Síndrome de degredado: Brasil tem pânico de ficar só
20/10/2003
- Opinión
A negociação da Alca se afigura como particularmente problemática e
perigosa para o Brasil e o Mercosul. Do nosso ponto de vista, faz
todo sentido esvaziar a Alca e transferir os esforços negociadores
para o âmbito da OMC.
Depois dos embates recentes na OMC e, especialmente, na Alca,
espalhou-se a versão de que a suposta intransigência dos
negociadores do Itamaraty estaria levando o Brasil a ficar isolado.
Um dos que lançaram esse mote foi o negociador-chefe dos Estados
Unidos na Alca, o embaixador Ross Wilson (ver USTR Chief FTAA
Negotiator Ross Wilson, Press Conference Call, October 3, 2003,
Trinidad and Tobago, www.ustr.gov). Nas semanas que se seguiram à
última reunião da Alca, realizada em Trinidad e Tobago no início de
outubro, o tema do isolamento foi repetido ad nauseam por boa parte
dos meios de comunicação no Brasil. Não é por acaso que se bate
tanto nessa tecla. Ao fazê-lo, os críticos da política externa do
governo tocam num ponto vulnerável da psicologia nacional.
Nós, brasileiros, temos um certo pânico de ficar sós no mundo. De
uma maneira ou de outra, o brasileiro está sempre querendo se
"enturmar". Ninguém sabe bem por quê. Talvez esse traço de caráter
seja algum atavismo. Um herança - quem sabe? - dos tempos em que
alguns dos nossos antepassados eram abandonados no litoral
esparsamente povoado do futuro Brasil. E lá ficavam, cercados de
tribos indígenas hostis, não raro antropófagas, curtindo saudades de
Portugal e da civilização. Síndrome de degredado, em suma.
Seja como for, é uma pena. Nações que se prezam devem estar
preparadas para ficar sozinhas quando as circunstâncias o exigem. A
história do século 20 teria sido completamente diferente se a
Inglaterra de Churchill sofresse desse mesmo pânico. Depois da
rendição da França em 1940, o continente europeu ficou quase todo
ocupado pela Alemanha nazista e seus aliados. Os Estados Unidos e a
União Soviética ainda estavam fora da guerra. O que fez a
Inglaterra? Resistiu sozinha. Isso se chama fibra.
Mas vamos deixar Churchill e a Inglaterra de lado. Não precisamos ir
tão longe, nem pedir tanto. Brasileiros, fiquem calmos, o risco de
isolamento é desprezível.
Como imaginar que o Brasil ou, pior, o Brasil em aliança com a
Argentina, possa ficar "isolado" na América do Sul ou, mesmo, na
América Latina? Suponha, leitor, que a Alemanha e a França tenham
uma divergência qualquer com o resto da União Européia. Faria algum
sentido falar do isolamento desses dois países, que têm peso
econômico, político e demográfico dominante na Europa Ocidental e
Central? Ou, digamos, que os Estados Unidos entrassem em desacordo
com o Canadá e o México, teria cabimento proclamar a solidão dos EUA
na América do Norte?
Pela mesma razão, não faz sentido temer o isolamento do Brasil na
América do Sul e chega a ser um pouco ridículo falar em isolamento
da aliança Argentina-Brasil.
Com os governos Lula e Kirchner, as chances de uma colaboração
duradoura e eficaz entre o Brasil e a Argentina aumentaram muito.
Haverá divergências e tensões, evidentemente, e Washington fará o
que puder para explorá-las. Mas não serão problemas
inadministráveis. Com os integrantes menores do Mercosul,
especialmente o Uruguai, haverá mais desavenças, mas a importância
dos mercados brasileiro e argentino para o Paraguai e o Uruguai é de
tal ordem que dificilmente se chegará a uma ruptura.
Os demais países sul-americanos também não têm interesse em se
distanciar do Brasil ou da Argentina. A tendência recente aponta no
sentido contrário. O Mercosul acaba de assinar um acordo de livre
comércio com o Peru. Está em negociação um acordo do mesmo tipo com
a Comunidade Andina. O resultado final dessas e de outras
negociações que ainda não foram iniciadas poderá ser uma Área de
Livre Comércio da América do Sul.
Obviamente, ninguém desconhece o poder de pressão e atração dos EUA.
O Canadá e o México já fazem parte do Nafta - o acordo de livre
comércio da América do Norte. A influência de Washington no Caribe e
na América Central é avassaladora. Mesmo na América do Sul, a
capacidade de manobra norte-americana é, como se sabe, muito
expressiva. Em 2003, os EUA assinaram um acordo de livre comércio
com o Chile.
Por isso mesmo é que a negociação da Alca se afigura como
particularmente problemática e perigosa para o Brasil e o Mercosul.
Do nosso ponto de vista, faz todo sentido, portanto, esvaziar a Alca
e transferir os esforços negociadores para o âmbito da OMC, onde as
possibilidades de aliança são muito mais favoráveis - como ficou
demonstrado, aliás, na última reunião da OMC, em Cancún.
Nessa reunião, o Brasil foi um dos principais líderes de uma ampla
coligação de mais de 20 países em desenvolvimento, que se opuseram à
tentativa da União Européia e dos Estados Unidos de limitar
drasticamente as concessões na área agrícola. Por pressão de
Washington, alguns países latino-americanos abandonaram a aliança
depois de Cancún. Mas a maior parte dos integrantes do grupo
continua unida, em especial o seu núcleo duro - Brasil, Índia,
China, África do Sul e Argentina.
Enfim, o isolamento brasileiro é um mito. O Brasil é um país que
está estreitando os laços com os seus vizinhos, que ampliou a sua
presença na OMC e que vem reforçando o seu comércio e as suas
relações políticas com outras grandes economias da periferia do
sistema internacional. Mantém importantes e crescentes relações
comerciais com os EUA e a União Européia. E continuará ampliando o
seu comércio com os países desenvolvidos, independentemente da
negociação altamente problemática de áreas de livre comércio como a
Alca e o acordo União Européia-Mercosul.
* Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, pesquisador visitante do
Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV- EAESP. É
autor do livro "A Economia como Ela É ..." (Boitempo Editorial, 3ª
edição, 2002).
http://agenciacartamaior.uol.com.br/agencia.asp?id=956&coluna=report
agens
https://www.alainet.org/pt/articulo/108652?language=es
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