Os Cristãos e a Solidariedade com os pobres
28/06/2004
- Opinión
Não sei se há ou deve haver uma solidariedade comum a todos os
religiosos ou todas as religiosas. Cada instituto tem sua
inspiração específica e a sua maneira de se relacionar com os
pobres: esta maneira tem o seu fundamento na vida, na prática e
nas exortações dos fundadores ou das fundadoras. Porém, todos os
que fazem profissão religiosa aceitam a orientação evangélica que
é comum a todos os cristãos. Por isso, prefiro não buscar o que
seria específico dos religiosos, mas antes o que é específico dos
cristãos.
Hoje em dia, estamos assistindo ao surgimento de uma nova classe:
os novos pobres, que são o produto do modelo dito de globalização
ou neoliberal que se está implantando no mundo inteiro pela
pressão das grandes entidades financeiras que conseguiram dominar
as nações, os Estados e até a opinião pública dos povos que,
voluntária e cegamente se entregaram aos seus algozes.
1. Os novos pobres
Até há poucos anos atrás, quando se fala em pobres na América
Latina, refere-se à herança social e econômica do sistema
colonial, que não foi superado e sim renovado nos primeiros 150
anos da independência. Os "antigos" pobres são os camponeses
submissos ao latifúndio ou os camponeses que fugiram ou foram
expulsos da terra e se refugiaram nas cidades.
Esses pobres nunca foram ricos, nunca estiveram numa situação
realmente humana. Os seus pais, avós e antepassados sempre foram
pobres: são os subdesenvolvidos.
Nos últimos 40 anos, a opinião comum pensava que, com o
"desenvolvimento" se poderia vencer essa pobreza e dar acesso a
uma condição humana a todos os "subdesenvolvidos". Os mais
radicais achavam que tal desenvolvimento exigiria uma revolução
prévia porque as classes dirigentes nunca promoveriam as reformas
necessárias a um verdadeiro desenvolvimento. De todas as
maneiras, achava-se que, com políticas adequadas, poderia-se
superar o problema da pobreza. Bastaria definir e aplicar uma boa
política social. A educação seria um dos grandes instrumentos da
elevação social dos pobres.
Políticos, trabalhadores sociais, sindicalistas, educadores,
psicólogos, sociólogos, antropólogos pensavam que, com todos os
recursos que estavam à sua disposição, eles ou elas poderiam
libertar os pobres da sua miséria e dar-lhes a possibilidade de
uma vida verdadeiramente humana.
Passaram 40 anos. Não somente os antigos pobres ainda estão aí,
mas a eles se juntaram os novos pobres. A própria existência dos
novos pobres põe em discussão todas as teorias antigas sobre
desenvolvimento, libertação dos pobres, eliminação da pobreza. As
próprias doutrinas sociais da Igreja tinham adotado as teorias
comuns do tempo: os pastores exortaram os cristãos a colaborarem
com as obras ou as políticas de "desenvolvimento" econômico,
social, cultural, integral, tudo com a convicção de que os
agentes sociais poderiam resolver o problema da pobreza graças
aos seus conhecimentos científicos e técnicos, graças aos
recursos dos governos e da caridade cristã. Achavam que obras
como Caritas, Misereor e outras poderiam realmente contribuir
para superar o desafio da pobreza na América Latina. Hoje, em
dia, tudo isso caiu por terra. Não somente a antiga pobreza não
foi superada, mas uma nova pobreza surgiu ao lado dela, uma nova
pobreza que se revela mais aguda, mais triste, mais profunda do
que a antiga.
Quais são os novos pobres? São as vítimas do novo sistema
econômico e social que desde os Estados Unidos se está
implantando no mundo inteiro. Este sistema entrou no Brasil em
1994. Ainda não está completo, mas tudo indica que será
implantado completamente porque as forças financeiras dominantes
o impõem.
Os novos pobres são os desempregados: os que perderam o emprego e
nunca mais o poderão recuperar. Terão que viver de biscates, de
pequenos comércios legais ou ilegais. São também os jovens que
não têm acesso a um emprego estável e sabem que para eles nunca
haverá "futuro". Nasceram numa família que podia viver
decentemente, mas estão condenados à queda sem fim.
Todas as promessas dos políticos são puro blá-blá-blá: o número
de desempregados vai aumentar e o número de jovens sem esperança
de emprego vai aumentar também. Não se produz nenhuma inversão do
processo que provoca o desemprego.
Esta pobreza não é exclusiva do Brasil. Existe em primeiro lugar
nos Estados Unidos onde vai crescendo a cada ano. Existe na
Europa e ali também vai crescendo sem parar. Cresceu
espantosamente nos países asiáticos que entraram no modelo
neoliberal: Coréia do Sul, Tailândia, Malásia, Indonésia. Está em
todos os países latino-americanos que adotaram o modelo: por
exemplo no México que teve uma queda terrível em 1994. Vai
crescendo no Brasil também: o Brasil não está fora do mundo, não
vai escapar das conseqüências do modelo.
O desemprego gera a "miséria". Ora, é diferente a miséria de quem
nunca conheceu outra coisa e a miséria de quem já teve emprego,
vida organizada, esperanças para o futuro, confiança na melhoria
da condição no futuro.
Os camponeses pobres do interior podem viver muito pobremente,
ser materialmente miseráveis; mas nunca conheceram outra coisa:
estão felizes, mais felizes do que o povo da cidade. Comem feijão
e farinha, bebem a água que o carro-pipa vem trazer todos os
dias e agradecem a Deus porque podem comer e beber.
Na cidade é diferente. Os novos pobres já conheceram outra coisa.
Por isso, a sua condição é pior. Um morador da rua em São Paulo
pode até comer melhor do que um camponês sem terra no sertão da
Paraíba. Porém, a miséria moral é muito maior. O pobre do campo
não se sente degradado, excluído, rejeitado. O desempregado da
cidade sente tudo isso.
Os novos pobres caem numa degradação humana imensa. Perdem o
sentimento da sua dignidade. Sofrem uma humilhação sem limite
pelo fato de ter que depender de esmolas, depender dos pais e da
aposentadoria tão fraca que o país lhes deixa. Perdem a
esperança, o respeito de si próprios. Os pobres antigos eram
alegres. Os novos pobres são tristes, ressentidos, violentos,
destruidores de si próprios e de todo o seu ambiente.
Recentemente a editora Vozes publicou uma tradução do livro
publicado em francês sob a direção de Pierre Bourdieu: A miséria
do mundo. Este livro é uma coleção de entrevistas com diversas
pessoas que são os novos pobres na França. São milhões na França.
Os brasileiros que visitam a França, não sabem nada. Mesmo os
religiosos voltam com uma visão de turistas. Vêem o que mostram
as agências de turismo e não sabem como é a vida de muitos
milhões de franceses. O que se lê ali sobre os novos pobres na
França, vale também para o Brasil.
Os novos pobres assistem impotentes à desintegração da sua
família. A família era o refúgio e o sustento dos antigos pobres.
No seio da família, alimentavam a esperança, a confiança em si
próprios, o respeito a si próprios.
Entre os novos pobres, a família morre. Cresce a violência do
homem contra a mulher e os filhos. O homem acaba saindo e
abandonando mulher e filhos ou expulsa a mulher e introduz na
casa outra mulher. Nenhum compromisso é possível. Os jovens não
casam ou, se casam, o seu casamento desfaz-se depois de poucos
meses. Uma vez desfeita a família, é a solidão completa, a falta
de recurso moral, a ruína do sentimento de responsabilidade.
Quem já viveu numa casinha decente, desespera-se quando deve se
mudar para uma favela, ou pior, sente-se condenado a morar na
rua. A população das favelas cresce. Não é somente pela chegada
de camponeses que fogem do campo. Trata-se de pessoas que já
tiveram emprego, já tiveram casa, já tiveram algum conforto
material e viviam respeitados pela vizinhança.
A miséria moral é um flagelo que não existia antes. Quantos
sacerdotes, religiosas e religiosos descobriram a alegria, a
calma, a paz, as virtudes cristãs no meio dos pobres! Entrar no
meio dos pobres era tomar um banho de Evangelho. Eram os antigos
pobres. Entre os novos pobres, o que se acha é angústia, raiva,
sentimento de impotência diante de um destino implacável.
Muitos entre os novos pobres tornam-se vítimas de males piores
ainda do que a pobreza.
Muitos caem numa depressão psicológica. Um dia um psicólogo
social dizia-me que no Recife a terceira parte da população sofre
de depressão. Bem pode ser que essa proporção não seja exagerada.
Pessoas angustiadas, perseguidas pelas contas que não podem
pagar, desmoralizadas pelas brigas entre marido e mulher, com os
filhos adolescentes, com os vizinhos, com a polícia, perseguidos
pelo medo aos narcotraficantes que governam o bairro ou a favela,
ou pela polícia porque, muitas vezes, não se sabe a diferença
entre o policial e o delinqüente.
Os adolescentes tornam-se escravos das drogas. Entram nas bandas
rivais, tornam-se escravos de chefes das quadrilhas. Desta
maneira entram nas brigas, nos confrontos armados, aprendem a
violência.
Entre os jovens, o roubo é uma instituição. É parte do sistema e
os comerciantes sabem qual é a porcentagem de mercadoria que
devem considerar como perdida. Sempre houve roubos, sempre houve
delinqüência. Mas hoje em dia o roubo nos supermercados, na rua,
o assalto é uma instituição. Ninguém poderá extirpar esta
instituição. É o meio de viver de um mundo extenso. Impossível
colocar um policial ao lado de cada adolescente.
A violência é para os rapazes, a prostituição para as moças. Para
ambos, trata-se de sobreviver. O ponto final é a Aids que ameaça
todo o mundo dos novos pobres.
Antigamente, os trabalhadores sociais ofereciam os sindicatos, as
associações de moradores, associações de mulheres, associações
esportivas como forças para vencer a pobreza. Hoje em dia, tudo
isso está em pleno recesso. Os sindicatos estão em desintegração
no mundo inteiro, as associações morrem, a convivência e a
participação tornam-se impossíveis dadas as condições morais em
que vivem as pessoas. A sobrevivência no imediato é a única
preocupação. Não há mais espaço nem liberdade mental para pensar
em outra coisa. Suscitar associações populares supõe muitas
etapas prévias de recuperação humana num povo que sofreu a
humilhação de uma degradação total.
A família já foi a salvação dos pobres. A associação já foi a
esperança dos pobres. Já foi, já foi. Hoje em dia, não há
salvação para os novos pobres. Todos os caminhos estão fechados
porque a sociedade em que vivem é de um egoísmo total,
ilimitado, sem piedade alguma. O sistema gera constantemente
novas levas de novos pobres. Os que despedem trabalhadores, não
sabem o desastre humano que provocam. Não querem saber e invocam
as leis do sistema. Os que introduzem ou mantêm o sistema, não
sabem o que fazem ou não querem saber. Criam ruínas irreparáveis.
Destroem milhões de vidas humanas que nunca serão recuperadas e
condenam as novas gerações a uma sobrevivência sem esperança.
Pois quem não tem acesso a um trabalho, a uma função social, não
existe, está excluído da existência humana, não tem dignidade
nenhuma e sabe que não tem.
Os antigos mendigos tinham a sua dignidade porque eram uma das
funções sociais previstas no quadro social. Na sociedade cristã,
os mendigos têm o seu lugar previsto. Os novos pobres não têm
lugar nenhum. Não deveriam existir. A sua existência já incomoda
a sociedade.
Os dirigentes da sociedade ainda têm o atrevimento e a falta de
vergonha de repetir que o desenvolvimento do sistema no fim vai
salvar os pobres e que o crescimento seria para todos: o
enriquecimento dos ricos seria o caminho de salvação para os
pobres. Como o modelo neoliberal poderia reduzir a pobreza se
todos os dias fabrica novos pobres? O próprio sistema gera
pobreza. Como imaginar que um dia iria restituir trabalho e
dignidade a esses homens e essas mulheres que excluiu?
Nos Estados Unidos os defensores do sistema exaltam os novos
empregos: 30 milhões de novos empregos! Mesmo assim, ainda há uma
cifra grande de desempregados cujo número não se sabe porque as
estatísticas são sistematicamente falsificadas. A maior parte dos
desempregados não cabem na nomenclatura que define o desemprego
oficial nos Estados Unidos.
Ora, os novos empregos são precários, sem nenhuma garantia de
continuidade. São a tempo parcial. Não conferem direitos sociais.
A maioria consiste em vender comida ou bebida ou pequenos objetos
de consumo. A categoria que mais cresce nos Estados Unidos são as
polícias privadas. Os policiais particulares são muito mais
numerosos do que os policiais públicos. A segurança é função
privada nos Estados Unidos. Os ricos têm todos os seus guarda-
costas. Por sinal, no Brasil também a categoria que mais cresce
é a profissão de segurança particular.
Já que o roubo e assalto se tornaram institucionais, também a
segurança virou instituição indispensável. No futuro, de cada
dois cidadãos, um será ladrão e o outro guarda policial. Este é
o modelo de sociedade que se está preparando. Os dirigentes não
se importam: nunca ganharam tanto dinheiro e, graças à
especulação global, nunca foi possível ganhar tanto dinheiro sem
fazer nada e tão depressa.
No Brasil também existem os novos empregos: empregos de guardas,
camelô, guardas de automóveis, carregadores, vigias e
assaltantes. Tais empregos não resolvem o problema dos novos
pobres: não libertam da pobreza. Mantêm a insegurança, a
humilhação, a impotência.
2. Que solidariedade?
O nó do problema é o emprego. Sem emprego todo o resto é
paliativo. Ora, o emprego depende do modelo de sociedade
escolhido. O Brasil escolheu outro modelo. Cada um sofre as
conseqüências das decisões tomadas livremente. O Brasil não tinha
obrigação de escolher o modelo que escolheu. Não tinha obrigação
de modernizar as indústrias sacrificando o emprego para o lucro
da empresa e, por conseguinte, o enriquecimento dos acionistas e,
sobretudo, dos executivos. Nada disso é imposição de "leis" do
mercado. Cada um escolhe as leis da sua preferência. O Brasil
podia ter escolhido um modelo de indústria menos tecnicizada, um
modelo de comércio mais atrasado, um sistema de comunicações
menos custoso. Qual é a vantagem que tem a maioria dos
brasileiros se podem ver a TV de 100 emissoras diferentes do
mundo inteiro, se somente entendem português? Qual é a vantagem
que têm se podem consultar por Internet a biblioteca do
Congresso dos Estados Unidos? Quantos vão aproveitar? Ora, para
fazer tudo isso é preciso sacrificar o emprego e levar milhões de
pessoas a uma vida de desespero. Pois, quem perde emprego, quase
sempre perde para sempre ou sempre encontra um emprego inferior
ou se contenta com o "informal", isto é, a miséria. O sistema
destrói milhões de vidas humanas.
O que podemos fazer nós? Podemos mudar o sistema? Não podemos.
Solidariedade seria mudar o sistema. Porém, não está ao nosso
alcance. Os 30 milhões de brasileiros que têm tudo não querem
mudar. O milhão de brasileiros que concentra todos os poderes,
não sacrificará nenhum dos seus privilégios. Diante desse muro
de resistência, nós não podemos nada.
Os novos pobres estão perdidos. Essa nova juventude está perdida.
Nunca terá acesso a uma vida digna. Então, a questão é: como nós
seremos solidários de um povo condenado, prisioneiro de um
sistema social fechado?
Para a maioria desses excluídos, a única coisa que podemos fazer,
é estar presente , estar com eles, manifestar compreensão,
simpatia, ajuda às escondidas. Trata-se dos aidéticos, dos
drogados, dos moradores de rua, as crianças de rua, as
prostitutas, os favelados, os habitantes dos cortiços, os
profissionais do assalto, os vendedores de drogas, os ilegais,
os foragidos. Todos esses são vítimas do desemprego. Ou quase
todos. O remédio seria emprego. Porém, não temos emprego para
todos, somente para alguns poucos.
Para a maioria, somente é possível o apostolado de Madre Teresa
de Calcutá. Nunca se pensou que o Brasil chegaria a esse ponto.
Sempre se disse: Madre Teresa não salva os pobres de sua miséria,
não tem visão política, não oferece solução. Eis que chegamos a
esse ponto: não temos solução para oferecer. Tudo o que se faz no
país gera mais pobreza. O Brasil chegou ao nível da Índia. Não
somente o Brasil, mas todos os países que escolheram o novo
modelo de sociedade, que deram prioridade à tecnologia, ao
desenvolvimento econômico.
O pior da nova pobreza é a frieza: viver sem afeto, sem ternura,
sem calor de relações humanas, sem intercâmbio, sem poder dar,
sempre entrando em choque com um muro de resistência porque a
sociedade inteira opõe um muro de incompreensão. Sempre a mesma
resposta: não há nada para você!
O que podemos oferecer é uma presença humana, o calor de um pouco
de amor e muita paciência. São todos humanamente "doentes",
"enfraquecidos", "carentes" de tudo e, sobretudo, de amor porque,
com o desemprego, todos os laços sociais se desfazem. Qual será o
último amigo, a última amiga?
E a religião, pode ajudar? Pode ajudar, dependendo da religião.
Todos conservam algumas lembranças da religião da sua infância,
embora haja cada vez mais jovens que nunca ouviram nada de
religião. Porém, os fragmentos de religião tradicional não ajudam
muito. Quem mais ajuda, são os crentes.
Pois, os crentes ajudam a lutar. Todos lutam para sobreviver,
para melhorar a sua favela ou o seu rincão debaixo da ponte.
Todos lutam, mas muitos lutam cada vez menos. Os crentes
comunicam energia. Dão coragem até para lutar contra os vícios: o
crente consegue vencer o álcool, a droga, a fornicação, a
violência. A religião dos crentes mobiliza todas as energias
para a pessoa se levantar, rejeitar as tentações. É uma religião
de esperança para os excluídos. É muito simples. Não tem teorias
complicadas. Não ensina dogmas incompreensíveis, não separa o
clero do povo, pois os pastores são da mesma cultura, da mesma
raça, da mesma cor.
A luta dos pobres é simples: melhorar a casinha, melhorar o
caminho, melhorar a comida, conquistar água, se possível em casa,
aumentar o espaço para diminuir a violência. A religião ajuda:
luta contra os vícios e, portanto, reduz a violência nas
relações humanas. Torna o ambiente familiar mais acolhedor para
as crianças. Claro que não resolve todos os problemas: ajuda, mas
sobretudo dá mais esperança.
Essa religião pode tornar-se opressora também, dominadora,
exigente. É tão difícil ter uma religião que seja boa para os
pobres. Algumas coisas são boas, mas os responsáveis sempre usam
as coisas boas para impor coisas ruins que atrapalham a vida ou
querem domina-la.
Como os religiosos poderiam manifestar solidariedade? Descendo
das suas alturas, fazendo como Jesus que podia ficar apegado à
sua condição de Filho de Deus mas se tornou semelhante aos
escravos, semelhante até na morte.
Tornar-se semelhante aos pobres é muito difícil. Somente com uma
vocação cristã é possível. Somente um cristão, uma cristã poderia
fazer isso.
Sucede que na evolução da sociedade moderna, a distância entre
ricos e pobres aumenta sem cessar. Os ricos dispõem cada vez
mais facilidades, cada vez mais objetos úteis. Têm um modo de
viver cada vez mais sofisticado e tornam-se escravos do seu modo
de viver. Descer da sua montanha para ir ao encontro dos pobres é
cada vez mais difícil. Chegamos ao momento em que para muitos é
coisa impossível: já não há mais contato possível, já não há mais
comunicação. São dois mundos separados. Pois a cultura nova é
cada vez mais seletiva, mais absorvente: transforma a
personalidade de tal modo que é impossível a pessoa sair do
invólucro cultural em que se tornou prisioneira. Os burgueses de
hoje, inclusive as classes médias são de tal modo prisioneiros
da sua cultura que não agüentam mais nem o contato físico com o
mundo popular.
Mas então, não é mais possível ajudar os pobres a sair da sua
pobreza? Para que servem então todas as obras do
desenvolvimento? Quanto às obras de desenvolvimento, por
experiência sabemos que não foram muito eficientes. Quantos
milhões foram doados pelas agências de ajuda ao desenvolvimento e
se perderam? No Nordeste podemos dizer que praticamente houve
milhares de projetos de desenvolvimento e todos fracassaram.
Deram emprego a alguns técnicos, a alguns agentes de
desenvolvimento ou assistentes sociais e mais nada. Duraram 2 ou
5 ou 10 anos e depois desapareceram. Deixam como lembranças
velhos papéis, ferramentas enferrujadas, alguns móveis de
escritórios estragados e provavelmente inscrições na
contabilidade das agências de financiamento, como relatórios
cheios de otimismo e entusiasmo nos seus arquivos. As obras
católicas não foram mais eficazes do que as outras, e, às vezes,
menos.
No entanto, nos 30 anos que vão de 1960 a 1990, muitos pobres do
campo conseguiram subir. Foram para a cidade, acharam emprego,
trabalharam, construíram sua casa, fizeram com que os filhos
estudassem. Naquele tempo um filho de camponês pobre podia montar
uma empresa de pequeno porte em São Paulo ou qualquer outra
cidade importante. Podia promover-se socialmente, tornar-se
presidente do clube local de futebol. A sua mulher podia ser
presidente da associação de moradores ou da associação de pais e
mestres.
Para os novos pobres, tudo isso é impossível. A distância é
grande demais entre o abismo de impotência em que se acha o
pobre e a altura cultural das organizações atuais.
Dezoito por cento (18%) dos franceses não sabem ler nem
escrever. Sabem desenhar algumas letras e decifrar algumas
letras. Sabem reconhecer o roteiro do ônibus. Mas não sabem
entender, nem responder a um formulário enviado pela prefeitura.
Como poderiam entrar no mundo dos computadores? Certamente, a
metade dos brasileiros está na mesma condição. Ora, a pertença à
sociedade que está em marcha supõe cada vez mais condições. Uma
criança que nasce na favela, já está condenada. Nunca sairá da
pobreza, nunca será uma pessoa realizada como pessoa.
O pecado da nossa sociedade é grande! E quem de nós não participa
na manutenção desta sociedade? Quem está sem pecado?
3. Modernidade e pobreza
O programa da modernidade era vencer a pobreza. Dizia por
exemplo o conde de Saint-Simon, precursor do positivismo: graças
à técnica e a ciência, a idade dos "engenheiros" vai resolver o
problema que 18 séculos de cristianismo não puderam realizar:
suprimir a pobreza. Os seus sucessores no FMI, no Banco Mundial e
no governo brasileiro continuam prometendo a mesma coisa. Até
agora, o resultado é negativo. Ao invés, a modernidade criou
novas formas de pobreza e aumentou a distância entre ricos e
pobres. Nunca, no entanto, chegamos ao extremo dos tempos
presentes. Quem ainda pode acreditar nas promessas da ciência e
da técnica?
Ciência é poder. Tecnologia é poder. Os antigos já sabiam disso e
todas as civilizações souberam disso e por isso sabiam conter e
disciplinar os depositários dos conhecimentos superiores. Sabiam
que a ciência pode ser útil, mas que é, em primeiro lugar,
perigosa.
A ilusão veio com a modernidade. Diante do progresso
extraordinário, totalmente inédito, das ciências e das
tecnologias, imaginaram que tinham descoberto a chave da salvação
da humanidade. As capacidades da inteligência humana pareciam
sem limites: logo mais descobririam os meios de responder a todas
as necessidades humanas: no horizonte está o paraíso para todos.
A ciência criaria abundância para todos. De fato criou
abundância, mas não para todos. Poderiam criar duas vezes, dez
vezes mais abundância, mas faltam consumidores. Essa abundância
não é para todos.
A indústria mundial trabalha a 60% da sua capacidade. Há
capitais suficientes para multiplicar as indústrias. Mas os
capitais não são para o benefício de todos.
Lembremo-nos: a primeira finalidade do poder é o próprio poder,
mais poder. O poder da ciência não anda nos ares, livre de donos.
A ciência tem dono, a técnica tem dono. Sempre aparece alguém
para comprá-la, sujeitá-la ao seu próprio poder. Ciência e
tecnologia são meios para aumentar o poder dos que lhes fornecem
meios e condições.
A escola de Frankfurt já tinha explicado isso há 50 anos atrás.
Todos os pós-modernos deram inúmeras explicações sobre os
diversos aspectos desse destino da ciência e da tecnologia
moderna.
Ciência e tecnologia são cada vez mais financiadas por entidades
econômicas poderosas, ou então não se desenvolvem por falta de
recursos, o que é o caso muito freqüente na América Latina.
Entram a serviço dos poderes econômicos que os financiam. Os
pobres não podem financiar: a ciência não é feita para eles, nem
a tecnologia.
Os progressos da tecnologia tendem a aumentar a riqueza das
grandes empresas a fim de aumentar os capitais disponíveis para a
especulação.
Além disso, ciência e tecnologia estão também a serviço do poder
político. A metade da investigação científica e tecnológica está
a serviço da indústria de armamentos dos Estados Unidos e também,
ainda que com muito menos possibilidades, das potências
secundárias.
Os progressos nas tecnologias de comunicação servem ou às
multinacionais ou ao poder militar.
Como adaptar estas tecnologias à condição das massas pobres? Quem
poderia financiar tal tipo de investigação? Ainda vale o que
dizia naquele tempo Delfim Neto: um cruzeiro aplicado em São
Paulo rende; um cruzeiro aplicado no Nordeste é um cruzeiro
perdido.
A década dos 90 assistiu a um imenso desenvolvimento científico e
tecnológico. Também assistiu a um enriquecimento fabuloso de uma
pequena minoria e a um empobrecimento das classes baixas nos
Estados Unidos, na Europa, na América Latina. Todo o produto de
enriquecimento enorme das economias foi para os privilegiados. Aí
está a confirmação de que o progresso científico e tecnológico
está essencialmente em função das satisfações dos
privilegiados.
Por isso, quem entra nessa área da ciência e da tecnologia, que
se cuide, porque vai trabalhar a serviço de uma minoria pequena.
Outrora, os engenheiros e construtores trabalhavam a serviço dos
reis e dos príncipes, ou então do Papa e dos bispos ou dos
abades. Hoje, em dia, trabalham a serviço do governo ou das
multinacionais, o que é quase a mesma coisa. Cada um pode fazer
um exame sério do seu trabalho: quem aproveita? Qual é o
resultado final da sua pesquisa, da sua engenhosidade técnica?
Qualquer progresso científico ou tecnológico aumenta a
distância entre ricos e pobres, porque os ricos aproveitam esses
progressos para melhorar mais ainda a sua condição e os pobres
permanecem sempre no mesmo nível ou conhecem um crescimento
muito mais lento.
Desta forma, separam-se duas culturas, dois povos, dois mundos no
mesmo território. Um mundo é praticamente analfabeto, outro mundo
comunica por Internet. Um mundo come arroz com feijão; outro
mundo come alimentos importados. Um mundo trabalha no computador;
outro mundo vende roupas importadas do Paraguai ou da China na
rua. Qual é a tecnologia que ajudará o vendedor de rua?
As ciências humanas são também profundamente comprometidas com a
estrutura da sociedade tal como ela é. As ciências humanas estão
a serviço dos que mandam e a serviço da ordem tradicional.
A psicologia está sendo usada intensivamente pela indústria para
dissolver todas as raízes de descontentamento, para impedir de
antemão as manifestações dos trabalhadores. As técnicas
desenvolvem-se em função disso. A sociologia fornece ferramentas
para controlar os movimentos sociais. A pedagogia pretende
obrigar as crianças a se submeterem à disciplina da escola. Pois
a escola existe fundamentalmente para ensinar às crianças a
submissão a uma disciplina: trata-se de formar cidadãos
tranqüilizados, acalmados, conformados, dispostos a aceitar tudo
o que disserem os poderosos. O resto daquilo que se aprende na
escola na escola, se esquece imediatamente: a disciplina fica.
Quem não se submete, torna-se "excluído".
Poucos são os psicólogos, sociólogos, pedagogos que remam contra
a corrente: nunca terão lugar importante na sociedade.
O que poderiam fazer ciências e tecnologias que fosse útil para
os pobres? Precisa saber que a pesquisa científica, a invenção
tecnológica útil aos pobres não rende. Quem vai dedicar-se a uma
atividade que não rende? Quem sabe se aqui haveria lugar para
alguns religiosos?
Os pedagogos poderiam inventar uma pedagogia para os maus
alunos, os que sempre fracassam, uma pedagogia que mudasse a
disposição desses alunos em relação ao estudo. Poderiam inventar
uma educação para jovens que nunca falarão inglês, nunca
praticarão matemáticas, nunca farão experiências de física nem de
química, uma educação que ajudasse a viver uma vida de vendedor
no comércio informal, enfim, uma pedagogia que prepara os jovens
para a vida que eles terão e não para uma vida que nunca
alcançarão.
Os psicólogos poderiam inventar técnicas de tratamento para
mulheres de maridos alcoólatras, maridos desempregados, meninos
de rua, favelados que vivem no barulho a vida toda, cortiços em
que as brigas são incessantes. Poderiam ajudar as pessoas a
assumirem uma vida vivida em condições terríveis. Estas são as
pessoas que mais precisam de ajuda.
Os sociólogos poderiam inventar métodos para facilitar a
formação de grupos, associações, trabalhos comunitários entre
pessoas socialmente desarticuladas. Poderiam buscar métodos para
dar peso político a pessoas que a sociedade separa.
No Chile, o "Hogar de Cristo" já construiu um milhão de casinhas
de madeira que não custam quase nada e que eles inventaram como
refúgio de emergência para famílias sem teto. Excelente
tecnologia, modelo para os inventores. Há muito espaço para a
criatividade com a condição de não querer ganhar dinheiro.
Está claro que tudo isso é paliativo e não resolve o problema
fundamental da pobreza. Porém, o problema fundamental é emprego.
Nenhuma nação do mundo ocidental, muito menos o Brasil, está
disposta a fazer os sacrifícios necessários para dar emprego a
todos. Seria necessária uma redistribuição do produto nacional.
Impossível! Jamais as classes privilegiadas vão aceitar
sacrificar parte dos seus privilégios. Por conseguinte, o
problema real são os paliativos. Ciência e tecnologia devem
inventar paliativos para tomar a existência dos pobres mais
suportável.
A ajuda dos técnicos torna-se útil se vem para fortalecer o
trabalho dos pobres. Pois, os pobres trabalham incessantemente
para sobreviver e melhorar a sua sorte. Os favelados trabalham
para melhorar a sua favela, para conquistar o direito de
propriedade, para melhorar os serviços públicos. Os desempregados
procuram biscates, os vendedores de rua procuram melhores espaços
e melhor acesso à freguesia, os meninos de rua procuram melhores
lugares para cuidar dos carros. Todos procuram entender o que
significam as leis que se referem a eles. Todos procuram uma
medicina alternativa, comidas, roupas mais baratas, um trabalho
de formigueiro, pouco aparente, pouco visível.
No passado freqüentemente foram os técnicos que vieram com
planejamento feito para convencer os pobres de que as
necessidades deles eram aquelas do planejamento. Vinham com
idéias preconcebidas sobre os caminhos do desenvolvimento. De
modo geral, as obras de desenvolvimento eram feitas sem consultar
os interessados, como se a agência de desenvolvimento soubesse
melhor do que eles o que lhes convém.
Hoje em dia entramos numa época mais realista. Não adianta querer
forçar os pobres a entrarem num caminho que não traçaram eles
mesmos. É preciso acompanhar com paciência, caminhar mais
devagar, pensando que eles sabem melhor do que nós o que é mais
urgente para eles. Foi o que sempre ensinou Paulo Freire sem
convencer sempre os seus ouvintes que se esqueciam dos seus
ensinamentos na hora da prática.
Paulo Freire contava a história do padre que vindo de fora chegou
a uma paróquia do sertão pernambucano há uns tempos atrás. O
padre logo descobriu tremendas necessidades e quis mobilizar o
povo para dar-lhes remédio. Um domingo procurou convencer os
paroquianos da necessidade de se ter uma escola porque os meninos
não recebiam preparação para a vida adulta. Porém, ninguém
aceitou a proposta do padre. No domingo seguinte, o padre propôs
a construção de um dispensário porque as necessidades de saúde
eram imensas. Ninguém reagiu. Então, um ancião, aproximou-se do
padre e lhe disse: "Senhor padre, o sr. não vai conseguir nada
se não der satisfação primeiros aos desejos deles. Padre, eles
querem um cemitério! Porque o maior problema era o medo de que
animais viessem desenterra-los de noite uma vez que eram
enterrados em campo aberto. De fato, o padre sugeriu a construção
do cemitério e todos aceitaram com entusiasmo. Depois do
cemitério vieram a escola e o dispensário. Mas não adiantava
querer impor uma ordem de necessidades que não correspondesse ao
que estava na mente do povo.
Podemos contribuir poderosamente dando a ajuda que eles mesmos
desejam e não aquela que nós achamos mais urgente. Ora, é muito
difícil realizar esta conversão.
Antigamente dizia-se: a solução está no crescimento da economia.
Quando a economia crescer será mais fácil distribuir entre os
pobres o excedente produzido sem tocar no adquirido pelos ricos.
Na prática, não funcionou. Todo o excedente produzido vai para
os privilegiados. Se a economia crescer, todo o crescimento será
confiscado pelos que já têm tudo. Por isso, somente soluções
provisórias são possíveis.
Nesta década dos 90 apagou-se o grito dos oprimidos. A própria
Igreja deixou de gritar. Talvez um dia as multidões aprendam de
novo a gritar. No momento, são prisioneiras de uma suposta
democracia que é sistema feito para cortar-lhes a palavra.
Sistema feito para enrolar os povos porque lhes dá a impressão de
poder participar e na realidade é pura ilusão. Não participam em
nada. Todos os jogos já foram feitos e as eleições são farsa.
Um terço dos eleitores já percebeu isso, o que mostra pelo menos
que muitos pobres são inteligentes e descobriram o truque.
Os povos vão aprender a gritar de novo se houver bastante gente
no meio deles para lhes restituir a esperança de que vale a
pena.
Sobre a opção pelos pobres no quadro da vida religiosa, não se
poderia falar melhor do que o padre Geral da Companhia de Jesus,
padre Peter-Hans Kolvenbach, na conferência pronunciada na semana
social de Caracas, no dia 2 de fevereiro de 1998. A conferência
foi publicada pela revista Páginas, de Lima, nº 151, junho de
1998. Cito as seguintes palavras: "A Opção pelos pobres não tem
tampouco como objetivo direto, imediato, a superação da pobreza,
senão a humanização dos pobres, sua personalização. Este
resultado não é uma meta externa, senão o fim ao que tem a
dinâmica da opção. Porque a opção pelos pobres é antes de tudo
uma relação, uma aliança, um jogar-se com eles a sorte. E há
que dizer que esta sorte, desde o ponto de vida da cultura
dominante, será sempre má sorte, porque sempre haverá pobres na
história. Assim, pois, a opção pelos pobres, como aliança com os
perdedores da história (que são suas vítimas) é sempre um certo
modo de perder a vida. Esse é seu preço tremendo. Por isso se
tende a silenciar ou desnaturalizar, de modo que já não seja uma
relação, senão somente uma contribuição econômica, mas que não
comprometa a pessoa".
https://www.alainet.org/pt/articulo/110159?language=en
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