A justa medida que nos falta
29/05/2003
- Opinión
A cultura imperante é em tudo excessiva. Não tem o
sentido da auto-limitação nem o senso da justa medida.
Por isso está em crise, perigosa para o seu próprio
futuro. O desafio é: qual é justa medida que preserve o
capital natural e a sobrevivência? A justa medida é o
ótimo relativo, o equilíbrio entre o mais e o menos. Por
um lado, a medida é sentida negativamente como limite às
nossas pretensões. Daí nasce a vontade e até o prazer de
violar o limite. Por outro, é sentida positivamente como
a capacidade de usar, de forma moderada, as
potencialidades para durarem mais. Isso só é possível,
quando se encontra a justa medida
As culturas da bacia mediterrânea, de onde viemos,
egípcia, grega, latina e hebraica, postularam sempre a
busca da justa medida. Essa era e é também a preocupação
central do budismo e da filosofia ecológica do Feng-Shui
chinês. Para todas, o símbolo maior era a balança e as
respectivas divindades femininas, tutoras da justa medida
A deusa Maat dos egípcios cuidava para que tudo fluisse
equilibradamente
Mas os sábios egípcios cedo entenderam que a justa medida
exterior só se alcança a partir da justa medida interior.
Sem a convergência da Maat interior com a exterior
perdemos a justa medida, vale dizer, o equilíbrio e nos
mostramos destrutivos
Uma das características fundamentais da cultura grega foi
a busca insaciável da medida em tudo ("métron"). Clássica
é a formulação:"méden ágan", "nada em excesso"
A deusa Nêmese venerada por gregos e latinos,
representava a justa medida na ordem divina e humana.
Todos os que ousassem ultrapassar a própria medida
(chamada de hybris=auto-afirmação arrogante) eram
imediatamente fulminados por Nêmese. Assim os campeões
olímpicos que, semelhante aos dias atuais, se deixavam
endeusar pelos fãs ou os filósofos e os artistas que
permitiam a excessiva exaltação de suas vidas e obras
A Bíblia hebraico-cristã funda a medida justa no
reconhecimento do limite intransponível entre Criador e
criatura. A criatura jamais será como Deus
Essa era a pretensão de nossos ancestros no paraiso
terrenal. Imaginavam que o conseguiriam caso comessem do
fruto proibido. Comeram dele, ultrapassaram o limite
imposto, não viraram Deus e foram expulsos do paraíso.
Pecado é recusar o limite, é não reconhecer a condição de
criatura. Apesar da expulsão, permaneceu o imperativo da
justa medida na forma do "cultivar e guardar" o jardim do
Eden, vale dizer, de viver a ética do cuidado. Por detrás
de "cultivar" ressoa sempre "culto" e "cultura" que
sinalizam o trato respeitoso da Terra (culto). E por
detrás de "guardar", o aproveitamento sustentável de seus
recursos para atender necessidades humanas e não para
fins de acumulação. Na linguagem bíblica, ser "imagem e
semelhança de Deus" significa ser o representante e o
lugar-tenente de Deus no meio da criação. Como tal, deve
prolongar o ato criador divino, criando também com a
mesma benevolência com que Deus criou toda as coisas ("e
viu que tudo era bom"). O efeito final das intervenções,
sob a justa medida, é a cultura, como hominização e
humanização da natureza
Aprendamos dos antigos como sanar a crise civilizacional:
vivendo sem excesso, na justa medida e no cuidado
essencial para com tudo o que nos cerca.
* Leonardo Boff Teólogo
https://www.alainet.org/pt/articulo/107608
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