A Alca, o livre comércio e o futuro da América do Sul

03/05/2004
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1. A dependência externa e a hegemonia do capital financeiro se expressam, no campo do pensamento, em duas características marcantes: a incapacidade de definir uma agenda própria de desenvolvimento e a tirania das questões de curto prazo. As sociedades que se submetem por muito tempo a essas condições perdem a capacidade de reconhecer seus próprios problemas e suas próprias potencialidades. Abandonam a idéia de definir um projeto próprio. Passam a gravitar em torno de temas artificiais e importados. No caso do Brasil, bom exemplo é o intenso debate em torno da criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), mais uma entre tantas imposições de fora para dentro. Surgida a partir de uma decisão e de uma proposta do Estado norte-americano, a Alca – se vier a existir – permitirá o livre fluxo de mercadorias, serviços e capitais dentro do espaço hemisférico. É o nosso assunto do mês. Pela natureza deste texto, e pelo fato de realizarmos, no âmbito do LPP, um acompanhamento detalhado da evolução das negociações (acompanhamento publicado mensalmente nesta página), faremos uma abordagem geral da questão, tentando entender os problemas de fundo nela envolvidos e evitando descrever passo a passo os caminhos, bastante erráticos, das negociações em curso. 2. A proposta original dos Estados Unidos para a Alca – proposta que enfrenta dificuldades, mas não foi abandonada – era muito abrangente. As tarifas de importação seriam drasticamente reduzidas e, no limite, depois de esgotado um prazo, abolidas; nenhum país poderia proteger sua indústria, que passaria a ficar exposta à competição continental, independentemente das condições reais de competitividade. Todas as compras governamentais – não só dos governos nacionais, mas também dos estaduais e municipais – teriam de ser feitas por meio de licitações oferecidas, em igualdade de condições, a empresas nacionais e estrangeiras (oriundas dos países que aderissem ao tratado), ficando proibidas a incorporação, nesses contratos, de cláusulas que fixassem obrigações adicionais aos investidores. As áreas de saúde, educação e previdência, entre outras, seriam consideradas serviços comuns, ficando também abertas ao controle externo; em vez de serem espaços de cidadania, regulados por políticas públicas, passariam a ser, cada vez mais, espaços mercantis. A legislação sobre propriedade intelectual, copyright, patentes, segredos comerciais e marcas seria mais restritiva que a da Organização Mundial do Comércio (OMC), tendo como modelo a própria legislação dos Estados Unidos. Quanto aos investimentos, os governos seriam proibidos de definir políticas que favorecessem os investidores nacionais, mesmo que fosse apenas para compensá-los por deficiências estruturais ou de natureza sistêmica (tributação excessiva, infra- estrutura deficiente, etc); a definição de investimento seria a mais ampla possível, de modo a incluir todas as formas de ativos: ações, concessões, contratos, títulos de dívida, etc. Investidores privados passariam a desfrutar de um estatuto legal antes reservado apenas a Estados nacionais; o investidor de um país membro da Alca teria direito de recorrer a uma arbitragem internacional (no âmbito do Banco Mundial, por exemplo) para questionar decisões de um Estado, que assim aceitaria ser julgado por uma Corte situada fora de seu espaço de soberania. O poder regulatório dos Estados seria praticamente reduzido a zero, com o correspondente aumento da margem de manobra de empresas multinacionais. Os governos seriam proibidos de estabelecer critérios (por exemplo, usar um mínimo de fatores de produção locais), compromissos (por exemplo, de transferência de tecnologia) ou requisitos de desempenho (por exemplo, metas de exportação) para investidores de outros países membros; também seria proibido definir qualquer tipo de preferência para bens produzidos no próprio país. A circulação de capital seria liberada: os investidores teriam o direito de transferir recursos para dentro ou para fora de qualquer país da Alca sem restrições, seguindo as taxas de câmbio do mercado; isso significaria garantir, por tratado internacional, livre fluxo de divisas e conversibilidade plena das moedas. 3. Para conduzir negociações tão amplas, o Congresso dos Estados Unidos, paradoxalmente, concedeu um mandato muito restrito ao Executivo daquele país: nos termos da resolução em vigor (chamada Trade Promotion Authority, ou TPA), só são negociáveis no contexto da Alca os temas que interessam aos Estados Unidos, remetendo-se para o âmbito da Organização Mundial do Comércio todos os demais (legislação anti-dumping, agricultura, etc.). Isso despertou, desde logo, sérias dúvidas quanto à possibilidade de um acordo, pois o Estado norte-americano nunca emitiu uma sinalização clara de que aceitaria abrir seu mercado doméstico nos setores em que sua competitividade é menor. Na verdade, a iniciativa da Alca veio acompanhada, nos últimos anos, de um aumento do protecionismo, especialmente dirigido àqueles setores (aço, têxteis, calçados, suco de laranja, açúcar) em que o Brasil é mais competitivo. Pode ser coincidência, mas também pode ser uma estratégia de negociação. O paradoxo das pressões norte-americanas sobre o Brasil, na direção do livre comércio, fica claro quando se sabe que o grupo dos quinze principais produtos exportados pelo Brasil paga tarifa de importação de 45,6% (média ponderada) para entrar nos Estados Unidos. Inversamente, os quinze produtos mais exportados pelos Estados Unidos pagam 14,3% no Brasil. Além disso, há toda sorte de barreiras não tarifárias – sanitárias e técnicas, que incluem condições de licenciamento de produtos, embalagem, ingredientes utilizados, rotulagem, etc – de identificação bastante complexa e sujeitas a regras pouco objetivas. Por fim, há os mecanismos específicos de defesa comercial. Coerentes com uma longa história prévia, em que prevaleceu o protecionismo, os Estados Unidos são um péssimo exemplo quando se trata de liberdade comercial e abertura de mercados. 4. Embora sempre esboçando resistências, o Brasil, nos últimos anos, foi sendo enredado em um processo de negociação que durante muito tempo seguiu a agenda e o cronograma definidos pelos Estados Unidos. Com a posse do novo governo, em janeiro de 2003, o Ministério das Relações Exteriores, sob a chefia de Celso Amorim, adotou uma política negociadora mais dura, que no limite admite a possibilidade de que o acordo não seja assinado, ou então seja substancialmente desidratado, com a formação daquilo que se passou a chamar de "Alca light": haveria um tratado geral minimalista, que poderia ser complementado por acordos bilaterais entre países. Ao mesmo tempo, Antônio Palocci (Fazenda), Roberto Rodrigues (Agricultura), Luís Fernando Furlan (Desenvolvimento) e Henrique Meirelles (Banco Central) defendem uma negociação "construtiva", que conduza efetivamente à formação da Alca, buscando-se obter concessões norte-americanas setor a setor. Nosso governo está, pois, dividido nessa questão. 5. Como pano de fundo da negociação em curso, há sinais crescentes – e preocupantes – de que o Brasil parece estar conformado com a atual divisão internacional do trabalho, concentrando seus esforços em extrair maiores vantagens de sua condição de exportador de produtos primários. Isso se reflete em declarações reiteradas do presidente Lula, que apontam numa mesma direção. Ouçamos o que ele disse logo depois da reunião da OMC em Cancún: "Em nenhum momento estamos pedindo qualquer benefício ou privilégio. O que estamos pedindo é que os países desenvolvidos façam uma política de comércio exterior em que sejamos tratados com igualdade. Nós queremos apenas a oportunidade de competir livremente." Lula tem-se apresentado no cenário internacional como o campeão do "verdadeiro" livre comércio, combatendo a hipocrisia dos países ricos, que dizem defender essa causa, mas não a praticam. É aí que mora o perigo. Pois, se o Brasil, como diz Lula, quer "competir livremente" com os Estados Unidos, é forçoso reconhecer que a adesão à Alca – uma Alca talvez modificada, em relação à indecente proposta norte-americana original – permanece sendo uma ameaça real. Ao contrário do que muitas vezes se dá a entender, a posição de Lula não é incompatível com os interesses fundamentais dos Estados Unidos. Sobre isso, Armando Boito escreveu: "A política de Lula colide com os interesses dos produtores rurais estadunidenses, com os do comércio de produtos agrícolas daquele país e com um setor do Estado que entende ser importante uma política de autonomia agrícola por razões de segurança nacional. (...) Porém, o setor mais reacionário da burguesia estadunidense, o grande capital financeiro, não parece apoiar a política protecionista, pelo menos na sua forma e no seu radicalismo atuais. O capital financeiro quer que o Brasil obtenha divisas para continuar pagando, em moeda forte, os juros da dívida. (...) [Por isso,] The Wall Street Journal aplaudiu, em editorial, a pressão do governo Lula contra os subsídios agrícolas que 'desnaturam o livre comércio'." O tema merece, como se vê, uma reflexão cuidadosa. 6. Os fundamentos da posição defensora do livre comércio são bem conhecidos: ele seria o caminho para a prosperidade coletiva. Em um ambiente de ampla exposição à concorrência, as vantagens competitivas se distribuiriam de acordo com as potencialidades específicas de cada país. Com o tempo, cada um encontraria o lugar que lhe permitiria a inserção mais vantajosa (comumente identificada com a sua dotação de fatores de produção) no comércio global, e a soma das inserções mais vantajosas para cada um representaria a situação mais vantajosa para todos. Para construí- la, ainda segundo essa visão, é preciso maximizar o potencial dos fluxos de comércio, e a melhor forma de fazer isso é eliminar todas as barreiras que protegem ineficiências ou reproduzem situações de relativo isolamento. Políticas específicas de proteção, indução ao desenvolvimento e industrialização passam a ser condenadas. As origens históricas dessa posição também são bem conhecidas. Realizada a Revolução Industrial, a economia política inglesa foi dominada pela idéia de que a agricultura tenderia a operar com rendimentos decrescentes, pela incorporação de terras piores, o que conduziria toda a economia, no limite, a um estado estacionário, com concentração do excedente nas mãos dos detentores da renda da terra. Para que a Inglaterra escapasse desse destino – que, segundo se imaginava, provocaria o colapso de sua indústria –, o Parlamento inglês, sob influência de David Ricardo, adotou nas primeiras décadas do século XIX o princípio do livre comércio, que na prática significava a abertura do país à importação de bens agrícolas, os únicos produzidos pelos demais países. Estabeleceram-se assim as bases de uma divisão internacional do trabalho em que a Inglaterra se especializava em bens industriais e um enorme conjunto de países se especializava em bens primários. Para impedir que esses países repudiassem o arranjo, a potência defensora do livre comércio construiu o maior império até então conhecido, de modo a garantir, pela força, que os espaços agrícolas permanecessem sob controle do centro. O livre comércio, desde então, tem sido freqüentemente uma imposição dos impérios. Hegemônica na Inglaterra, essa visão nunca foi unânime na economia política, na Europa ou fora dela, nem mesmo no século XIX. Basta lembrar que o principal livro de Friedrich List, pai da moderna economia alemã, chama-se Sistema nacional de economia, e que os Estados Unidos adotaram políticas fortemente protecionistas durante todo a sua longa fase de desenvolvimento industrial. Eis o que dizia Abraham Lincoln: "Não sei muito a respeito de tarifas no comércio exterior, mas sei isto: quando compramos produtos fabricados lá fora, ficamos com os produtos e os estrangeiros ficam com o dinheiro. Quando compramos produtos fabricados dentro do nosso país, ficamos com os produtos e com o dinheiro." A questão de fundo é simples: o livre comércio fortalece e aprofunda a divisão internacional do trabalho existente em cada momento. Por isso, ao longo da história, os países que ocupam o centro do sistema-mundo (Inglaterra no século XIX, Estados Unidos no século XX) defendem essa prática, enquanto os países retardatários e periféricos (Estados Unidos do século XIX, países asiáticos e latino-americanos no século XX) procuram formas de defender-se de uma exposição em campo aberto, que lhes impediria de desenvolver sua própria base produtiva. Estes últimos países precisam selecionar os influxos que lhes chegam do centro do sistema, de modo a compatibilizá-los com o conjunto de exigências e necessidades de suas próprias sociedades nacionais. Se não fizerem isso, não conseguem definir projetos próprios e ficam cada vez mais para trás. 7. A reflexão sobre comércio internacional e mecanismos de proteção foi substancialmente aperfeiçoada, na América Latina, pelos trabalhos de Raúl Prebisch. Seu principal argumento pode ser assim sintetizado: o comércio exterior de países periféricos apresenta forte assimetria, com exportações concentradas em bens primários e de baixo valor agregado, e importações de bens e serviços mais intensivos em capital, técnica e conhecimento. A dinâmica desses dois subconjuntos é muito diferente. Pois, na medida em que a renda das sociedades cresce, diminui a participação relativa do primeiro subconjunto de bens (elasticidade-renda menor do que 1), seja pela menor utilização de matérias-primas nos produtos finais, seja pela descoberta de novos materiais sintéticos, seja pelo aumento relativo da participação dos bens industriais e dos serviços na cesta de consumo das populações. O inverso também é verdadeiro: os países ricos produzem, em maior proporção, os bens cuja demanda cresce mais do que o crescimento da renda (elasticidade-renda maior do que 1). Qualquer debate sério sobre comércio internacional deve partir da constatação dessa assimetria. Por causa dela, políticas de proteção aplicadas no centro e na periferia do sistema têm conseqüências bem diferentes. A proteção dos mercados dos países centrais, quando atinge os produtos ofertados pela periferia, retarda o crescimento e aumenta a vulnerabilidade dos países periféricos, reduzindo assim sua capacidade de contribuir para o crescimento do comércio mundial, visto como um todo. A proteção seletiva dos mercados dos países periféricos, ao contrário, ao atuar no sentido de corrigir as diferenças de elasticidades-renda, ajuda a maximizar o comércio mundial. Pois, por definição, os países periféricos em via de modernização continuarão necessitando importar no limite de suas possibilidades, e por isso farão sempre o maior esforço exportador que esteja ao seu alcance. A proteção seletiva de seus mercados permitirá diminuir sua vulnerabilidade externa, tornando mais completa a sua base produtiva e maior a sua renda interna, sem diminuir (e até aumentando) o volume de suas importações. Esse tipo de proteção alterará apenas a composição dessas importações, concentrando-as naqueles produtos que os países pobres não têm condições de produzir. Como se vê, Raúl Prebish desmontou o argumento liberal em seus próprios termos, pois a adoção de níveis adequados de proteção pelos países periféricos, ao aumentar sua renda sem diminuir sua propensão global a importar, maximiza – ao contrário de minimizar – o potencial do comércio mundial. Por isso, ele dizia, "a confiança do GATT [hoje Organização Mundial do Comércio] no livre jogo das forças de mercado e a proposta, dela decorrente, de reduzir igualmente as tarifas só seria correta se se aplicasse a países com estruturas econômicas homogêneas." Ou seja: quando o centro se abre para receber exportações da periferia, a periferia responde aumentando suas importações oriundas do próprio centro. Quando a periferia se abre da mesma maneira, a recíproca não é verdadeira. Neste caso, o déficit externo dos países periféricos tende a agravar-se rapidamente, forçando-os a aumentar seu endividamento (e sua fragilidade) ou a reduzir suas importações. Portanto, além de não ser justo, não é economicamente eficiente submeter às mesmas regras comerciais países que apresentam estruturas muito diferentes. Num sistema internacional marcado por forte heterogeneidade, a maximização do livre comércio não coincide com a maximização do comércio. Para obter esta última, que é desejável, é preciso reconhecer o fato histórico de que as trajetórias de desenvolvimento, entre países e entre regiões, são desiguais. 8. Também ao contrário do que diz o argumento liberal, o processo de industrialização dos países retardatários nunca reforçou nenhuma tendência ao seu isolamento e ao conseqüente enfraquecimento das trocas internacionais. No caso brasileiro, isso fica nítido quando se observam, no auge desse processo, a imensa afluência de capital e de populações estrangeiras em direção ao nosso território, bem como o incremento e a diversificação do nosso comércio externo. A industrialização não reduz, mas aumenta, a necessidade de importar. Na medida em que ela avança, o estrangulamento externo é sucessivamente reposto, e mesmo agravado, pela necessidade de comprar no exterior máquinas, equipamentos, peças, insumos, etc., exigindo que se aumente, em paralelo, a capacidade de exportar. Por fim, esse processo tampouco produz uma tendência à ineficiência sistêmica. Como regra geral, qualquer empreendimento industrial começa a funcionar em escala inferior à sua escala ótima. Isso é ainda mais nítido no ambiente de economias periféricas. Por isso, numa primeira fase, que pode ser mais ou menos longa, a mera comparação de custos de bens nacionais com bens importados similares freqüentemente mostra resultados desfavoráveis à produção local. Mas o fato de os custos internos serem mais altos que os preços de importação não implica que essa indústria seja antieconômica para o país. Não tem sentido comparar isoladamente custos industriais internos com preços de importação (por esse critério, nenhum país retardatário deveria industrializar-se). O relevante é comparar o aumento da renda nacional decorrente da expansão industrial com o que teria sido obtido se os mesmos recursos tivessem sido investidos nas atividades exportadoras necessárias para sustentar as importações dos bens que passaram a ser produzidos internamente. É esse critério – o critério econômico por excelência – que mostra a racionalidade do esforço de industrialização e a necessidade de protegê-lo. Por tudo isso, ao apresentar-se como o campeão do "verdadeiro livre comércio", o presidente Lula, um pouco por deslumbramento, um pouco por ignorância, um pouco por irresponsabilidade, rompe com a melhor tradição do pensamento econômico latino-americano e adere ao discurso tradicionalmente hegemônico nos países centrais. 9. Voltemos à Alca. Muitos dizem que não podemos ser contra ela porque não sabemos como será. As negociações estão em curso. No artigo "Como será a Alca", escrito para a Agência Cartamaior, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Itamaraty, refutou com muita clareza esse argumento. "A Alca", diz Samuel, "terá de ser muito semelhante ao Nafta, acordo de livre comércio que engloba os Estados Unidos, o Canadá e o México. (...) Terá de ser compatível com o disposto no artigo XXIV do GATT-94, acordo que faz parte da OMC e que estabelece as condições para o reconhecimento da Alca pela OMC e por seus membros." Para ser compatível com a legislação internacional, a Alca acarretaria a eliminação de todas as barreiras a, no mínimo, 85% do comércio hemisférico, medido em valor, no prazo de até dez anos. Além disso, como vimos, os Estados Unidos desejam que a Alca, a exemplo do Nafta, inclua um conjunto enorme de outros fluxos, além das mercadorias, de modo que "o eventual acordo terá de ser compatível [também nesses temas] com as normas da OMC". Mas não teria sentido fazer a Alca para apenas reproduzir nela as normas da OMC, que já estão em vigor. Por isso, os Estados Unidos, coerentemente, insistem em obter o que chamam de normas "OMC-plus", ainda mais favoráveis aos interesses das suas empresas multinacionais. O mesmo raciocínio se aplica às comparações entre Alca e Nafta: a Alca, diz Samuel, só terá sentido se incluir normas "Nafta-plus": "As normas do Nafta já se aplicam às relações econômicas entre os três países que constituem em conjunto cerca de 88% do PIB das Américas (...). As dificuldades para a aprovação do Nafta pelo Congresso norte-americano em 1994; as críticas de certos setores da sociedade norte-americana à sua implementação; a aprovação por apenas um voto, na Câmara dos Deputados, da Trade Promotion Authority (TPA); a firme negativa norte-americana em negociar o que chamam de leis de defesa comercial (anti-dumping, anti-subsídios, salvaguardas); a recente legislação norte- americana que concede amplos subsídios de proteção à produção e à exportação agrícola; e a lista de 300 produtos 'sensíveis' – tudo isso revela com clareza as dificuldades, para os próprios Estados Unidos, de negociar e aprovar qualquer esquema que se afaste das linhas gerais do Nafta. Por outro lado, seria difícil aos Estados Unidos, principal membro do Nafta, conceder ao Brasil tratamento mais favorável do que aquele que concedeu, nos mesmos casos, ao Canadá e ao México. (...) A Alca será como o Nafta. Naquilo que for diferente, será diferente para ser mais favorável aos Estados Unidos." 10. Trata-se de uma má notícia. Pois a experiência do Nafta é passível de muitos questionamentos. Artigo recente da economista indiana Jayat Gosh mostra que a uniformização de normas e a eliminação de barreiras resultaram em maior controle da economia mexicana pelas corporações norte-americanas, com a multiplicação das chamadas indústrias "maquiladoras", que só realizam em território mexicano as últimas etapas do processo produtivo, etapas que agregam menos valor e utilizam mão-de-obra barata. Também para a agricultura mexicana, a mais frágil desse acordo regional, os impactos foram desastrosos. As estatísticas oficiais mostram que houve aumento da concentração fundiária, falência de pequenos e médios produtores, explosão de desemprego no campo (com 6 milhões de postos de trabalho a menos), aumento do êxodo para as cidades e das migrações para o exterior. A agricultura mexicana ficou totalmente submetida ao agronegócio dos Estados Unidos. Em 1992, o México importava US$ 790 milhões em alimentos. Em 1999, cinco anos depois de inaugurado o Nafta, importava US$ 8 bilhões, inclusive produtos que antes exportava, como arroz, batata e algodão. Hoje, importa dos Estados Unidos 50% do que consome. A "livre competição" com uma agricultura que goza de altos subsídios e tem uma base técnica mais avançada foi fatal. 11. Se a Alca será como o Nafta, tampouco procedem comparações com a experiência da União Européia. Para compreender a natureza da Alca, é instrutivo ressaltar essas diferenças. (a) A União Européia começou a nascer depois da Segunda Guerra Mundial, com a formação da Comunidade do Carvão e do Aço, uma iniciativa conjunta de países europeus para reconstruir suas siderurgias e seus sistemas energéticos destruídos pelo grande conflito bélico. Depois, na década de 1960, essa iniciativa se desdobrou no Mercado Comum Europeu. Realizando inúmeros estudos e passos intermediários, a integração européia foi progredindo lentamente, sendo testada e avaliada, até chegar recentemente à forma atual. O processo levou cerca de 50 anos. Os Estados Unidos querem inaugurar a Alca em 2005, sem nenhum passo intermediário. (b) A União Européia integrou parceiros que mantêm entre si um relativo equilíbrio. A Alemanha, maior economia da Europa, representa cerca de 25% do PIB regional, seguida por economias do porte da França, Inglaterra, Itália e Espanha. A menor destas – a Espanha, com PIB de US$ 900 bilhões – é significativamente maior que a maior economia da América Latina. No Hemisfério Americano, a situação é bem diferente. De um lado estão os Estados Unidos, a maior economia do mundo, dominada por empresas gigantescas, com alta produtividade e tecnologia de ponta, com um produto interno bruto de quase US$ 12 trilhões. Esse país detém, sozinho, cerca de 80% da capacidade produtiva do Hemisfério (ou seja, quatro vezes o PIB de todos os demais países somados, inclusive o Canadá e o México). Seu orçamento militar é da mesma ordem de grandeza do PIB do Brasil! De outro lado estão os demais países latino-americanos, o maior dos quais é o próprio Brasil, com pouquíssimas empresas de grande porte, quase nenhuma marca com peso internacional, com um produto interno bruto de apenas US$ 500 bilhões. A Alca "integra" um gigante e um grupo de pequenos atores. (c) A União Européia concedeu cidadania continental aos povos. Todos passaram a portar o mesmo passaporte europeu, podendo deslocar-se livremente pelo continente, escolhendo onde morar e trabalhar. O mercado de trabalho foi unificado. Na Alca, garante- se a livre circulação de capital e de mercadorias (fatores que a sociedade norte-americana tem em abundância), mas não de pessoas (fator que as sociedades latino-americanas têm em abundância). Os Estados Unidos não aceitam sequer negociar a remoção, ou mesmo diminuição, de barreiras à entrada de trabalhadores latino- americanos em seu território. (d) A União Européia criou uma moeda única, emitida por um Banco Central Europeu, onde todos os Estados do continente têm representação. Não há indícios de que os Estados Unidos aceitem abrir mão de sua moeda para compartilhar uma moeda continental com a Argentina, o Brasil, a Bolívia e a Guatemala. A moeda da Alca será o dólar, cuja emissão continuará sendo uma prerrogativa exclusiva do Estado norte-americano, segundo os interesses de sua economia. (e) A União Européia reconheceu a existência de disparidades econômicas e sociais significativas no continente e adotou políticas ativas de desenvolvimento para os países e regiões menos desenvolvidas. A Alca é apenas business. Embora em um continente muitíssimo mais desigual que a Europa, não prevê nenhum fundo de desenvolvimento, nenhuma compensação por perdas, nenhuma ajuda a regiões ou setores deprimidos ou prejudicados. 12. Em síntese: cada Estado europeu, visto isoladamente, era fraco para enfrentar a competição mundial pela riqueza e o poder no século XXI, diante dos Estados Unidos já dominantes e da Ásia em ascensão. A União Européia foi concebida para manter os povos europeus nessa disputa, por meio da criação de um Estado continental. O caso da Alca é justamente o inverso: concebida de forma unilateral pelos Estados Unidos, ela elimina a possibilidade de um projeto comum latino-americano, integrando o continente, de forma subordinada, à área regional sob controle direto da grande potência. Em depoimento ao Congresso dos Estados Unidos, o general Collin Powell, secretário de Estado do governo Bush, foi direto ao ponto: "Com a Alca, nosso objetivo é garantir para as empresas norte-americanas o controle de um território do Ártico à Antártida, com livre acesso em todo o Hemisfério, sem nenhum obstáculo ou dificuldade, para os nossos produtos, serviços, tecnologia e capital." As autoridades norte-americanas, como se vê, não hesitam em dizer quais interesses defendem. Principalmente quando falam para as instituições de seu próprio país. 13. Com a extinção dos espaços econômicos nacionais em todo o Hemisfério americano, do Alasca até a Patagônia, ficaria anulada a capacidade de cada Estado conceber e aplicar suas próprias políticas de desenvolvimento, conforme a especificidade de cada país. As conseqüências econômicas são evidentes. Ouçamos, primeiro, Paulo Nogueira Batista Jr.: "A Alca acarretaria uma formidável perda de autonomia na condução de aspectos essenciais da nossa política econômica. De todas as negociações internacionais em curso, essa é a que apresenta a maior ameaça à soberania do país. O Brasil ficaria comprometido, por acordo internacional, a manter seu mercado interno sempre aberto para as exportações dos Estados Unidos. As empresas brasileiras se veriam expostas à vigorosa concorrência das grandes corporações norte-americanas, com todo o seu poderio financeiro, tecnológico e comercial. O Brasil teria de abrir mão de uma série de instrumentos de política governamental, tornando-se incapaz de implementar um projeto nacional de desenvolvimento. Ficariam fora do nosso alcance muitos instrumentos e políticas a que recorreram sistematicamente os países hoje desenvolvidos, inclusive os Estados Unidos, ao longo de seu processo histórico de desenvolvimento. (...) Uma área de livre comércio com os Estados Unidos produziria efeitos destrutivos em boa parte do sistema produtivo brasileiro, especialmente nos setores mais avançados, em que a primazia das empresas norte-americanas é inquestionável (bens de capital, componentes eletrônicos, química, eletrônica de consumo, informática, etc). A economia brasileira tenderia a regredir à condição de economia agrícola ou agroindustrial e produtora de bens leves ou tradicionais." A questão relevante, então, passa a ser: que impacto tem, sobre as estruturas internas da sociedade brasileira, vista como um todo, um esforço de crescimento liderado pela exportação de bens agrícolas ou agroindustriais? Pode o crescimento brasileiro assumir esse perfil, garantindo um mínimo de justiça social e estabilidade? A resposta é não. O ano de 2003 foi exemplar quanto a isso. De um lado, as exportações brasileiras tiveram um crescimento espetacular (+14,2%); o saldo comercial subiu de US$ 13 bilhões para US$ 24 bilhões; o agronegócio prosperou e exultou. De outro lado, a economia como um todo teve crescimento negativo (-0,2%); o desemprego e a pobreza aumentaram; a instabilidade social e política cresceu. Recolocar o Brasil na condição primário-exportadora, mais de 70 anos depois da Revolução de 1930, é um retrocesso inviável, que teria conseqüências dramáticas. Basta lembrar que, hoje, temos um parque industrial diversificado e 83% da nossa população vivem em cidades. 14. Ouçamos, de novo, Samuel Pinheiro Guimarães: "A Alca é um projeto de criação de um território econômico único, onde não haverá nenhuma barreira para a circulação de bens. Nessas condições, o Estado brasileiro adbicará da possibilidade de ter política comercial, porque não poderá mais existir nenhum obstáculo ao comércio. Se abdica da possibilidade de ter política comercial, abdica também da possibilidade de ter política industrial, porque abre mão de uma parte importante dessa política que é a proteção a novos investimentos. Sem política industrial, perde o sentido ter política tecnológica, pois ela só faz sentido se gerar inovações que vão reduzir custos no processo produtivo." Há, ainda, outros riscos talvez mais graves: a Alca exigiria o aprofundamento das políticas de abertura comercial e financeira praticadas a partir da década de 1990. Ficaríamos impedidos de reassumir o controle dos fluxos de capitais que transitam por nosso espaço econômico. Sem o controle desses fluxos, o Banco Central permanecerá refém do capital especulativo, com sua permanente ameaça de abandonar a moeda nacional e buscar abrigo no dólar. A instabilidade do real tenderá a agravar-se, com crescente perda da nossa capacidade de estabelecer políticas monetárias coerentes com o nosso desenvolvimento. A exigência de livre fluxo de divisas e a conversibilidade plena das moedas, que vimos no início, ameaçaria a própria sobrevivência das moedas nacionais no continente, pois, num espaço econômico unificado, se tornaria mínima a capacidade dos países de defender suas moedas de movimentos especulativos cada vez mais intensos. Instalada a Alca, a exigência seguinte será o uso do dólar como referência permanente, ou seja, será a constituição formal da "área do dólar" na economia mundial. A moeda emitida pelos Estados Unidos passaria a organizar diretamente toda a atividade econômica continental, o que corresponderia a concentrar no Estado norte-americano, com exclusividade, a mais importante prerrogativa da soberania nacional. As elites latino-americanas seriam plenamente absorvidas nesse espaço econômico alargado, como sócias menores, passando a denominar toda a sua riqueza em moeda forte, rompendo definitivamente quaisquer laços de solidariedade com os seus espaços nacionais de origem. Daí a atração que certos setores, como o do agronegócio, sentem diante da proposta da Alca. 15. O que se passa na América Latina tem relação direta com o que acontece no resto do mundo. A formação da União Européia e o fortalecimento da China mostram que o sistema internacional está transitando para uma nova ordem, com vários centros de poder. Os espaço econômico da União Européia rivaliza em tamanho com o dos Estados Unidos, e o euro ameaça a disputar, no mundo, a primazia com o dólar. As economias do Leste da Ásia, por sua vez, crescem muito rapidamente e formam uma área cada vez mais integrada, com o Estado chinês cumprindo um papel regional cada vez mais relevante. Nos três principais continentes – a América do Norte, a Europa e a Ásia – surgem megaestados regionais, comandando grandes economias, com larga base territorial e populacional. A América do Sul, o Oriente Médio a África são as grandes regiões do mundo que ainda não definiram os seus próprios projetos regionais e não constituíram, nem estão em via de constituir, os seus megaestados. Estão marginalizadas. O Oriente Médio vive sob ocupação militar. A África está à deriva, devastada pelas guerras internas, a pobreza e a Aids. Se a ordem internacional fosse justa e solidária, o mundo inteiro teria de realizar um mutirão de ajuda a esses povos que, escravizados no passado, construíram, com o seu sacrifício, a riqueza de outras regiões. Quanto à América do Sul, duas grandes possibilidades estão colocadas. A primeira, que tem na formação Alca seu centro de articulação, reforçaria e tornaria quase irreversíveis os processos de fragilização do continente, com sua incorporação formal a uma área regional sob controle direto dos Estados Unidos. A segunda é defendida por um número cada vez maior de cidadãos: a constituição de um projeto próprio latino-americano que garanta a união dos nossos povos e a inserção soberana dos nossos países no sistema internacional. Seria a realização das aspirações dos mais generosos pensadores e estadistas da nossa história, de Simon Bolívar a José Martí, de Ernesto Guevara a Darcy Ribeiro. Os dois projetos estão em choque neste momento, e o continente terá de decidir por um deles nos próximos anos. Projeto de análise da conjuntura brasileira
Laboratório de Políticas públicas da UERJ
Fundação Rosa Luxemburgo
Página na internet: www.outrobrasil.net
Data do fechamento: 2 de maio de 2004
https://www.alainet.org/pt/articulo/109855?language=es
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