Ser disponível
16/06/2004
- Opinión
Ele fez de tudo na vida. Foi ateu, marxista, mercenário da Legião
Estrangeira. Nas guerras matou muita gente. De repente se
converteu. Fez-se monge sem sair do mundo. Foi trabalhar como
estivador. Mas todo o tempo livre dedicava-o à oração e à
meditação. Durante o dia recitava mantras. Estranhamente tinha um
jeito próprio de rezar. Pensava: se Deus se fez gente em Jesus,
então foi como nós: fez chichi, choramingava pedindo peito, fazia
biquinho com as coisas que o incomodavam como a fralda molhada. No
começo Jesus teria gostado mais de Maria, depois mais de José,
coisas que Freud explica. E foi crescendo como nossas crianças,
brincando com formigas, correndo atrás dos cachorrinhos e,
maroto, levantando os vestidinhos das meninas para vê-las
furiosas como imaginou Fernando Pessoa.
E então rezava a Nossa Senhora imaginando como ela ninava Jesus,
como lavava no tanque as fraldinhas e como cozinhava o mingau
para o Menino as comidas fortes para o bom José. E se alegrava
interiormente com tais matutações porque as sentia e vivia na
forma de comoção do coração. E chorava com freqüência de alegria
espiritual.
Depois decidiu fazer-se religioso, da ordem dos Irmãozinhos de
Foucauld, desses que vivem pobres no meio dos mais pobres.
Continuou no mundo. Apenas encontrava de tempos em tempos a
fraternidade. Criou uma pequena comunidade na pior favela da
cidade. Tinha poucos discípulos. Apenas três que acabaram indo
todos embora.
Só, agregou-se então a uma paróquia que fazia trabalho popular.
Trabalhava com os sem-terra e com os sem-teto. Corajoso,
organizava manifestações públicas em frente à Prefeitura e puxava
ocupações de terrenos baldios. E quando os sem-terra e sem-teto
conseguiam se estabelecer, fazia belas celebrações ecumênicas com
muitos símbolos.
Mas todos os dias, por volta das 10 da noite, se enfurnava na
igreja escura. Apenas a lamparina lançava lampejos titubeantes de
luz, transformando as estátuas mortas em fantasmas vivos e as
colunas eretas, em estranhas bruxas. E lá se quedava até as 11
horas. Todas as noites. Impassível, olhos fixos no tabernáculo.
Um dia fui procurá-lo na igreja. Perguntei-lhe de chofre: meu
irmão (não vou revelar o nome para não ser identificado), você
sente Deus, quando depois dos trabalhos, se mete a escutá-lo na
igreja? Ele te diz alguma coisa?
Com toda a tranqüilidade, como quem acorda de um sono profundo,
apenas disse: Eu não sinto nada. Há muito tempo que não escuto
sua voz. Já senti um dia. Era fascinante. Enchia meus dias de
música. Hoje não escuto mais nada. Talvez Deus não me falará nunca
mais. E então, retruquei eu, por que continua, todas as noites, ai
na escuridão sagrada da igreja? Eu continuo, respondeu, porque
quero estar disponível. Se Ele quiser se manifestar, sair de Seu
silêncio e falar, eu estou aqui para escutar. E se Ele quiser
falar e eu não estiver aqui? Pois, cada vez, Ele vem somente uma
única vez. Como outrora.
Deixei-o em sua plena disponibilidade. Sai maravilhado e
meditativo. É por causa desses que o mundo não é destruído e Deus
continua a manter sua misericórdia. Sobre a humana perversidade:
porque eles vigiam e esperam, contra toda a esperança, o advento
de Deus que talvez nunca acontecerá.
* Leonardo Boff, teólogo e escritor
https://www.alainet.org/pt/articulo/110106
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