O toco de cigarro
19/12/2003
- Opinión
Era 11 de agosto de 1965, Munique na Alemanha. Lá fora as flores
explodiam nos parques e acenavam ridentes das janelas. São duas
horas da tarde. O carteiro me traz a primeira carta da pátria.
Sofregamente a abro. Todos escreveram. Paira um mistério: "Querido,
já deves estar em Munique quando leres esta carta. Diferente de
outras, ela te traz uma noticia alvissareira. Deus exigiu de nós, no
dia mesmo de tua partida, um tributo de fé e de amor. Olhou-nos um a
um e escolheu para si o mais preparado, nosso querido pai. Querido,
Deus não o tirou de nós, mas o deixou mais entre nós. Papai não
partiu mas chegou. Deixou o espaço dele para entrar,
definitivamente, no nosso espaço, para poder estar presente contigo
na Alemanha, com o Waldemar nos EUA e com o Ruy e o Clodovis na
Belgica". A morte era saudada como irmã e como forma de comunhão
para unir a família, dispersa em quatro paises. No turbilhão das
lágrimas, reinava serenidade profunda: morremos para ressuscitar,
para expandir nossa comunicação.
No dia seguinte, percebi que no envelope que anunciava a morte havia
um sinal de vida: um toco amarelecido de cigarro de palha. Fora o
último que meu pai havia fumado, momentos antes de um infarte
fulminante, com apenas 54 anos, o haver libertado desta cansada
existência.
Desta hora em diante, o toco de cigarro não é mais um toco de
cigarro. É um símbolo. Guardado num vidrinho, sua cor típica e seu
cheiro forte o fazem ainda aceso em minha vida. Torna presente a
figura do pai, já agora um arquétipo familiar de valores que
prezamos. Em sua tumba escrevemos:"De sua boca ouvimos, de sua vida
aprendemos: quem não vive para servir, não serve para viver".
Por que conto tudo isso? Para resgatar a dimensão simbólica que mais
e mais está sumindo. Perdendo a visão simbólica, fecham-se janelas da
alma e desaparece a magia das coisas. Reparando bem, os símbolos, os
cristãos chamam-nos de sacramentos, nascem da vida cotidiana, do
jogo que se estabelece entre ser o humano e o mundo. Diante das
coisas, primeiro sentimos estranhamento, depois as domesticamos e
por fim nos habituamos a elas. Nesse jogo, as coisas e nós mudamos,
porque nosso olhar mudou. O toco de cigarro pode ser olhado de
fora, como um objeto neutro. É o olhar da ciência. Esta analisa a
palha, o fumo, o nivel de nicotina e conclui que, como toco, não
tem valor nenhum. Mas podemos olhá-lo a partir de dentro, do que ele
significa para mim por causa de meu pai. Ele vira sujeito, pois
lembra e fala. Ganha um valor afetivo inestimável. Ele virou
símbolo. Toda vez que uma realidade do mundo, sem deixar o que
é, (toco de cigarro), evoca outra realidade diferente dela (meu pai),
assume a função de símbolo.Tudo pode tornar-se símbolo. Depende de
nosso olhar. Se forem inseridas em nossas experiências e se as
cativarmos, as coisas viram símbolos que falam. Jamais serão
esquecidas.
Essa atitude hoje é urgente se quisermos preservar as árvores, os
animais, as paisagens, e assim salvar a Terra. Importa não só usar
as coisas mas senti-las e amá-las. Então elas ficam únicas. E iremos
cuidar delas. São sacramentais.
Nossas casas estão cheias de símbolos, os óculos da vovó, uma flor
ressequida de um antigo amor, um bilhete da pessoa amada. Se
cativarmos as coisas à nossa volta, nosso mundo se povoará de
símbolos e nós, de encantamento.
* Leonardo Boff. Teólogo.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109005
Del mismo autor
- O risco da destruição de nosso futuro 05/04/2022
- Reality can be worse than we think 15/02/2022
- ¿Hay maneras de evitar el fin del mundo? 11/02/2022
- Há maneiras de evitar o fim do mundo? 08/02/2022
- The future of human life on Earth depends on us 17/01/2022
- El futuro de la vida depende de nosotros 17/01/2022
- A humanidade na encruzilhada: a sepultura ou… 14/01/2022
- “The iron cage” of Capital 04/01/2022
- Ante el futuro, desencanto o esperanzar 04/01/2022
- Desencanto face ao futuro e o esperançar 03/01/2022