Impactos da Alca na agricultura
14/08/2002
- Opinión
Dos nove grupos de negociação que se reúnem periodicamente para agilizar a
implantação Área de Livre Comércio das Américas (Alca), um trata
especificamente da questão da agricultura. Segundo o anódino texto de
apresentação deste grupo, sua missão principal é reduzir e, com o tempo,
igualar todas as taxas alfandegárias dos 34 países que integrarão este bloco
econômico. As regras a serem seguidas seriam as do Acordo Agrícola (AA)
negociadas na Organização Mundial do Comércio (OMC). O objetivo seria o de
liberalizar totalmente a circulação de produtos num continente que conta com
808 milhões de habitantes.
Na opinião da ativista canadense Maude Barlow, que acompanha atentamente as
rodadas de negociação da Alca, este grupo visa mesmo é limitar ao máximo o já
precário apoio dos governos locais aos pequenos e médios proprietários
agrícolas e aos trabalhadores rurais. Com isso, ele pretende fortalecer ainda
mais o poder do agro-business norte-americano e da agroindústria exportadora
dos países dependentes da região. Para ela, a Alca causará a falência de
milhões de lavradores latino-americanos, o aumento da dependência dos
produtos agrícolas dos EUA e colocará em grave perigo a própria segurança
alimentar dos povos do continente, reduzindo os estoques de emergência e
eliminando outras medidas de proteção à agricultura.
Mas não é só o Grupo de Negociação da Agricultura que ameaça os que vivem do
trabalho na terra. Uma outra comissão, a que trata dos “direitos de
propriedade intelectual”, também apresenta vários riscos para o futuro. Entre
outras medidas, ela pretende patentear todos os seres vivos – inclusive as
plantas utilizadas pelas comunidades locais. Com isso, esse grupo visa
auferir lucros com a industrialização destas culturas. Na verdade, todos os
nove grupos de negociação da Alca, que conspiram de maneira frenética e
sigilosa, acabaram afetando, direta ou indiretamente, os produtores rurais e
a agricultura dos países da região.
Falência e desemprego
Um livrete editado pela Via Campesina Brasil, que congrega ativos movimentos
rurais, como o MST e a Comissão Pastoral da Terra, apresenta de forma
bastante didática as principais “conseqüências da Alca para a agricultura
brasileira”. Conforme explica, o país é um importante exportador de produtos
agrícolas, como café em grão, soja, suco de laranja em tonéis, fumo em folha,
açúcar bruto, entre outros. Todos são produzidos pela agroindústria nacional,
que reúne os poderosos fazendeiros locais. Com a Alca, esta elite agrária
espera contar com maior apoio do Estado para as exportações. Desta forma, os
recursos públicos seriam ainda mais generosos para este setor abastado, que
pouco produz para o povo brasileiro.
No geral, a produção para o consumo doméstico, indispensável à alimentação
dos brasileiros, depende basicamente de pequenos e médios proprietários
rurais. Estes já contam com parcos recursos do Estado. Não possuem preços
mínimos para produzir e nem subsídios para estocagem, transporte, etc.
Geralmente, vivem endividados e na penúria. Com a vigência da Alca, este
cenário calamitoso tenderia a se agravar. O já precário apoio ao pequeno e
médio produtor rural seria reduzido, já que o grosso dos recursos públicos
seria transferido ainda mais para os setores exportadores. Além da falência
de milhões de lavradores e do desemprego dos trabalhadores rurais, a
tendência seria a de aumentar a crise de abastecimento no país.
Outra conseqüência natural será a do aumento da concentração de terras no
país. Principalmente a partir do governo FHC, investe-se na implantação do
modelo norte-americano das agroindústrias. Cada vez mais, elas são
responsáveis pela industrialização e padronização dos produtos, por seu
armazenamento e transporte a longas distâncias. O pequeno e médio agricultor
passa a ser apenas o produtor das matérias primas, que são repassadas às
agroindústrias antes de chegar à mesa do consumidor urbano. Este modelo gera
inúmeras distorções. Entre outras, reforça a monopolização no campo; agrava a
desnacionalização da agricultura (na agroindústria dos temperos, por exemplo,
apenas três multinacionais detêm o controle); restringe o acesso à terra do
pequeno lavrador; e altera e encarece o padrão tecnológico de produção.
Como alerta o livrete, “todos esses problemas deverão ser agravados com a
implantação da Alca, pois as grandes empresas norte-americanas que ainda não
atuam no mercado brasileiro, com a redução dos impedimentos e das barreiras,
vão se mudar para o Brasil. Por conseguinte, vai aumentar a concentração e
desnacionalização das agroindústrias. E, mais grave ainda, elas vão
transferir para o Brasil os setores que são muito poluentes, como os
frigoríficos, a suinocultura, bem como a indústria do papel e celulose”. Um
indício do que pode ocorrer no futuro é a recente instalação da multinacional
estadunidense Carols, que implantou no país um processo industrial que vai da
criação ao abate de suínos e conta com cerca de 30 mil criadeiras. Esse
investimento milionário contou com financiamento público do BNDES.
Outro fator que deverá fortalecer a agroindústria e, conseqüentemente, a
concentração de terras no país é o novo padrão tecnológico em expansão no
mundo capitalista. O modelo anterior, da chamada “revolução verde”, baseado
no uso de adubos, agrotóxicos e mecanização, dá sinais de esgotamento. Ele
atingiu o seu topo e não consegue elevar muito mais produtividade agrícola.
Por isto, está em curso a implantação de um novo padrão de produção, baseado
na biotecnologia, na manipulação genética, como mecanismo para elevar a
produtividade dos vegetais e animais e, desta forma, aumentar a lucratividade
das agroindústrias.
Ocorre que este modelo, sob o controle do capital, também produz graves
deformações no campo. Por um lado, ele reforça o monopólio do conhecimento.
Apenas dez grandes corporações empresariais, a maioria dos EUA, controlam o
setor da biotecnologia no planeta. Por outro, a manipulação genética, a
serviço do lucro, desenvolve experimentos perigosos à humanidade. Os
transgênicos – a combinação de genes de diferentes origens vegetais ou
animais – ainda não têm comprovação segura sobre os seus efeitos no meio
ambiente e no organismo humano. Mesmo assim, as multinacionais insistem em
mercantilizá-los.
“Com o processo da Alca, as empresas estão exigindo liberdade total para a
difusão e desenvolvimento das sementes transgênicas, mantendo-se em todos os
países latino-americanos o direito de propriedade privada destes novos seres
vivos”, denuncia o documento da Via Campesina. Isto explica o empenho do
governo dos EUA e das corporações norte-americanas, como a Monsanto, para
ampliar a lei de patentes no continente. No Brasil, esta lei foi aprovada em
1997 e atualmente existem 2.094 pedidos de registro de patentes de seres
vivos, a maioria solicitada por empresas estadunidenses. Agora, as
multinacionais conseguiram do servil FHC o envio de um projeto de lei que
libera totalmente o cultivo, o comércio e o consumo de sementes e produtos
transgênicos. Há indícios de que o projeto foi redigido pela Monsanto!
Vingando a Alca, apenas a agroindústria nacional e estrangeira teria acesso
às sementes patenteadas. Os pequenos e médios produtores rurais não teriam
como comprá-las, já que o seu custo seria acrescido de inacessíveis royalties
das corporações. Isto agravaria sobremaneira um processo que já está em
curso. Até 1997, por exemplo, a gigante norte-americana na biotecnologia, a
Monsanto, quase não tinha participação do mercado brasileiro de sementes de
milho. Em pouco tempo, após a entrada em vigor da lei de patentes, ela
comprou várias firmas nacionais e hoje controla 60% do mercado. Ela e outras
corporações já detêm o comércio de sementes híbridas do mamão, melancia,
hortaliças, etc. Esta brutal monopolização, além de levar à falência os
pequenos e médios produtores, é um atentado à soberania alimentar do Brasil.
Banquete neocolonialista
Mas o principal beneficiado da Alca, como reconhece o livrete, nem seria a
agroindústria exportadora do Brasil. Esta ficaria apenas com as migalhas
deste banquete neocolonialista. No essencial, este acordo visa fortalecer a
economia dos EUA, favorecendo a circulação das suas mercadorias e serviços.
Os produtos agrícolas norte-americanos, por exemplo, são altamente
subsidiados, contam com poderosa infra-estrutura (transporte, armazenagem,
etc) e larga vantagem tecnológica. Com o fim das barreiras alfandegárias,
eles invadiriam os mercados dos países do continente, arruinando as
agriculturas locais. O Brasil, com o seu elevado potencial produtivo, seria
uma das ou a principal vítima deste “livre comércio” na região.
Prova disto é que depois que a OMC aprovou acordos liberalizando o comércio
agrícola, em apenas três anos – de 1994 a 1996 – os EUA aumentaram suas
exportações em US$ 12 bilhões. A disputa entre estas duas economias tornou-se
mais desigual. O Brasil exporta por ano cerca de US$ 15 bilhões em produtos
agrícolas; já os Estados Unidos vendem algo em torno de US$ 55 bilhões. No
mesmo período em que a agricultura norte-americana expandiu suas exportações,
devastando os mercados da periferia, a política servil do governo FHC foi
responsável pelo aumento das importações e pela desestruturação de vastos
setores da nossa agricultura. Cerca de um milhão de estabelecimentos
agropecuários faliu no país entre 1985 e 1996, fruto da “abertura comercial”
de FHC. A Alca pretende consolidar este servilismo!
Ela também dificultaria ainda mais a presença brasileira no mercado mundial.
Atualmente, em função dos preços, do volume e da qualidade, o Brasil exporta
seus produtos agrícolas para vários continentes – 60% destinados à Europa,
24% para os EUA e 16% para Ásia e Oriente Médio. O país sempre contou com um
amplo potencial neste campo – território da dimensão continental, vastos
recursos naturais, clima propício à agricultura e um trabalhador laborioso. A
Alca pretende exatamente eliminar essa vantagem competitiva da economia
nacional. Visa subjugar a nossa agricultura, inibindo a sua democratização e
expansão. Ao igualar os preços agrícolas, ela beneficiará os produtos dos EUA
nos mercados dos outros continentes.
Apesar de toda a propaganda em favor do tal “livre comércio”, que embala hoje
a falaciosa Alca, o Brasil nada ganhou com as medidas liberalizantes
aplicadas pelos governos neoliberais de plantão. Em 1975, por exemplo, os
produtos agrícolas brasileiros representavam 7,27% do comércio mundial; já
depois dos reinados de Collor e FHC, hoje o país despencou para apenas 3,61%
no comércio mundial de produtos agrícolas. Embora o PIB agrícola brasileiro
seja de aproximadamente US$ 86 bilhões, incluindo o setor da agroindústria,
as nossas exportações atualmente atingem a medíocre cifra de US$ 15 bilhões
ao ano.
Diante destes fatos incontestáveis, até mesmo setores da agroindústria
nacional já duvidam dos benefícios da Alca. Durante algum tempo, nas
pesquisas realizadas por institutos empresariais, este agrupamento era um dos
poucos a afirmar que levaria vantagens com o “livre comércio”, ampliando suas
exportações. Mas esta ilusão durou até o presidente George W. Bush aprovar,
em maio passado, a nova Lei Agrícola dos EUA – a Farm Bill. Ela elevou ainda
mais os subsídios à agricultura norte-americana, concedendo quase US$ 180
bilhões para os próximos dez anos. Os efeitos desta medida protecionista são
devastadores, com a queda dos preços mundiais das commodities agrícolas e o
aumento da capacidade competitiva dos EUA.
A Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que reúne a nata da
agroindústria tupiniquim, sentiu o baque de imediato. Uma pesquisa
encomendada pela entidade, que ouviu 1.884 produtores, revelou que 97% dos
entrevistados estavam temerosos dos efeitos negativos da medida. “A mudança
da Lei Agrícola norte-americana trará expressivos impactos no mercado
agrícola mundial, afetando a rentabilidade das exportações brasileiras”,
garantiu o boletim oficial da CNA. O golpe foi tão violento que até o dócil
governo FHC foi obrigado a chiar. “As negociações da Alca ficaram muito
difíceis”, esperneou o ministro da Agricultura, Pratini de Moraes. Segundo
cálculos deste ministério, antes mesmo da Farm Bill, o Brasil já deixara de
exportar US$ 1,2 bilhão em soja em função das medidas protecionistas dos EUA.
Devastação no México
Para quem dúvida dos efeitos desastrosos da Alca e ainda tem ilusões com a
falácia do “livre comércio”, vale a pena conhecer um pouco a experiência do
Nafta, o acordo que reúne EUA, Canadá e México e que vigora deste 1994. Para
a agricultura mexicana, a mais frágil deste bloco econômico regional, os
impactos foram altamente destrutivos e regressivos. As próprias estatísticas
oficiais confirmam que houve aumento da concentração fundiária, falência de
pequenos e médios produtores rurais, explosão do desemprego de trabalhadores
rurais, violento êxodo para os centros urbanos e da migração para o exterior.
Hoje a agricultura do país está totalmente submetida à ditadura do agro-
business dos EUA.
Em 1982, o México importava US$ 790 milhões em alimentos. Já em 1999, após
cinco anos de vigência do Nafta, passou a importar US$ 8 bilhões! De país
exportador de vários produtos agrícolas, transformou-se num campo devastado.
Hoje é obrigado a importar dos EUA cerca de 50% de tudo o que consome. A
“livre competição” com a agricultura norte-americana, que goza de altos
subsídios e conta com uma base tecnológica mais avançada, foi fatal para o
México. Ele era um forte produtor de arroz, mas hoje depende da importação
deste produto dos EUA para alimentar a sua população. Também era exportador
de batatas, só que elas foram bloqueadas no mercado estadunidense através de
questionáveis barreiras fitosanitárias. O país também já foi um tradicional
exportador de algodão, mas hoje depende do produto made USA.
Sob o império do Nafta, a superfície agrícola plantada foi drasticamente
reduzida e, num curto prazo, cerca de 6 milhões de lavradores mexicanos
perderam suas terras e seus empregos! Muitos hoje residem nas favelas da
capital e dos demais conglomerados urbanos. Outros trabalham nas maquiladoras
da fronteira, recebendo míseros salários nestes novos “campos de
concentração”. Milhões também tentaram atravessar o Muro da Vergonha, que
separa o 3º do 1º Mundo, para realizar trabalhos precários nos EUA. Destes,
muitos já morreram na fronteira. E outros, como os indígenas e camponeses de
Chiapas, resistem ao império norte-americano e demonstram ao mundo os
malefícios do tal “livre comércio”.
* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da
revista Debate Sindical e organizador do livro “Para entender e combater a
Alca” (Editora Anita Garibaldi, 2002).
* João Pedro Stedile, é dirigente do MST e membro da Via Campesina Brasil
https://www.alainet.org/pt/articulo/106256
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