Sementes mutantes
03/11/2003
- Opinión
Um dos argumentos mais repetidos pelos defensores dos transgênicos
é o de que haverá mais produção de alimentos e, portanto, a
erradicação da fome. Hoje, a subnutrição ameaça 840 milhões de
pessoas no mundo (morrem de fome 30 mil por dia) e 44 milhões de
habitantes do nosso país.
Segundo a FAO, o planeta produz alimentos suficientes para 11
bilhões de bocas. Somos, por enquanto, 6,1 bilhões. No Brasil, o
desperdício, da colheita à comercialização, joga no lixo o que
daria para alimentar ao menos 35 milhões de pessoas, sem
contabilizar o que se perde em domicílios e restaurantes.
Se há tanta fome e suficiente alimento natural, livre de
manipulação genética, como argumentar que os transgênicos irão
reduzir a fome? Ela não decorre da falta de alimentos. É resultado
da falta de justiça. O mundo não carece de riquezas. Carece de
partilha. Os pobres não têm como adquirir o pão de cada dia, seja
ele orgânico ou transgênico. Por isso, o Fome Zero é, sobretudo, um
programa de distribuição de renda, como o Bolsa Família, e não uma
gincana de distribuição de alimentos.
Quatro cidadãos dos EUA - Bill Gates, Warren Buffett, Larry Ellison
e Paul Allen - possuem, juntos, uma fortuna superior ao Produto
Interno Bruto de 42 nações, abrigando 600 milhões de pessoas.
Portanto, avanços tecnológicos e científicos nem sempre são
sinônimos de progresso humano, pois este depende de uma economia e
de uma política que sejam regidas por um valor que não interessa
muito ao mercado - a ética, o reconhecimento de que a vida, dom
maior de Deus, é um direito de todos. E é dever do Estado assegurar
este direito.
A produção de transgênicos é laboratorial, sofisticada, e exige
investimentos caros que jamais estarão ao alcance da agricultura
familiar. Esta pode até plantar, mas não recriar. Como ocorre em
toda produção industrial, a de sementes geneticamente modificáveis
depende de raras e poderosas empresas, que transformam o alimento
em arma de pressão, capaz de ameaçar nações. Ainda que os
transgênicos tripliquem a produção mundial de alimentos, ficará no
ar uma questão: e quem lançará as sementes capazes de modificar
eticamente o mercado e promover a economia de partilha? Se não há
uma cultura de que a alimentação é um direito humano inalienável, a
ser assegurado a todos, as sementes imutantes do neoliberalismo,
que cultua a apropriação privada do lucro acima de tudo, só
reforçará a tendência de formação de oligopólios.
Meu avô era dono, em Minas, do laboratório Libanio. Meus primos, no
Rio, do laboratório Maurício Villela. Hoje, são raros os
laboratórios brasileiros. Os medicamentos custam mais caro e, nem
por isso, são de melhor qualidade, o que explica a importância dos
genéricos. O Brasil teve, outrora, sua própria indústria
automotiva, que produzia carros e caminhões. Agora, quase todas as
montadoras têm suas matrizes no exterior. Sem falar deste crime de
lesa-pátria: a destruição de nossa malha ferroviária num país rico
em recursos hídricos e de dimensões continentais. Tudo para nos
tornar dependentes de rodovias e veículos que consomem petróleo.
Embora a Petrobrás seja uma vitória de nossa soberania, nunca
tivemos o monopólio da distribuição de combustíveis.
Liberar os transgênicos exige, antes, lançar em nosso solo sementes
eticamente mutantes, que advirtam o consumidor sobre a qualidade
do que ingere e o amparem numa legislação que impeça qualquer
tentativa de oligopolização e patenteação que fira os direitos e
interesses do Brasil. Do contrário, ficaremos à mercê do mercado -
leia-se, de poucas e poderosas empresas que, indiferentes ao Pai
Nosso, controlarão o pão nosso de cada dia, transubstanciado por
genes que só Deus sabe que efeitos provocarão na saúde de Gaia e
dos seres humanos. Algumas reações negativas já estão comprovadas,
como o desastrado casamento genético entre o feijão, pobre em
gordura, e a castanha-do-Pará. Quem ingeriu sofreu alergias. Outras
reações, porém, são como o câncer: quase nunca dão sinais de
gênese, só de apocalipseŠ
O presidente Lula faz eco à palavra de Deus pela boca do profeta
Isaías, há 2.800 anos: só haverá paz como filha da justiça. Só uma
civilização de partilha, regida pela "globalização da
solidariedade", advogada por João Paulo II, fará chegar à mesa da
família humana alimentos em quantidade e qualidade suficientes. E
eu, ao me servir, prefiro o que foi divinamente criado e
modificado.
* Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto - autobiografia
escolar" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/108714?language=es
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