FSM 2004: Nossa festa, nossa luta
28/01/2004
- Opinión
A escritora indiana Arundhati Roy sustenta que o Fórum Social
Mundial precisa passar das palavras às alternativas e ações, para
responder à ameaça de barbárie e fascismo social, que, segundo ela,
o governo Bush representa.
Num país onde a grande maioria das mulheres não pode sequer escolher
os seus maridos, ela destacou-se por seu sucesso na literatura - uma
arte ainda marcada, em todo o mundo, pelo predomínio masculino. O
deus das pequenas coisas, seu primeiro livro, foi criticado tanto
pelos fundamentalistas (que não perdoaram as cenas de sexo entre uma
mulher de casta superior e um dalit, pária) quanto pelos ortodoxos
do marxismo (descontentes com as críticas ao comportamento da
esquerda). Vencedora, na estréia, de um dos grandes prêmios
literários internacionais (arrebatou, em 1997, o Booker, conferido
na Inglaterra ao melhor livro de ficção de cada ano), ela preferiu,
desde então, dedicar-se a outro gênero. Escreve ensaios, nos quais
debate, sem perder a poesia jamais, os destinos do mundo: poder
imperial dos Estados Unidos, tribalização social, riscos de fascismo
e... alternativas.
Comprometida desde o início com o Fórum Social Mundial (FSM), a
indiana Arundhati Roy foi convidada a falar na abertura do encontro
deste ano, em Mumbai. Transformou sua intervenção em nova surpresa.
Diante de mais de 100 mil pessoas, apresentou uma proposta concreta
em favor de um mundo novo. Sugeriu que o Fórum testasse sua
capacidade de ação transformadora, desencadeando um boicote
internacional contra duas corporações envolvidas com as guerras
imperiais, a devastação do ambiente ou o ataque aos direitos
sociais.
A fala de Arundhati foi a mais marcante, mas a idéia provocou
reações contraditórias. O FSM só existe porque soube preservar, a
todo custo, a diversidade. Para que o encontro não seja controlado
por alguma corrente política - o que resultaria, inevitavelmente, em
seu esvaziamento --, evita-se até mesmo discutir declarações finais.
Como agir em conjunto, sem violar a regra?
A escritora enfrenta esta questão com duas respostas articuladas. É
exatamente por valorizarmos nossa diversidade, argumenta ela, que
podemos pensar em ações comuns. Para participar de um boicote,
ninguém é obrigado a abrir mão de sua identidade, suas
reivindicações, seu modo específico de se organizar. Não foi assim,
aliás, que se fizeram as grandes manifestações contra a guerra, em
15 de fevereiro de 2003?
Arundhati vai além. Ela crê que o Fórum corre o risco de se reduzir
a um festival, caso não seja capaz de trabalhar efetivamente por um
mundo novo. Nesse caso, o encontro "não deixará preocupados os que
querem destruir o planeta ou construir a barbárie. Será sempre nossa
música, mas não poderá se transformar em nossa luta"...
Em 21 de janeiro, último dia do IV Fórum Social Mundial, Arundhati
concedeu a Outras Palavras a seguinte entrevista:
Você fez, na abertura do IV FSM, uma proposta concreta de ação:
articular um boicote internacional a duas grandes corporações
associadas à guerra imperial, ao ataque aos direitos humanos e à
destruição da natureza. Como surgiu a idéia deste boicote, e que
objetivos os movimentos poderiam alcançar com ele?
Eu pensava nos mecanismos que movem a globalização atual -
especialmente naquilo que Thomas Friedman chama de "dedo oculto na
mão invisível do mercado". Trata-se do recurso à guerra e à
violência, o dedo que aperta o gatilho. Num artigo que se tornou
clássico, esse pensador neoliberal norte-americano lembra que "o
McDonald's não pode prosperar sem a McDonnell Douglas, criadora dos
caças F-15. E o dedo oculto que mantém o mundo seguro para as
tecnologias do Vale do Silício chama-se Exército, Força Aérea,
Marinha e Corpo de Marines dos Estados Unidos". O Iraque é o exemplo
perfeito.
O capitalismo está se tornando cada vez mais brutal, e por isso não
se trata de convencê-lo, mas de enfrentá-lo. Para isso, como em toda
batalha política, é preciso encontrar o ponto fraco de nossos
adversários. Certamente, ele não está no terreno militar. É preciso,
também, mostrar às pessoas na Índia, ou no Brasil, que elas precisam
se preocupar com o que se passa no Iraque. Identificar as empresas
mais implicadas na ocupação pode ser um passo importantíssimo. Ele
deixa claro que temos inimigos comuns. Estas empresas, que
trabalharam concretamente pela destruição do Iraque para se
beneficiar agora com os contratos de "reconstrução", também estão
promovendo, em nossos países, outros tipos de devastação. É possível
identificar todos os fios da meada.
É uma oportunidade fantástica para nós, que pensamos de maneiras tão
diferentes, que temos idéias e pontos de vista tão múltiplos. Todos
podemos nos unir em torno desta ação - deste alvo comum que o outro
lado nos oferece -, e ainda assim manter nossa diversidade.
Em seus textos recentes, você adverte para a relação entre
neoliberalismo e fascismo social. Poderia explicá-la melhor?
Há décadas, os defensores do neoliberalismo lutam para conquistar a
"liberdade" de circulação do dinheiro, para impor a hegemonia das
finanças, para subordinar as nações ao mercado global. Agora, estão
apelando para a tribalização social, como instrumento para
viabilizar politicamente estas propostas.
Um caso muito concreto é o da Índia, onde está no poder um governo
semi-fascista - se é que é possível ser fascista apenas pela metade.
Aqui avança um fundamentalismo pouco conhecido no resto do mundo: o
fanatismo hindu. Ele procura ressaltar sua característica anti-
muçulmana para se alinhar com os Estados Unidos e com Israel. Não é
difícil concretizar esta aliança. O presidente Bush, ele próprio, é
um adepto do fundamentalismo cristão...
Este alinhamento está produzindo tragédias humanas. No Estado de
Gujarat, houve, há alguns meses, um massacre praticado por hindus
contra muçulmanos. Duas mil pessoas foram assassinadas, 115 mil
expulsas de suas casas, mulheres violentadas em massa. Ninguém foi
punido, e todos fingem que nada grave ocorreu. Proíbem-se livros,
queimam-se documentos históricos, ataca-se professores
universitários e escritores.
Mas os jornais martelam todos os dias que a Índia brilha, que seu
PIB não pára de crescer. Lá mesmo, em Gujarat, as grandes indústrias
e corporações estão fazendo enormes investimentos.
Você parece muito pessimista com a política indiana. Que representou
o FSM para as forças que resistem ao neoliberalismo e à barbárie, e
como ele poderia ajudá-las a conquistar espaço entre a sociedade
Foi muito importante trazer o Fórum para a Índia. Eu não pensava
assim há um ano: fui uma das pessoas que julguei ser errado realizar
o encontro aqui, no cenário em que vivemos. Estava errada: o FSM é
sempre esperança de arejamento e tolerância.
Mas é preciso compreender em profundidade o clima que vivemos. A
democracia reduziu-se ao espetáculo das eleições. Todas as
instituições que eram sensíveis às pressões sociais tornaram-se
impermeáveis - porque o neoliberalismo não abre espaço para meios
termos. Neste ambiente despolitizado, e num país tão diverso, o modo
mais prático de formar uma maioria de governo é apelar para o
fundamentalismo. As eleições são, hoje, os momentos em que mais se
espalha o veneno do ódio e da intolerância.
O fascismo alimenta-se deste clima, desde a época da Alemanha de
Hitler. Ele se baseia num acordo tácito entre as grandes corporações
e os que pregam a intolerância. Os partidos que nadam contra a
corrente não têm nenhum espaço, no momento.
Há uma segunda característica especial que também concorre para o
esvaziamento da política. Somos uma federação de Estados. Até o ano
passado, a direita, que ocupa o governo central, convivia com o
poder do Partido do Congresso, em diversos Estados. Mas nos locais
em que governava, este partido implementava, igualmente, a
privatização em massa e o "ajuste estrutural" de mercado. A
alternância entre os dois blocos transformou-se num circo. Os
partidos adotavam, assim que assumiam o poder, as mesmas políticas
que criticavam até a véspera, quando na oposição. É como um jogo: ao
analisar cada partido, você se dava conta que, no plano federal, ele
defendia uma proposta; mas em seu Estado aplicava outra, de sentido
oposto.
Os delegados que chegam do resto do mundo para o FSM sofrem
imeditatamente um choque. Ficam espantados com a riqueza e a força
da cultura, num país tão empobrecido materialmente. Além do espanto
inicial, que as tradições culturais indianas podem ensinar ao
planeta Porto Alegre?
Quem vem para participar do FSM entra em contato com os grupos e as
pessoas mais extraordinárias da Índia de hoje. Mas é uma imagem
filtrada muitas vezes. Do lado de fora, espalha-se o veneno. A onda
de fundamentalismo religioso está ganhando força e apelo enormes. É
uma pulsão muito forte, tão difícil de combater quanto, digamos, o
abuso da cocaína.
Em Gujarat, os grupos hindus que se envolveram mais ativamente no
massacre dos muçulmanos foram os mais excluídos: dalits
("intocáveis") e os advasis (aborígenes). Já na periferia de Delhi,
a capital, cinco dalits foram linchados às margens de uma estrada,
há alguns meses. Uma vaca havia morrido. Estavam cortando seu
cadáver, para retirá-la do local. Cumpriam o papel que a sociedade
de castas lhes reserva: o de responsáveis pelas tarefas mais sujas.
Mas a multidão preferiu acreditar que profanavam o animal sagrado.
Nem mesmo a intervenção da polícia foi capaz de evitar a tragédia.
Está se tornando muito difícil suportar a vida aqui, e tenho muita
preocupação com o que ocorrerá nos próximos três ou quatro anos. Se
você está a favor da corrente, há oportunidades. Mas para quem
enfrenta a onda fascista, a situação fica a cada dia mais perigosa e
dramática. Ser um muçulmano na Índia, hoje, por exemplo... Eu não
saberia como sobreviver!
Você demonstra grande simpatia pela tradição gandiana, e pela fato
de a libertação nacional ter sido feita sem violência. A proposta de
boicote contra as transnacionais é uma tentativa de reeditar,
modernizando-os, os métodos de resistência pacífica?
Admiro a invenção de Ghandi pelo fato de ter expandido os limites da
imaginação política. Mas, também neste ponto, não devemos ser
dogmáticos. É preciso lembrar que o próprio processo da
independência indiana não foi conduzido apenas por meio de ações
pacíficas. E no mundo de hoje, eu me pergunto: os habitantes de
países ocupados militarmente, como o Iraque ou Palestina, não terão
o direito de lutar contra o invasor? Não estou preparada para
condenar o que outros povos estão fazendo, quando não conheço a
fundo suas realidades.
Concordo com a pergunta, no sentido de que representa uma
atualização da proposta de Gandhi. Ele soube pressionar os
britânicos por meio da não-cooperação, do não-pagamento de impostos.
O mesmo método pode ser aplicado às empresas que lucram com a
ocupacao do Iraque. Nos últimos anos, nossos inimigos "modernizaram"
em muitos sentidos as formas de dominação capitalista. Nós
precisamos renovar a resistência e a utopia. Contra o velho
imperialismo, o projeto nacionalista cumpriu um papel fundamental.
Nos novos tempos, ele não basta. É preciso retomar a idéia de
internacionalismo.
O Fórum Social Mundial tornou-se viável porque, desde o início,
soube combinar a idéia de uma nova sociedade com a defesa do
pluralismo e da diversidade. Ele é incompatível com a idéia de uma
posição única - e, mais ainda, de uma direção política. Mas têm
crescido, entre os participantes do FSM, a idéia de que ele deveria
facilitar a construção de pontos de vista convergentes, e mesmo de
ações comuns. Qual sua opinião?
Concordo inteiramente, e penso que o FSM corre um grande risco: é o
de absorver as energias das melhores ativistas do planeta, das
mentes mais brilhantes e das pessoas mais generosas, apenas para
que, ao final de quatro dias, comecemos a pensar num novo encontro,
um ano depois. Se isso ocorrer, ele poderá ser absorvido pelo
sistema que queremos combater. Não causará danos a este sistema, nem
permitirár construir um novo mundo. Não deixará preocupados os que
querem destruir o planeta ou construir a barbárie. Será sempre nossa
música, mas não poderá se transformar em nossa luta.
E precisamos, cada vez mais, pensar em nossa luta - ou nos
limitaremos a repetir um exercício que, com o tempo, vai se tornar
aborrecido.O Fórum realizou até agora coisas belas. Os diálogos que
ele proporcionou foram um fato político extraordinário. Mas
precisamos estar abertos ao que é novo, aos desafios que surgem a
cada momento. Estagnarmos, ou nos transformarmos num festival, seria
contrariar tudo o que o FSM representou até agora.
Você manifesta, quando escreve, uma certa descrença com as formas
atuais de política, e ao mesmo tempo esperança em governantes que
têm coragem de seguir rumos novos. Como concilia estas duas
tendências?
Vocês estão vivendo, no Brasil, um processo semelhante ao que os
movimentos populares passaram na África do Sul. Luta-se anos, para
levar ao poder um líder comprometido com as mudanças. E no entanto,
quando este novo governo assume, ele se dá conta de que, na esfera
internacional, seu poder é muito reduzido. Se ameaça reverter as
políticas neoliberais, o capital bate em retirada e ameaça provocar
um colapso econômico.
Amedrontados, estes governos começam a implementar as receitas do
FMI, a expulsar os "radicais" do partido, a cortar direitos sociais
como as aposentadorias. Veja o caso de Mandela, o herói da luta
contra o apartheid. Ao assumir o poder, adotou políticas
inacreditáveis: privatizações maciças, ajuste estrutural profundo.
Por isso, acredito na independência dos movimentos, em nossa
capacidade de manter, mesmo sobre estes governos, a pressão pela
mudança. Nenhum país, nenhum líder popular, por maiores que sejam,
podem enfrentar este sistema sozinhos. Só a consciência e a
mobilização da sociedade são capazes de fazê-lo.
Não se trata, quero frisar, de uma posição apolítica, ou que
despreze a questão do poder. É muito importante que surjam governos
comprometidos com transformações sociais. Mas é ainda mais decisivo
exercermos, de nossa parte, a pressão que os leve a manter tais
compromissos.
Sua posição parece muito semelhante à defendida em alguns momentos
pelo subcomandante Marcos, de Chiapas. Ele sustenta que não devemos
abandonar a idéia de emancipação social. Mas, para isso, o caminho
principal não seria a tomada do poder, mas a criação de novas formas
de soberania popular.
Estou de acordo, com uma única ressalva. Não podemos ficar
indiferentes às disputas pelo poder tradicional. Para mudar o mundo,
temos de recorrer também a esta forma de pressão e de luta. Só não
podemos nos acomodar, nem acreditar que os governos farão a mudança
por nós. Teria sido preciso, no caso de Mandela - e ainda será, no
de Lula - deixar claro que não nos desmobilizamos, que estamos
atentos, que temos independência e não vamos nos confundir com o
governo. É a única saída para evitar frustrações.
* Publicado em Porto Alegre 2003: 28/01/2004
http://www.portoalegre2003.org/publique/cgi/public/cgilua.exe/web/te
mplates/htm/1P4OP/view.htm?editionsectionid=243&user=reader&infoid=8
365
https://www.alainet.org/pt/articulo/109318
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