Paradigma do cuidado
04/09/2003
- Opinión
Depois de termos conquistado toda a Terra, a preço de pesado
estresse da biosfera, é urgente e urgentíssimo que cuidemos do que
restou e regeneremos o vulnerado. Desta vez ou cuidamos ou vamos ao
encontro do pior. Daí, urge passar do paradigma da conquista ao
paradigma do cuidado.
Se bem reparmos, o cuidado é tão ancestral quanto o universo. Se
após o big bang, não tivesse havido cuidado por parte das forças
diretivas pelas quais o universo se auto-cria e se auto-regula, a
saber, a força gravitacional, a eletromagnética, a nuclear fraca e
forte, tudo se expandiria demais, impedindo que a matéria se
adensasse e formasse o universo como conhecemos. Ou tudo se
retrairia a ponto de o universo colapsar sobre si mesmo em
intermináveis explosões. Mas não. Tudo se processou com um cuidado
tão sutil, em fracções de bilionésimos de segundo, que permitiu
estarmos aqui para falar de todas estas coisas. Esse cuidado se
potenciou quando surgiu a vida, há 3,8 bilhões de anos. A bactéria
originária, com cuidado singularíssimo, dialogou quimicamente com o
meio para garantir sua sobrevivência e evolução. O cuidado se
complexificou mais ainda quando surgiram os mamíferos, donde também
nós viemos, há 125 milhões de anos, e com eles o cérebro límbico, o
órgão do cuidado, do afeto e do enternecimento. E o cuidado ganhou
centralidade com a emergência do ser humano, há sete milhões de
anos. A essência humana, segundo uma tradição filosófica que vem do
escravo Higino, bibliotecário de Cesar Ausgusto, que nos legou a
famosa fábula 220 do cuidado até Martin Heidegger, o filósofo,
reside exatamente no cuidado.
O cuidado é aquela condição prévia que permite o eclodir da
inteligência e da amorosidade. É o orientador antecipado de todo
comportamento para que seja livre e responsável, enfim, tipicamente
humano. Cuidado é gesto amoroso para com a realidade, gesto que
protege e traz serenidade e paz. Sem cuidado nada que é vivo,
sobrevive. O cuidado é a força maior que se opõe à lei suprema da
entropia, o desgaste natural de todas as coisas até sua morte
térmica, pois tudo o que cuidamos dura muito mais.
Essa atitude precisamos resgatar hoje, como ética mínima e
universal, se quisermos preservar a herança que recebemos do
universo e da cultura e garantir nosso futuro. O cuidado surge na
consciência coletiva sempre em momentos críticos. Florence
Nightingale (1820-1910) é o arquétipo da moderna enfermeira. Em
1854 com 38 colegas partiu de Londres para um hospital militar na
Turquia, onde se travava a guerra da Criméia. Imbuida da idéia do
cuidado, em dois meses, conseguiu reduzir a mortalidade de 42% para
2%. A primeira Grande Guerra destruira as certezas e produzira
profundo desamparo metafísico. Foi quando Martin Heidegger escreveu
seu genial Ser e Tempo (1927), cujos parágrafos centrais (§ 39-
44)são dedicados ao cuidado como ontologia do ser humano. Em 1972 o
Clube de Roma lança o alarme ecológico sobre o estado doentio da
Terra. Em 2001 termina na Unesco a redação da Carta da Terra, texto
da nova consciência ecológica e ética da humanidade.
Os muitos documentos produzidos se centram no cuidado (care), como a
atitude obrigatória para com a natureza. Seres de cuidado são entre
nós dona Zilda Arns com as crianças e Dom Helder com os pobres. São
arquétipos que inspiram a cura e o salvamento de toda vida.
* Leonardo Boff. Teólogo.
https://www.alainet.org/pt/articulo/108311
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