Um liberalismo imperial
28/03/2003
- Opinión
Como uma sociedade fundada no liberalismo pode gerar um monstro
imperial como se revelam hoje de corpo inteiro os Estados Unidos? É
uma árdua tarefa para os liberais, de que eles não podem se furtar.
Porque não se trata de um governo imperial, mas de um sistema de
poder, fundado em grandes corporações - de armamentos, de petróleo,
da mídia - que se articulam em torno de um Estado imperial.
Nenhuma sociedade se jacta tanto de fundar-se sobre a liberdade como
a norte-americana. "Nenhuma idéia é mais fundamental para o sentido
que os norte-americanos tem de si mesmos como indivíduos e como nação
do que a liberdade" – diz o ensaista Eric Froner, em seu "A história
da liberdade norte-americana". "Os Estados Unidos foram escolhidos
por Deus para o maior experimento na história humana, a realização da
liberdade, e sua expansão é parte integrante desse destino
providencial."
Mas de que liberdade de se trata? E liberdade de quem?
Da liberdade dos indivíduos, daqueles a quem o Estado pretende
assegurar não os direitos, mas as oportunidades. Em outras palavras,
se trata do indivíduo no mercado e não do cidadão. Porque este é
definido como sujeito de direitos e nada foi tão expropriado nos EUA
nas duas últimas décadas do que os direitos, no mesmo momento em que
se jactam os norte-americano de promover mais do que nunca na sua
história a liberdade individual.
Porque o império desse indivíduo é ao mesmo tempo o império do
mercado, que os EUA são a sociedade mais injusta e mais desigual
entre aquelas do centro do capitalismo. São os EUA, ao mesmo tempo,
a sociedade capitalista mais bem lograda, aquela em de forma mais
extensa se desenvolveram as relações de mercado, aquele em que de
forma mais ampla tudo se vende e tudo se compra, tudo é mercadoria.
E por isso mesmo, aquela em que os direitos se retraem de maneira
mais profunda entre as metrópoles capitalistas.
Quando essa sociedade, articulada e unida em torno do seu Estado, se
constitui como o mais poderoso poder imperial da história da
humanidade e se proclama o direito de atuar unilateralmente para
decidir quem é culpado do que, de que forma deve ser punido, por que
tipo de governo deve ser substituído, como devem ser geridas suas
riquezas, sem consultas nem legalidade a ser obedecida - o
liberalismo revela sua face egoísta de forma superlativa, o mercado
demonstra sua arrogância autosuficiente para decidir o destino das
pessoas, os negócios assumem o poder e mostram como o dinheiro
termina mandando quando as relações mercantis predominam sem
contrapeso.
A guerra de ocupação atual dos EUA contra o Iraque demonstra essa
face na sua forma mais pura, com o objetivo declarado de se apropriar
de um país, dominar suas riquezas, impor-lhe suas formas de vida e de
organização social e política e destruir sua civilização. Se for
coerente com esse projeto, terão os EUA que buscar até mesmo a
destruição do islamismo como religião, para substitui-lo pelas suas
crenças protestantes e seu espírito calvinista, para completar sua
missão imperial.
Cobrou-se, com razão, dos marxistas, a explicação de como os ideais
libertários de Marx puderam se transformar no projeto da União
Soviética. Vários explicações foram elaboradas, e apesar de sua
forma ainda não sistemática, dão contra, no essencial, de como se deu
essa transformação e resgatam os ideais de Marx.
Trata-se agora, para os liberais, de dar conta obrigatoriamente, de
como a sociedade que mais realizou os ideais liberais, que fundiu de
maneira mais estreita democracia liberal e economia capitalista de
mercado, desembocou na monstruosa realidade dos EUA de hoje e de seu
projeto imperial. Aos liberais a palavra e a árdua e inglória
tarefa.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107193
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