Carta aberta a Jorge Semprún
09/10/2003
- Opinión
Semprún: a cabeça pensa onde os pés pisam. Os do presidente Lula, os meus, e de
todos nós, latino-americanos, trafegam sobre o solo dessa América Latina
historicamente tão espoliada pelas nações européias. Minas, o meu estado,
produziu, entre os séculos XVIII e XIX, mais ouro que a soma de toda a prata
extraída em nosso Continente no mesmo período. Nosso ouro financiou a Revolução
Industrial, pagou dívidas da Coroa francesa e, para nós, restaram os buracos e o
sofrimento dos homens e mulheres livres que os europeus caçaram na África e
trouxeram como escravos para a América.
Só nós, latino-americanos, conhecemos o tamanho de nossa dor. Como seria
alentador ver os europeus pagarem a enorme dívida social contraída com o Terceiro
Mundo! Não foram Deus e a natureza que tornaram a África tão miserável, palco de
guerras cujas armas não são fabricadas naquele Continente, nem comercializadas
por empresas africanas...
A América Latina sabe o tamanho de seu sofrimento enquanto colônia da Espanha e
de Portugal, da Holanda, da França e da Inglaterra. Por isso, são nossos heróis,
não reis e homens que se destacaram à frente de guerras, mas sim figuras
libertárias como Bolívar e Tiradentes, Tupac Amaru e Martí, Sandino e Che
Guevara.
Aqueles que lutaram anos para que, hoje, o Brasil seja um país democrático após
21 anos de ditadura militar e que, depois da redemocratização, construíram o
movimento social e político que levou Lula à presidência da República, bem sabem
o que significa a Revolução Cubana para nós latino-americanos.
Cuba é um símbolo de resistência. Bloqueada há mais de 40 anos, ameaçada
permanentemente, palco de ações terroristas e conspiratórias, viu-se obrigada a
recorrer à União Soviética porque o governo dos EUA não entendeu que Fidel, após
a vitória da Revolução, desfilou na Quinta Avenida, em Nova Iorque, em busca de
solidariedade, e não de hostilidade.
Hoje, Cuba apresenta, segundo o Bird, os melhores índices sociais entre os países
da América Latina, sobretudo em matéria de educação e saúde. O analfabetismo
atinge apenas 0,2% dos cubanos, quase todos pessoas de idade avançada. No ensino
fundamental, há um professor para cada 20 alunos, que é o limite máximo de
estudantes em sala de aula. A mortalidade infantil é de 6,5 em cada 1.000
nascidos vivos, no primeiro ano de vida, enquanto nos EUA é de 9/1.000. Agora,
sem nenhum apoio externo, Cuba enfrenta toda sorte de dificuldades para assegurar
dignidade a 11 milhões de habitantes. Qual país da América Latina pode colocar
este cartaz que Havana exibe àqueles que chegam pela porta do aeroporto: "Esta
noite, milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma delas é cubana".
Semprún: nós, brasileiros, abominamos a pena de morte, embora ela exista em nosso
meio de uma forma que o governo Lula se empenha em combatê-la: a fome, o
desemprego, a violência urbana e rural etc. Todas as vezes que o governo cubano
decidiu aplicá-la, manifestamos a ele o nosso descontentamento. Eu mesmo
entreguei a Fidel, em companhia dos escritores Antonio Callado e Fernando Morais,
um manifesto, encabeçado pelo cardeal Paulo Evaristo Arns, expressando nossa
posição contrária à pena de morte, por ocasião da sentença ao general Ochoa.
É, no mínimo, leviano acusar o presidente Lula de omissão quando se trata de
direitos humanos. Que outro país do mundo se empenha tanto, como o Brasil de
hoje, para erradicar a fome em nosso planeta? Você conhece muitos artistas e
intelectuais que lutam em prol da erradicação da Aids. E merecem aplausos. Hoje,
o vírus HIV infecta 40 milhões de pessoas no mundo. Mas quantos lutam contra a
fome que, segundo a FAO, ameaça 840 milhões de pessoas? A fome mata vinte vezes
mais do que a Aids e, no entanto, nós, os bem-nutridos, sabemos que a Aids não
faz distinção de classe. Por isso, ela nos mobiliza. A fome, não; só atinge os
miseráveis. Por isso tão pouco nos empenhamos em combatê-la.
Em sua recente viagem a Cuba, o presidente Lula teve o cuidado de ouvir
diferentes setores da sociedade. Recebeu o cardeal Jaime Ortega e o monsenhor
Carlos Manuel de Céspedes, de quem obteve informações sobre a situação de presos
políticos. Esteve também com a mãe do brasileiro Paulo Hilel, preso em Cuba sob
acusação de tráfico de pessoas. Essas conversações versaram sobre direitos
humanos.
Lula e Fidel são amigos. E entre amigos tudo se diz, sem que haja necessidade de
transformar a crítica em denúncia e, assim, submeter-se à vergonha de merecer
aplausos daqueles que gostariam de ver Cuba, de novo, como o bordel do Caribe,
território livre dos mafiosos, condenada a perder as inestimáveis conquistas da
Revolução. Mas posso revelar que Lula tratou, sim, da questão dos direitos
humanos, inclusive a situação dos prisioneiros. Dois presidentes têm o direito de
abordar temas que não precisam, necessariamente, chegar ao conhecimento da mídia.
A menos que eles decidam torná-los públicos.
Direitos humanos significam, sobretudo, garantir a toda uma nação condições
dignas de alimentação, saúde e educação. O dom maior de Deus é a vida. E Cuba
pode orgulhar-se de assegurar vida através desses três direitos básicos a toda a
sua população, o que não é o caso dos demais países da América Latina. Se
queremos mais liberdade em Cuba, que Cuba seja, primeiro, libertada do bloqueio
imposto pelo governo dos EUA. E fique livre também de tantos que ainda acreditam
que democracia se conquista através de sabotagens, seqüestros e ações
terroristas.
* Frei Betto é escritor e Assessor Especial do Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, autor, em parceria com Leandro Konder, de "O indivíduo no socialismo"
(Perseu Abramo), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/108557?language=es
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