Os santuários do mercado
01/01/2001
- Opinión
A degradação do centro das nossas cidades foi um dos
passos mais importantes para a privatização da vida das
pessoas. Os centros das cidades eram realmente "centros",
para onde todos iam, donde se cruzavam todas as classes
sociais, circulando por suas praças, suas ruas,
freqüentando seus cinemas e seus teatros. Esse centro era
parte integrante da identidade das cidades, interiorizada
pelas pessoas que, ao freqüenta-lo, se sentiam cidadãos,
pessoas da cidade.
"Íamos ao centro" das cidades desde os bairros – como
recorda a ensaísta argentina Beatriz Sarlo, autora dos
melhores análises sobre o fenômeno - como uma atividade
especial, nos feriados e dias festivos, em passeios
noturnos, para fazer compras, para ver paradas militares
ou alguma festa como o carnaval ou apenas para estar no
centro – o que se justificava por si mesmo.
Esses "centros" deixaram de existir, como um processo
simultâneo de degradação das zonas centrais das cidades e,
ao mesmo tempo, de fragmentação desses espaços, dispersos
e segmentados conforme rígidas estratificações sociais. É
como se a estratificação social, que já existia na
diferenciação dos bairros residenciais, desarticulasse o
centro – único espaço de convivência de todos -, se
projetasse para esse centro, relegando-o aos mais pobres –
que insistem em viver em casas deterioradas no centro,
porque menos longe dos seus locais de trabalho, evitando
assim as dificuldades de transporte. O comércio, os
cinemas, todos os serviços assumem segmentação de classe
diferenciadas. Nada melhor representa esse movimento de
transformação profunda no cenário e na distribuição
espacial das nossas cidades do que o surgimento e a
proliferação dos "shopping centers".
Eu pude visitar uma capital de um estado brasileiro
pouco tempo antes da inauguração do primeiro shopping
center e logo em seguida à aparição dele e constatar as
rápidas e brutais transformações impostas à paisagem
urbana e à convivência entre as pessoas por essa novidade
radical. Deslocou-se imediatamente do centro da cidade
para o shopping a circulação da classe média e das camadas
mais ricas da população, que passaram a freqüentar seus
cinemas e suas lojas, seus bancos e seus restaurantes. O
comércio, por sua vez, teve seu cenário totalmente mudado,
com a desaparição das lojas locais, substituídas pelas
marcas globalizadas. Ao mesmo tempo, os cinemas do centro
entraram em crise, passaram a projetar filmes
pornográficos ou simplesmente fecharam tornando-se vários
deles igrejas evangélicas. As praças se deterioraram
rapidamente, povoadas em grande parte por camelôs e
mendigos.
Hoje, como diz Sarlo, a paisagem de uma cidade como
Los Angeles já não é tão estranha para nós como foi há
poucas décadas, porque nossas cidades entraram no que se
pode chamar de processo de "angelinização". As cidades
ficaram menores, não porque tenham deixado de crescer, mas
porque uma fração mais seleta de gente circula muito
menos, já não "vai ao centro", permanecendo nos seus
bairros, mais limpos, assépticos em alguns casos, com
policiamento, iluminados.
O fator que acelerou essas transformações e produziu
um novo mapa urbano nas nossas cidades foram os shopping
centers, que mantiveram a palavra "centro", só que
alterando profundamente sua conotação. De centro da
cidade, cruzado por todas as classes sociais, passou a ser
centro do "shopping", das "compras", do "mercado", que já
não inclui, mas, ao contrário, exclui, seletivamente, aos
mais pobres. Na sua própria estrutura arquitetônica, o
shopping center é uma espécie de simulacro da cidade em
miniatura, em que todos os extremos são anulados: o mal
tempo, os ruídos, o claro-escuro, os monumentos, os
espaços vazios, os graffitis, os monumentos, os posters,
assim como a diversidade social urbana.
Nas palavras de Beatriz Sarlo, a essa paisagem urbana
tão diversa, o shopping center opõe "sua proposta de
cápsula espacial acondicionado pela estética do mercado".
Porque disso se trata: de um mundo regido rigorosamente
pelas leis do mercado, onde tudo se compra, tudo se vende,
onde tudo é mercadoria, em que tudo é acondicionado
conforme a lógica da venda, da conquista do consumidor –
porque a população do shopping center é composta por
consumidores e não por cidadãos, isto é, sujeitos de
direitos. Daí sua seletividade – só entram os potenciais
compradores, selecionados por seu poder de compra.
Entrar num shopping center é sair da sua cidade, do
seu país, da sua sociedade, para entrar num fragmento de
um universo globalizado cujos outros componentes estão em
Miami, em Tóquio, em Sidney. Um marciano que desembarcasse
num shopping center só conseguiria localizar o país a que
chegou pelo tipo de moeda e pelo idioma, de tal forma
estaria mergulhado num espaço uniforme, sem qualidades,
repleto de mercadorias com as mesmas marcas que em outros
espaços similares – Fiorucci, McDonalds, Kenzo. A
temperatura é similar, as luzes são as mesmas, a
distribuição dos espaços é igual em todos os shopping
centers. A organização dos espaços é, como em todos eles,
feita para uma abstração total do mundo exterior e até
mesmo dos espaços exteriores, que desaparecem totalmente,
buscando gerar, no limite, uma total desconexão com o
mundo externo, a ponto de não sabermos se é dia ou noite
lá fora, se chove ou faz sol. Quanto mais percamos o
sentido de orientação – acompanhado da ilusão de que
estamos fazendo uma trajetória livremente escolhida por
nós -, melhor, mais estaremos completamente envoltos nessa
catedral do consumo. A cidade não existe para o shopping –
nas palavras de Beatriz Sarlo -, até porque o shopping
veio para substituir a cidade. Ele surge, como um objeto
caído do céu, sem integrar-se no contorno urbano, para
aparecer como um cápsula, uma outra vida, um outro espaço.
São espaços protegidos, em que se pode atender a quase
todas as necessidades – pelo menos aquelas a que o mercado
de consumo pode atender. É um mundo ahistórico, abstrato,
que não tem raízes. O shopping é o reinado do mercado. Por
isso é a condensação do modelo que o neoliberalismo tem a
oferecer ao mundo. Por isso é um produto norte-americano –
a sociedade mercantilizada por excelência. Sua extensão
reflete a privatizaçào da vida, a centralidade do consumo
e dos consumidores, em detrimento dos direitos e da
cidadania, é a vitória dos espaços mercantis sobre a
esfera pública.
https://www.alainet.org/pt/articulo/108090
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