Quem acredita ainda?
07/02/2003
- Opinión
Para pessoas religiosas e espirituais os fatos nunca são apenas
fatos. Representam sinais, valores e mensagens de outra coisa. É
convicção destas tradições que o visível é parte do invisível, que o
real desborda dos nossos conceitos e que, por isso, é sempre maior
do que tudo o que podemos conhecer dele. Mais ainda, que as coisas
não estão jogadas ai arbitrariamente. Um fio sutil, às vezes visível,
na maioria das vezes, invisível une a todas elas, fazendo que surja
um todo orgânico, contraditório e complementar. Tudo é como um
bordado, feito de um emaranhado bizarro de fios. Mas perpassa um
sentido secreto que ordena todos os fios, impedindo que a realidade
se faça absurda e caótica. Empiricamente vemos o emaranhado dos fios,
mas o seu reverso, porém, forma uma rosa esplêndida. É próprio da
leitura espiritual do mundo ver no emaranhado caótico o que, à
primeira vista, não se vê, a rosa esplêndida.
Em outras palavras, nada no mundo é fortuito e desgarrado de um
sentido secreto. Já dizia Goethe, "tudo não é senão um sinal". E
nosso poeta maior Fernando Pessoa: "Ah, tudo é símbolo e analogia / o
vento que passa, a noite que esfria / são outra coisa que a noite e o
vento - sombra de vida e de pensamento / tudo o que vemos é outra
coisa". Ou ainda o poeta e místico inglês William Blake: importa"ver
o mundo num grão de areia/ e o céu numa flor silvestre/ conter o
infinito na palma da mão/ e a eternidade numa hora".
Por que dizemos tudo isso? Porque estamos na iminência de uma guerra
devastadora movida pela potência belicista maior do mundo contra um
paisinho, o Iraque, governado, certamente, por um tirano sanguinário,
assolado pelas consequências nefastas de anos de embargo comercial,
até sobre remédios. Se fosse um produtor de tâmaras ou de laranjas
ninguém se incomodaria com ele, mesmo que tivesse algumas armas de
destruição em massa, fornecidas pela potência que agora o quer
destruir. Mas ele é o segundo maior produtor de petróleo do mundo,
sangue da máquina industrialista moderna, sem a qual ela pára.
Grande parte da humanidade, com seus melhores líderes,se insurge
contra essa guerra covarde e sem qualquer proporção. Segundo o Comitê
de Emergência da ONU, essa guerra tecnológica deverá sacrificar 500
mil pessoas, ferir dois milhões e provocar 3 milhões de refugiados.
Nesse preciso contexto, há dias, se desintegrou no espaço o ônibus
espacial Columbia, num mar de fogo e de fumaça,vitimando seus 7
triupulantes, coisa que comoveu o mundo inteiro. Lastimável tragédia.
Mas não seria ela um sinal para os EUA e para o Presidente Bush,
chamado por Noam Chomski, de "cowboy de gatilho fácil"? Milhares de
bombas cairão de aviões a 16 mil metros de altura, matando milhares
de civis, sobre os quais Bush não chorará, porque são do eixo do mal
e muçulmanos. Bush alardeia ser um homem de fé, portanto, capaz de
ler nos fatos, sinais, apoiado por 14 mil igrejas evangélicas que o
convencem a lutar contra o anti-cristo, personalizado em Saddam
Hussein. Será que a tragédia do Columbia não é um sinal do céu? Mas
quem acredita ainda nisso? Seguramente Bush não. Nós acreditamos
segundo todas as escrituras pagãs e cristãs.
* Leonardo Boff, Teólogo
https://www.alainet.org/pt/articulo/106909
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