os portugueses e holandeses invasores. Qual é o motivo
dessa urgência em dilapidar o patrimônio nacional? É necessário
capitalizar a economia nacional, dirão alguns. Precisamos de
tecnologia de ponta - a TV digital vem aí! - dirão outros. Essa é a
sanha e a senha da voraz e estúpida globalização: o homem a serviço
do capital. Será que é mesmo necessário vendermos nossas empresas? O
empresariado nacional não tem condições ou competência para
desenvolver suas empresas e produtos? Não devemos nos preocupar em
preservar nosso mercado da sanha e da pilhagem globalitária?
Reflitamos sobre essas questões. Ou, como diria o bom e velho Raul
Seixas, ídolo autêntico daquela geração que deu seu sangue e suor por
um Brasil melhor nos idos de 70: "A solução pro nosso povo eu vou dar
/ Negócio bom assim ninguém nunca viu/ tá tudo pronto é só vim pegar/
a solução é alugar o Brasil! Nós não vamos pagar nada. Dá lugar pros
gringo entrar/ esse imóvel tá pra alugar. A Amazônia é o jardim do
quintal e o dólar deles paga o nosso mingau. Uau!". Negócio bom assim
ninguém nunca viu...
*Lula Miranda é economista e escritor. É também secretário de
Formação e Cidadania do SEEL - Sindicato dos Trabalhadores em
Editoras de Livros de SP.
https://www.alainet.org/pt/articulo/106192
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