Crianças estudam fazendo rádio - relato de uma experiencia inovadora
29/07/2002
- Opinión
Um garoto de 9 anos, de classe média, acorda de manhã e liga o rádio.
Sem motivo aparente, ele afirma à mãe ao lado que o locutor está
falando mal, que deveria impor a voz e falar mais pausadamente. Diz
que o gênero do programa apresentado é jornalístico com prestação de
serviços
Depois, a mãe pergunta ao menino no intervalo do programa: "Como você
aprendeu tudo isso?" O garoto não se entrega ao questionamento e
continua ligado no intervalo do programa, explicando que a música da
propaganda é um jingle e que a propaganda seguinte é uma paródia
Logo depois, o garoto desliga o rádio e diz à mãe que o conteúdo do
programa abordou apenas um ponto de vista, que há um interesse em que
se destaque apenas o que é importante para certas pessoas, etc. A mãe
fica estarrecida e orgulhosa ao mesmo tempo
Estarrecida, talvez pela falta de conhecimento, porque o menino está
falando coisas que meninos da sua idade não falam, esquecendo-se de
que o filho foi criado junto aos meios tecnológicos de comunicação e
de que ela própria possui uma fita com as imagens do parto do mesmo
gravadas pelo pai-coruja. Orgulhosa porque o garoto desenvolto já
possui senso crítico aguçado e outras capacidades e que provavelmente
jamais será seduzido pelas idéias automatizadas do mundo dos adultos,
sem antes um questionamento e uma análise
Mais tarde, a mãe pergunta para o filho de onde vieram estas suas
idéias. O filho responde que está fazendo um curso de rádio e sai
para jogar bola no campinho, deixando a mãe boquiaberta. A mãe pensa:
"Sou uma mãe completamente desligada da vida do meu filho". A partir
daí, ela promete envolver-se mais com as atividades do filho.
Observa-o indo para o campinho jogar bola
Umas doze crianças, todas eufóricas, gritando, desorganizadas antes
da partida. O garoto chega e se impõe: "Vamos logo formar os times e
começar o jogo". Outro garoto, o "dono da bola", apresenta-se e com
ele tira par ou ímpar. Cada um escolhe um amigo para fazer parte de
seu time
Os times dividem-se. Cada um no seu campo
O garoto decide jogar na linha de frente como atacante. Em sua
cabeça, vem a imagem das arquibancadas lotadas, sua mãe no meio da
torcida gritando o seu nome, o batuque, as bandeiras e a cornetada
apoiando o espetáculo. O jogo começa e em sua cabeça lhe vem a
narração de um locutor de rádio. Quando percebe, já está fazendo a
locução em voz alta, enquanto o jogo está correndo e os seus amigos
se divertindo: "Lá vai Luisinho, toca a bola para Japa, que dá um
drible fantástico no Juarez! Minha Nossa Senhora, ele vai agora,
passa pelo goleiro e......Gooooooooooool! Gol do Dirceu! A torcida
vai à loucura! Os jornalistas ameaçam invadir o campo, querem logo
conversar com o craque! Fim de jogo! E que jogo! A torcida invade o
campo e o time adversário também comemora junto! É a festa do
futebol-arte, minha gente!" De repente, sua mãe o chama para tomar
banho e jantar. O garoto despede-se dos amigos e promete que amanhã o
espetáculo continua. A sua mãe pergunta: "E aí, meu filho, como foi o
jogo?" Ele responde como se fosse o craque do dia, imaginando-se na
frente das câmeras, todo orgulhoso, dando entrevista exclusiva para
uma emissora de TV: "É, o time jogou bem, mas o importante foi que
conseguimos a vitória e o respeito do time adversário. Agora, vou
para o vestiário...eh, eh"
Assim, a mãe fica toda orgulhosa perante o filho que a respeita e que
tem, entre outras qualidades, espírito de equipe, liderança,
comunicabilidade, saúde e auto-estima graças à comunicação. A mãe,
sem perceber, virou por alguns segundos uma repórter para o filho e
com ele interagiu. Talvez, nestes poucos segundos, a mãe tenha
conseguido ganhar a confiança de seu filho para sempre.
Com esta pequena história, posso ilustrar um pouco do que são os
projetos rádio-escola e vídeo-escola, que estão sendo implementados
nas escolas do município de Sorocaba. São projetos de educomunicação
com ótimos métodos e que valorizam o protagonismo juvenil,
desenvolvendo muitas capacidades nas crianças e nos adolescentes como
a imaginação, a oralidade, a audição, a criatividade, a
espontaneidade, a organização do pensamento, a disciplina, o
relacionamento humano, a visão de conjunto, a inteligência emocional,
a inteligência interpessoal e a liderança
Aqui, percebe-se que os meios de comunicação fazem parte do cotidiano
do garoto e que este é capaz de senti-lo e de reproduzi-lo na
linguagem radiofônica ou televisiva, mesmo que não tenha consciência
deste fato
No âmbito escolar, são projetos de inclusão social que fazem com que
todas as crianças se sintam participantes e opinantes na vida escolar
e comunitária. As crianças sabem utilizar e potencializar o uso dos
equipamentos de rádio e de vídeo para mostrarem seus próprios
programas, suas idéias, sua própria cultura, a cultura de seu bairro,
de sua escola, de sua família, etc., resgatando suas próprias
identidades
Os projetos enfatizam muito mais o processo de produção e a vivência
de suas etapas do que a estética final, pois é durante este que as
capacidades e as habilidades são desenvolvidas. Como no jogo do
garoto, não importam o vencedor e o resultado final, mas os momentos
felizes da atividade lúdica vivenciada no aprendizado
Os conteúdos disciplinares abstraídos em sala de aula também aparecem
nas produções de rádio e de vídeo, podendo ser utilizados pelos
professores como avaliação. É a emancipação da criança através da
educação participativa proporcionada pela postura comunicativa
O diálogo professor-estudante fica melhor, pois ambos aprendem e
compartilham da mesma linguagem, interagindo de forma natural. As
linguagens do rádio e do vídeo são compreendidas pelos professores,
pela comunidade e pelos estudantes durante as aulas práticas de
capacitação que incluem várias dinâmicas de grupo
Em determinado momento do processo, o professor vira aluno das
crianças e o aluno vira professor dos adultos, havendo uma troca de
diferentes saberes. O apoio da direção da escola, incluindo o projeto
em seu planejamento, e a união dos educadores são condições
fundamentais para o bom andamento deste no ambiente escolar. A
dimensão social dos projetos rádio-escola e vídeo-escola é grande, já
que a inclusão social dos participantes proporciona melhorias no
ambiente familiar, na sala de aula, na comunidade, no mercado de
trabalho, etc., criando, assim, os chamados ecossistemas
comunicativos que incluem espaços e atitudes propícios ao ato de
comunicar
A inserção de uma criança ou de um adolescente carente no projeto
ocupa o seu tempo ocioso, tirando-o da delinqüência e da violência,
resgatando a sua cidadania com o exercício da aprendizagem. Além do
mais, a partir do conhecimento adquirido, os jovens têm a
possibilidade de tornarem-se profissionais de comunicação em várias
áreas
Aplicando o conceito de gestão participativa, esta postura coletiva é
desenvolvida nestes projetos através da participação de todos os
envolvidos (professores, comunidade e estudantes) desde o
levantamento da pauta de uma produção de rádio ou de vídeo até a
avaliação para a melhoria do conteúdo e da forma final de
apresentação desta
Esta postura crítica e espontânea das crianças e dos adolescentes
deve ser estimulada, apoiada e incorporada durante toda a vida
adulta, fazendo com que estes se transformem em verdadeiros cidadãos
do mundo, multiplicadores do saber, repletos de sonhos, com voz e
atuação política
Tudo isto voltado para o desenvolvimento de uma sociedade brasileira
mais justa.
(*) Luís Renato Cruz Vieira de Andrade é sorocabano, administrador de
empresas, especialista em gestão de processos comunicacionais pela
Escola de Comunicações e Artes da USP, integrante da equipe do GENS
(Grupo de Ensino e Aprendizagem) que desenvolve o projeto rádio-
escola e vídeo-escola em escolas municipais de Sorocaba. Email:
vieira.sor@terra.com.br
https://www.alainet.org/pt/articulo/106569?language=en
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