O ethos que cuida
24/07/2003
- Opinión
Quando amamos, cuidamos e quando cuidamos amamos. Por isso o ethos
que ama se completa com o ethos que cuida. O "cuidado" constitui a
categoria central do novo paradigma de civilização que forceja por
emergir em todas as partes do mundo. A falta de cuidado no trato
da natureza e dos recursos escassos, a ausência de cuidado com
referência ao poder da tecnociência que construiu armas de
destruição em massa e de devastação da biosfera e da própria
sobrevivência da espécie humana, nos está levando a um impasse
sem precedentes. Ou cuidamos ou pereceremos. O cuidado assume uma
dupla função: de prevenção a danos futuros e de regeneração de
dados passados. O cuidado possui esse condão: reforçar a vida,
zelar pelas condições físico-químicas, ecológicas, sociais e
espirituais que permitem a reprodução da vida e de sua ulterior
evolução. O correspondente ao cuidado em termos políticos é a
"sustentabilidade" que visa encontrar o justo equilíbrio entre o
benefício racional das virtualidades da Terra e sua preservação
para nós e as gerações futuras. Talvez aduzindo a fábula do
cuidado, conservada por Higino (+17,d.C.), bibliotecário de César
Augusto, entendamos melhor o significado do ethos que cuida.
"Certo dia, Cuidado tomou um pedaço de barro e moldou-o na forma
do ser humano. Nisso apareceu Júpiter e, a pedido de Cuidado,
insuflou-lhe espírito. Cuidado quis dar-lhe um nome, mas Júpiter
lho proibiu, querendo ele impôr o nome. Começou uma discussão
entre ambos. Nisso apareceu a Terra alegando que o barro é parte
de seu corpo e, que por isso, tinha o direito de escolher um nome.
Gerou-se uma discussão generalizada e sem solução. Então todos
aceitaram chamar Saturno, o velho deus ancestral, para ser o
árbitro. Este tomou a seguinte sentença, considerada justa: Você,
Júpiter, deu-lhe o espírito, receberá o espírito de volta quando
essa criatura morrer. Você, Terra, que lhe forneceu o corpo,
receberá o corpo de volta, quando esta criatura morrer.E você,
Cuidado, que foi o primeiro a moldar a criatura, acompanha-la-á,
por todo o tempo em que viver. E como vocês não chegaram a nenhum
consenso sobre o nome, decido eu: chamar-se-á homem que vem de
humus que significa terra fértil".
Essa fábula está cheia de lições. O cuidado é anterior ao espírito
infundido por Júpiter e anterior ao corpo emprestado pela Terra. A
concepção corpo-espírito não é, portanto, originária. Originário é
o cuidado "que foi o primeiro a moldar o ser humano". O Cuidado o
fez com "cuidado", zelo e devoção, portanto, com uma atitude
amorosa. Ele é, anterior, o a priori ontológico que permite o ser
humano surgir. Essas dimensões entram na constituição do ser
humano. Sem elas não é humano. Por isso se diz que o "cuidado
acompanhará o ser humano por todo o tempo em que viver". Tudo que
fizer com cuidado será bem feito.
O ethos que cuida e ama é terapêutico e libertador. Sana chagas,
desanuvia o futuro e cria esperança. Com razão diz o psicanalista
Rollo May:"na atual confusão de episódios racionalistas e
técnicos, perdemos de vista o ser humano. Devemos voltar
humildemente ao simples cuidado. É o mito do cuidado, e somente
ele que nos permite resistir ao cinismo e à apatia, doenças
psicológicas de nosso tempo".
* Leonardo Boff. Teólogo.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107960
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