Mercado contra democracia
04/07/2004
- Opinión
O Brasil estava na contramão da onda neoliberal que já se alastrava na América Latina, na década de oitenta. Reconquistávamos a democracia e, no seu bojo, construíamos uma nova constituição. Ao reafirmar direitos – Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, a chamou de “constituição cidadã” -, se chocava com a onda de mercantilização e desregulamentação que se tornava moda. Como o mercado não reconhece direitos, reconhece apenas o poder do dinheiro, a constituição foi rapidamente combatida pelos que apontava na direção do mercado e não da democracia.
Nem bem tinha sido promulgada, a constituição pós-ditadura foi bombardeada pelo então presidente, José Sarney, seu ministro da justiça, Saulo Ramos e, em seguida, por aquele que deu início, no plano da economia ao neoliberalismo no Brasil, naquela época um obscuro funcionário de terceiro escalão, que assumiu o ministério da economia no fim de feira do quinto ano do governo Sarney. Este e Saulo Ramos denunciaram imediatamente que a constituição democrática tornava o Brasil “ingovernável”. Ao afirmar direitos, exigia que fossem criadas as condições para sua satisfação. Em uma situação de desequilíbrio entre direitos e capacidade produtiva ou se fabricam mais chapéus ou se cortam cabeças. Os três deram início a esta última alternativa no Brasil, que consistiu no ataque aos direitos sociais da massa da população, em nome do controle da inflação.
Desde então o Brasil se tornou um grande exemplo de como, se a prioridade da estabilidade monetária fosse o caminho para o crescimento e a distribuição de renda – como prometeram tanto Collor, quanto FHC, por mais que agora finjam que não -, estaríamos em um país com grande expansão da economia e em uma situação social mais justa. Aconteceu o contrário: como a estabilidade monetária – o chamado “Plano Real”, que agora completa dez anos de seu lançamento – se fez às custas do crescimento e dos direitos sociais, nos tornamos um país estagnado e mais injusto.
As lições têm que ser tiradas nessa direção, a começar pelo governo atual, porque, como disse Lula na campanha eleitoral “não vale a pena ganhar se não for para mudar a política do Malan desde o primeiro dia”. Não foi o que aconteceu. Primeiro ela foi mantida – apesar de ter sido caracterizada, justamente, como uma “herança maldita” – para se fazer uma transição sem perturbações e porque a situação seria muito grave para se promover alterações. (Lembremo-nos das metáforas de que “não se muda de médico durante o tratamento de uma doença grave”.)
Mas rapidamente as alegações passaram a ser outras, com Palocci dizendo que manteria o atual superávit fiscal por dez anos, se pudesse e, ao bmesmo tempo, afirmando para FHC que sua política havia sido mantida. O que era “herança maldita” passou a ser a política do governo eleito para a “mudança”, com as conseqüências que se conhece – tanto quanto nos dez anos anteriores, melhoria dos índices financeiros e deterioração de todos os índices fiscais.
O plano de estabilização monetária – a forma assumida pelo neoliberalismo entre nós – promoveu a hegemonia do capital financeiro, na sua modalidade especulativa, na economia. Os maiores ganhadores desse plano foram os bancos e o capital especulativo, em detrimento dos investimentos produtivos – especialmente os voltados para o mercado interno e, especialmente, para o consumo popular, extremante contraído. Perderam prioritariamente os que vivem do seu trabalho, submetido a um feroz processo de precarização e superexploração, com mais de metade dos brasileiros sem carteira de trabalho assinada – isto é, não são cidadãos, por não ser sujeitos de direitos nos planos econômico e social.
A constatação consensual de que a economia continuou estagnada e que a situação social do país não melhorou, coloca uma tarja negra no aniversário do Plano Real e deveria servir de alerta para os que o prolongam, dos descaminhos em que colocam o Brasil ao manter e reproduzir a prioridade da estabilidade monetária, no desdobramento da qual não haverá nem desenvolvimento, nem distribuição de renda, mas lucros especulativos maiores e menos direitos sociais. Dez anos depois o Brasil tem uma moeda mais estável, mas é um país menos democrático ainda, porque mais injusto.
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