O filósofo e os pobres
13/01/2004
- Opinión
O falecimento do filósofo Norberto Bobbio renovou em mim a feliz
lembrança de dois encontros que tive com ele em Turim e, ao mesmo
tempo, veio-me um forte sentimento de gratidão por aquilo que nos
ajudou a entender da democracia. Em meio ao conflito que nos anos 80
e 90 envolveu a teologia da libertação, foi Bobbio dos poucos
pensadores europues que, de imediato, compreendeu a relevância desta
teologia para uma democracia como valor universal a ser vivida a
partir da base e dos últimos. Captou a relevância política das
comunidades eclesiais de base e da leitura popular da Bíbilia porque
não apenas criam cristãos militantes mas também agentes de
transformação social.
Em razão destes valores, quis honrar esta significação política,
fazendo com que a Università degli Studi de Turim, onde era eminente
professor, me concedesse, em nome de tantos, o título de doutor
honoris causa em política, o que ocorreu no dia 27 de novembro de
1991. Lembro-me que o Vaticano e o Cardeal de Turim pressionaram as
autoridades da universidade para que não concedessem este título a
um teólogo "maldito"como eu. O Prof. Bobbio protestou com veemência
e fez valer a autonomia da universidade.
Foi nesta ocasião que conversamos longamente, no dia antes da
cerimônia e no dia após quando participei de um debate público num
dos salões da cidade. Arguto, foi ao cerne da questão que
interessava a ele e a mim: o sentido singular que nós, téologos da
libertação, dávamos aos pobres. A maioria tem dificuldade de
entender esta questão e ele a havia captado em sua diferença
específica.
Três compreensões de pobre circulam ainda hoje no debate, também
quando nos referimos à Fome Zero. A primeira, tradicional, entende
o pobre como aquele que não tem. A estratégia então é mobilizar quem
tem para ajudar a quem não tem. Em nome disso se organizou, por
séculos, vasta assistência. E uma política beneficiente mas não
participativa. Não descobriu ainda o potencial dos pobres.
A segunda, a moderna, descobriu o potencial dos pobres e percebeu
que não é utilizado. Pela educação e professionalização é utilizado
e potenciado, e assim eles são inseridos no processo produtivo. A
tarefa do Estado é criar postos de trabalho para esses pobres
sociais.
A leitura tradicional vê o pobre mas não percebe seu caráter
coletivo. A moderna, descobre-lhe o caráter coletivo mas não
apreende seu caráter conflitivo. O pobre é resultado de mecanismos
de exploração que o fazem empobrecido, gerando assim grave conflito
social. Previamente à sua integração no processo produtivo vigente,
dever-se-ia fazer uma crítica do tipo de sociedade que sempre produz
e reproduz pobres e excluidos.
A terceira posição, da teologia da libertação, diz: os pobres têm
sim potencialidades. Não apenas para engrossarem a força de
trabalho, mas principalmente para transformarem o sistema social. Os
pobres, conscientizados, organizados por eles mesmos e articulados
com outros aliados, podem ser construtores de uma democracia
participativa, econômica e social. Esta perspectiva não é nem
assistencialista nem progressista. Ela é libertadora.
Ao convergirmos nas idéias, os olhos cansados do mestre brilhavam
como os de uma criança. E eu me sentia feliz: o "papa" da política
me tirara o exorcismo de "maldito".
* Leonardo Boff é dr.h.c.em política pela Universidade de Turim e
autor de Etica e Eco-espiritualidade, Verus, Campinas 2003.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109082
Del mismo autor
- O risco da destruição de nosso futuro 05/04/2022
- Reality can be worse than we think 15/02/2022
- ¿Hay maneras de evitar el fin del mundo? 11/02/2022
- Há maneiras de evitar o fim do mundo? 08/02/2022
- The future of human life on Earth depends on us 17/01/2022
- El futuro de la vida depende de nosotros 17/01/2022
- A humanidade na encruzilhada: a sepultura ou… 14/01/2022
- “The iron cage” of Capital 04/01/2022
- Ante el futuro, desencanto o esperanzar 04/01/2022
- Desencanto face ao futuro e o esperançar 03/01/2022