A esperança como atitude crítica
19/03/2009
- Opinión
A esperança é uma das três virtudes teologais, ao lado da fé e do
amor. Rima com confiança, termo que deriva de fé: quem acredita,
espera; e quem espera, acredita. Esperar é confiar.
Vivemos um momento novo da história do Brasil. Com a eleição de Lula,
a esperança venceu o medo. O que será o governo petista ainda não
sabemos. Mas há a esperança de que priorize as questões sociais e
reduza significativamente as desigualdades que caracterizam o Brasil.
Para Jesus, a esperança se coloca lá na frente, no Reino de Deus, que
marca o fim e a plenitude da história, e não lá em cima, enquanto
postura verticalista de quem ignora a existência deste mundo ou a
rejeita. Hoje, a expressão Reino de Deus possui conotação vaga,
metafórica. Pode-se, porém, imaginar o que significava falar disso em
pleno reino de César... Não há dúvida da ressonância política do
termo, pois Jesus ousou anunciar um outro Reino que não o de César e,
por isso, pagou com a vida.
Hoje, a esperança tem conotação secular - a utopia. É curioso
observar que, antes do Renascimento, não se falava em utopia. Esta
resultou da dessacralização do mundo, da morte dos deuses e,
portanto, da necessidade de projetar ou visualizar o mundo futuro. Na
medida em que o ser humano, com o advento da modernidade, começou a
dominar os recursos técnicos e científicos que interferem no curso da
natureza e aprimoram a nossa convivência social, surge a necessidade
de antever o modelo ideal, assim como o artista que faz a escultura
traz na cabeça ou no papel o desenho da obra terminada. Como afirmou
Ernst Bloch, a razão não pode florescer sem esperanças, e a esperança
não pode falar sem razão (Karl Marx, Bolonha, 1972, 60).
O marxismo foi a primeira grande religião secular, capaz de traduzir
a esperança em sociedade ideal. Ele introduziu na cultura ocidental a
consciência histórica, a percepção do tempo como processo histórico,
a tal ponto que o ser humano passou a prefigurar sua existência, não
mais em referência aos valores subjetivos, mas ao devir, lutando
contra os obstáculos que, no ainda-não, impedem a realização do que
se espera como ideal libertador.
Para o cristão, a utopia do Reino supera as utopias seculares, sejam
elas políticas, técnicas ou científicas. Espera-se, neste mundo, a
realização plena das promessas de Deus o que plenifica e transfigura
o mundo. Assim, à luz dessas promessas elencadas na Bíblia, o cristão
mantém sempre uma postura crítica frente a toda realização histórica,
bem como diante dos modelos utópicos. O homem novo e o mundo novo são
resultados do esforço humano através do dom de Deus que, em última
instância, os conduzem ao ápice. Em outras palavras, quem espera em
Cristo não absolutiza jamais uma situação adquirida ou a ser
conquistada. Toda progressão é relativa e, portanto, passível de
aperfeiçoamento, até que a Criação retorne ao seio do Criador. Pois
Deus realiza progressivamente, na história humana, a sua salvação.
A esperança se baseia na memória. Quem espera, rememora e comemora.
Nosso Deus não é um qualquer do olimpo politeísta. É um Deus que tem
história e faz memória: Javé, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó. É essa
memória que alimenta a consciência crítica, consciência da diferença,
da inadequação, ao ainda-não. Pois a utopia cristã sustenta-se na
promessa de Deus. Por isso, a esperança cristã não teme o negativo,
as vicissitudes históricas, o fracasso. É uma esperança crucificada,
que se abre à perspectiva da ressurreição. Na esperança, nós já fomos
salvos. Ver o que se espera já não é esperar: como se pode esperar o
que já se vê? Mas, se esperamos o que não vemos, é na perseverança
que o aguardamos (Romanos 8, 24-25). Como diz a Carta aos Hebreus, a
fé é um modo de já possuir aquilo que se espera, é um meio de
conhecer realidades que não se vêem (11, 1). Se a fé vê o que existe,
a esperança vê o que existirá, dizia Péguy. E acrescentava: o amor só
ama o que existe, mas a esperança ama o que existirá... no tempo e
por toda a eternidade.
A esperança é o caminhar na fé para o seu objeto. A fé nos dá a
certeza de que Jesus venceu a morte; a esperança, o alento de que
venceremos os sinais de morte: a injustiça, o opressão, o preconceito
etc. Esse processo não é contínuo, pois somos prisioneiros da
finitude, embora trazendo a Infinitude em nossos corações. Por isso,
o caminhar é entrecortado de dúvidas e dores, conquistas e alegrias,
mas sabe que, se trilha as sendas do amor, tem Deus como guia.
* Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto - Autobiografia
Escolar" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/106643
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