Globalização e periferia: América Latina em perspectiva histórica
13/10/2002
- Opinión
O tema desta mesa reúne dois conceitos que pertencem a visões de mundo
distintas: globalização e periferia. Globalização nos fala da construção de um
espaço mundial único, que tenderia a se tornar cada vez mais homogêneo. O
principal agente dessa homogeneização seriam os fluxos mercantis. A idéia
básica é a de que, na medida em que as diferenciações de natureza política
forem sendo eliminadas, constituindo-se um espaço mundial sujeito às mesmas
regras, e na medida em que este espaço garanta completa liberdade de
movimentos para o capital, este tenderá a buscar, em maiores proporções, as
regiões que lhe oferecem maiores taxas de lucro. Como os países do Terceiro
Mundo detêm algumas vantagens comparativas, como mão-de-obra barata e recursos
naturais abundantes, no mundo globalizado e aberto eles conseguiriam atrair
investimentos mais do que proporcionais ao tamanho de suas economias. Para que
isso funcione, é claro, devem adotar regras estáveis e homogêneas, voltadas
para eliminar as "rugosidades" – para usar uma expressão de Marx – que
atrapalham os fluxos de capital. Daí a fácil associação do conceito de
globalização com as políticas de tipo neoliberal.
O conceito de periferia, por sua vez, não existe isoladamente. Quando
falamos em periferia, estamos implicitamente reconhecendo a existência de um
centro. Essa antítese nos fala de um mundo muito diferente, portador de uma
assimetria estrutural. Não é uma constatação nova. Mas, durante algum tempo,
prevaleceu nas ciências sociais a idéia de que o sistema-mundo tinha um centro
capitalista e uma periferia não capitalista, ou insuficientemente capitalista.
Portanto, para tornar-se cada vez mais parecida com os países centrais, a
periferia precisava de mais capitalismo. Essa visão foi superada há algumas
décadas, afirmando-se em seu lugar a idéia de que o capitalismo tinha de ser
visto como um todo. Em vez de caracterizar-se por uma ausência de capitalismo,
a periferia, ao contrário, formara-se justamente quando novas regiões do
planeta, e novos povos, foram incorporados este sistema. A formação do Brasil,
por exemplo, é a inserção deste espaço geográfico, e dos povos que vieram a
habitá-lo, no capitalismo comercial controlado pela Europa. Centro e periferia
pertencem, pois, ao mesmo sistema, e ambas as condições se repõem
dinamicamente. Essa visão de mundo aponta, pois, para outro tipo de
estratégia: as sociedades periféricas só podem superar esta condição se
realizarem mutações estruturais que não podem depender do mercado. Ao
contrário, demandam uma ativa atuação de agentes políticos.
São duas concepções diferentes. Se articularmos nosso pensamento em torno
da idéia de globalização, tenderemos a propor políticas de tipo neoliberal; se
o articularmos a partir do par centro-periferia, tenderemos a propor algum
tipo, maior ou menor, de ruptura com essa ordem assimétrica. Seria
interessante desenvolver o debate teórico entre essas duas visões. Mas o tema
da mesa nos impõe uma restrição. Ele fala da autodeterminação dos povos da
América Latina. Então, em vez de enveredar pela teoria, vou fazer uma
brevíssima recapitulação histórica do nosso continente, para chegar até os
dias atuais.
Adoto como ponto de partida os processos de independência, que formaram a
América Latina contemporânea e na maioria dos casos ocorreram, como todos
sabem, no início do século XIX. Eles deram lugar, desde o primeiro momento, a
duas realidades distintas. De um lado, surgiram repúblicas oligárquicas de
pequeno e médio porte onde existia a América espanhola; ali, quase sempre, a
independência se associou à abolição da escravidão. De outro lado, constituiu-
se um império unitário, de larga base territorial, onde existia a América
portuguesa, que veio constituir o Brasil; aqui, as relações escravistas
sobreviveram por quase setenta anos mais, a contar da independência.
Apesar dessa diferença, se olharmos o século XIX em perspectiva histórica,
podemos ver dois grandes processos comuns, que foram decisivos para aquilo que
nós viemos a ser no século XX. O primeiro é o fato de a América Latina ter
preservado sua independência política. Não retornamos mais à condição
colonial. Isso parece uma trivialidade, mas não é. Pois essa não foi a regra
geral. No século XIX, ao contrário, a África, o Oriente Médio e a Ásia – ou
seja, as outras três macrorregiões periféricas – sofreram processos de
colonização muito violentos, que marcaram decisivamente o que essas sociedades
são até hoje. O impasse africano atual decorre diretamente do recente passado
colonial, que gerou países artificiais, onde povos, nações e Estados não
coincidem. O Oriente Médio permanece sob ocupação militar. A Ásia, por sua
vez, ainda não terminou o seu ajuste de contas com aquele passado: a China e a
Coréia não completaram sua reunificação nacional; o Vietnã fez isso
recentemente, depois de décadas de luta, e ainda está se reconstruindo; o
contencioso entre Índia e Paquistão, que pode se desdobrar em um conflito com
armas atômicas, é uma herança do colonialismo inglês na região, e assim por
diante. Isso mostra como aquele processo de colonização foi decisivo para a
vida dessas sociedades durante todo o século XX, e até hoje.
A América Latina foi exceção, tornando-se a única região periférica do
mundo que manteve sua independência política. Mas, paradoxalmente, nesse mesmo
período consagramos nossa condição periférica. Podemos ver isso com clareza,
observando qual foi a agenda cumprida pela sociedade e o Estado brasileiros,
em comparação com o que se passava no centro do sistema-mundo. No século XIX,
duas grandes questões predominaram amplamente na vida política do nosso país:
até mais ou menos 1850, a atenção do nosso Estado nacional recém-constituído
voltou-se para a manutenção da unidade territorial; em seguida, até 1888,
tornaram-se preponderantes os impasses decorrentes do aberrante prolongamento
da escravidão.
Se olharmos para o centro do sistema-mundo, veremos algo muito diferente.
Os países que ocupavam o centro, bem como aqueles que lograram penetrar nele
no século XIX, fizeram basicamente três coisas: democratizaram o acesso à
terra, ou por meio de reformas agrárias (como ocorreu na Europa) ou por um
processo de ocupação territorial baseado na agricultura familiar (como nos
Estados Unidos); realizaram as revoluções educacionais, constituindo as
primeiras grandes redes públicas de educação de massas da história; e se
lançaram na industrialização pesada. Reformas agrárias, revolução educacional
e industrialização foi a agenda típica do centro do sistema-mundo no século
XIX. Quando olhamos o Brasil desse período, verificamos que em todos esses
pontos tivemos uma postura passiva ou negativa: realizamos uma contra-reforma
agrária com a Lei de Terras de 1850; durante todo o reinado de Pedro II, que
durou 60 anos, não inauguramos nenhuma escola pública; e não tivemos a
industrialização. Esse descompasso consagrou nossa condição periférica.
Superamos a escravidão no fim do século XIX, de maneira muito
conservadora, como todos sabem. Em seguida, já bem entrado o século XX,
concluímos o processo de definição do nosso grande território unificado.
Nossas últimas fronteiras foram estabelecidas por tratado em 1912. Caímos
então em enorme perplexidade, geradora de uma inquietação que se tornou aguda
na década de 1920. É nesse período que amadurecem as duas outras questões que
vão marcar a agenda brasileira no século XX. A primeira é a da construção da
nossa identidade: quem somos nós? Qual é o agente humano construtor desta
nação? Que povo é este? Que sociedade é esta? Ela poderá encontrar algum
caminho civilizatório próprio? Este era um conjunto de problemas não
resolvidos pelo Brasil, que até então só sabia mirar-se no espelho europeu,
constituindo assim uma identidade negativa de si mesmo, ou seja, uma
identidade de não-europeu. O outro problema que se coloca agudamente naquela
década é o da modernização. Ao reconhecer-se como um país atrasado, o Brasil
se vê diante desse um desafio que, naquele momento, se confundia com o da
industrialização.
Assim, olhando de novo em perspectiva histórica, o Brasil assume no século
XX uma nova agenda, marcada basicamente pela construção de sua identidade, que
vai gerar as idéias de uma cultura de síntese, de um povo mestiço, de uma
sociedade em construção, condenada pelo passado mas redimida pelo futuro – o
país do futuro. Viramos ao avesso os argumentos europeus, afirmando a
possibilidade de um projeto civilizatório nos trópicos, sem vocação imperial e
sem "raça pura". Nas ciências sociais, isso vai passar por Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado e outros, desdobrando-se até Florestan
Fernandes, Darcy Ribeiro, Milton Santos e Celso Furtado; nas artes, vai passar
por Villa-Lobos na música, por Portinari e Di Cavalcanti na pintura, por
Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e toda a moderna literatura brasileira, que
fala a língua do nosso povo e a eleva à condição de língua de cultura. Nesse
movimento, com grande esforço, construímos pela primeira vez os elementos
fundantes de uma identidade positiva, pois centrada essencialmente em nós
mesmos. Em paralelo, a partir da Revolução de 1930, fomos deixando de ser uma
grande fazenda de café. Também com grande esforço, chegamos em 1980 como a
oitava maior economia industrial do mundo. Produzimos uma enorme mutação –
quantitativa e qualitativa – no nosso sistema produtivo, acompanhada de duas
outras mutações estruturais: a urbanização e a integração do território.
Guardadas as especificidades de cada país, o nosso movimento histórico
tinha correspondência com o que se passava no restante da América Latina. Na
maior parte do continente, o século XX foi marcado pelas tensões decorrentes
da vontade de mudar – e por um certo otimismo. Tivemos as revoluções mexicana
e boliviana, que colocaram agudamente a questão da democratização da terra;
tivemos os ciclos desenvolvimentistas, que lograram construir algumas
economias semiindustrializadas; tivemos alguns momentos – notadamente em Cuba
e no Chile – em que a questão do socialismo foi colocada como um problema
prático. Na tentativa de ajustar as contas com aquele passado dependente e
desigual, movimentos presentes em todo o continente passaram a afirmar, com
crescente legitimidade, idéias de soberania, igualdade, justiça e identidade
cultural.
As últimas décadas do século XX representaram uma ruptura com esses
processos. As forças conservadoras, que sempre se mantiveram vivas e
poderosas, ganharam enorme proeminência, principalmente a partir do fim da
Guerra Fria e da vitória obtida pelo capitalismo em nível mundial. Ainda
durante as ditaduras militares, em alguns países, inauguram-se as políticas
neoliberais; em outros, elas são implantadas depois. A trajetória anterior foi
interrompida, uma nova foi instaurada. Para onde ela nos levou? Qual a
situação do continente hoje? É a de uma enorme crise. Não temos mais uma
agenda positiva. Não temos sequer agenda própria. Não nos sentimos mais
portadores de futuro nenhum. Apenas nos defendemos, se tanto, negociando os
termos da subordinação. A Argentina se desarticulou; a Venezuela está sendo
desestabilizada; a Colômbia marca passo, à espera de uma intervenção militar
direta da grande potência; o Equador desistiu até mesmo de ter moeda própria.
Bolívia, Peru, Paraguai, Uruguai vivem situações de crise. O Brasil vive uma
situação social dramática.
Aqueles processos estruturantes anteriores (a industrialização, a
construção da identidade cultural, etc), com todas as suas conhecidas
injustiças e limitações, deram lugar a outros processos, claramente
desestruturantes. Eis alguns deles: (a) em todo o continente os Estados
nacionais foram demolidos e desmoralizados; deixaram de ser agentes indutores
do desenvolvimento e organizadores das sociedades; tornando-se reféns do
sistema financeiro e desorganizadores das sociedades (hoje, em vez de
investir, desinvestem para fazer "superávit primário"!); (b) as moedas
nacionais começaram a ser abandonadas, uma a uma, com a dolarização aberta ou
ainda envergonhada, mas progressiva, das economias; (c) a base produtiva e os
recursos naturais sofreram um processo de desnacionalização galopante, de modo
que agentes externos voltaram a comandar as decisões fundamentais e a
determinar diretamente, sem mediações, nossa forma de inserção internacional;
(d) pela primeira vez na história, a grande potência começou a instalar-se
militarmente no coração do continente, montando bases no Equador, nas Guianas
e no Brasil (se o acordo de Alcântara for confirmado), além de preparar uma
intervenção direta, de conseqüências imprevisíveis, por meio do Plano
Colômbia; (e) com a criação da Alca, prevista para 2005, os espaços econômicos
nacionais serão formalmente extintos, eliminando-se qualquer possibilidade de
construção de um projeto latino-americano e nos integrando, de forma
subordinada, à futura área do dólar.
Se esse cenário não for revertido, a situação do continente terá sido
dramaticamente alterada já no fim desta década. Assim como certos processos
longos, que sintetizei acima, definiram o que viemos a ser nos séculos XIX e
XX, outros processos, potencialmente longos, estão definindo o que seremos nas
próximas décadas. Eis o paradoxo: a única região periférica que escapou de ser
recolonizada no século XIX está em via de experimentar um colonialismo tardio
que poderá retirá-la da história por muito tempo, em pleno século XXI. Falar
em retorno à condição colonial é muito mais do que uma metáfora. Continuaremos
tendo governos, é certo. Mas as colônias sempre tiveram governos. Nunca
tiveram inserção internacional soberana, controle sobre seu sistema produtivo,
moeda própria e forças armadas autônomas. É exatamente isso que nos estão
retirando.
Esta é a tendência dominante hoje. Mas ela não está consolidada. É objeto
de luta. E, dentro dessa luta, um país ocupa uma posição muito especial – o
Brasil –, pela sua continentalidade, seu nível de desenvolvimento, seu
potencial humano, técnico e cultural, sua insubstituível capacidade de
articulação regional. Estão sendo jogados agora os dados desse novo lance da
história. Entraremos no século XXI nos consagrando como uma região não só
periférica, mas radicalmente periférica, recolonizada, ou vamos construir uma
alternativa, na forma de um projeto continental independente, com presença
mundial? Ambas as opções têm uma contrapartida interna, pois assim como
dependência e desigualdade são dois lados da mesma moeda, a soberania só será
conquistada e sustentada se fizermos profundas reformas sociais e colocarmos o
povo brasileiro no comando de sua nação.
O que está em jogo não é pouca coisa. Exige lutadores e estadistas.
* César Benjamin integra a coordenação do Movimento Consulta Popular e é
autor de A opção brasileira (Rio de Janeiro, Contraponto Editora, 1998, nona
edição). Este texto é a transcrição de uma intervenção oral, realizada no
congresso da Unafisco Sindical em Belo Horizonte em 14 de outubro de 2002.
https://www.alainet.org/pt/articulo/106801?language=en
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