Crise da Modernidade

05/07/2004
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A modernidade, período que durou os últimos quatro séculos, está em crise. O início desse período coincide com a Renascença, a descoberta da América e do Brasil, e a passagem da era medieval, feudal, para o capitalismo. Desconfio, como bom mineiro, que hoje vivemos, não uma época de mudanças, mas uma mudança de época. No milênio que começa, temos algo imprecisamente chamado de pós-modernidade, mas que será bem diferente de tudo o que possuímos, atualmente, em termos de referências ou paradigmas. Na Idade Média, toda a cultura girava em torno da figura divina, centrada na idéia de Deus, ao passo que, na modernidade, a cultura está centrada no ser humano. Um dos símbolos que melhor expressa esta passagem é a pintura de Michelangelo ­ "A Criação de Adão" - no teto da Capela Sistina: Deus Pai todo encoberto de mantos, e com a barba longa - representando o teocentrismo da época -, perante um homem desnudo, fortemente atraído para a Terra. Apesar disso, o homem estende o dedo para não perder o contato com o transcendente, com o divino. A desnudez de Adão na Capela Sistina traduz bem o advento do antropocentrismo e a revolução que a modernidade representa em nossa cultura e em nossas concepções. Outro episódio característico da modernidade foi quando mister Halley, em 1682, baseado exclusivamente em cálculos matemáticos _ pois não dispunha dos aparelhos que conhecemos hoje _, previu que um cometa voltaria a aparecer dentro de 76 anos. Na ocasião, muitos o consideraram louco. Halley morreu em 1742, antes de se completarem aqueles 76 anos. Po-rém, muitos ficaram atentos e, exatamente na data prevista, em 1758, o cometa que hoje leva o seu nome passou sobre os céus de Londres. Era a glória da razão! "Se é assim," disseram, "se a razão é capaz de prever os movimentos dos astros como demonstraram Copérnico e Galileu - e depois Newton, um dos pilares da nossa cultura -, então a razão vai resolver todos os dramas humanos! Vai acabar com o sofrimento, a dor, a fome e a escravidão. Vai criar um mundo de luzes, de progresso, de saciedade, de alegria!" O problema é que, quatro séculos depois, o saldo não é dos mais positivos. Os dados são da FAO: somos seis bilhões de pessoas no planeta, das quais 1,1 bilhão passando fome. Dizem alguns que o problema da fome decorre do excesso de bocas, e propõem o controle da natalidade. Embora seja a favor do planejamento familiar, não aceito este argumento. O que há é concentração de riqueza. O planeta produz, hoje, alimentos suficientes para saciar o estômago de dez bilhões de pessoas, quase o dobro da humanidade atual. Portanto, o problema está na distribuição injusta das riquezas. A crise da modernidade culmina no momento em que vemos o sistema capitalista alcançar a hegemonia, com o fim do socialismo no Leste Europeu, e adquirir um novo caráter, chamado de neoliberalismo. Quais as chaves de leitura dessa mudança do liberalis-mo para o neoliberalismo? Sob o liberalismo, falava-se muito em desenvolvimento. Juscelino Kubitschek dizia: "Vamos desenvolver o Brasil, avançar cinqüenta anos em cinco". Nos anos sessenta surgiu a teoria do desenvolvimento, que incluía também a noção de subdesenvolvimento; criou-se a Aliança para o Progresso, destinada a "desenvolver" a América Latina. A própria palavra desenvolvimento tem certo componente ético, porque ao menos se imagina que todas as pessoas deverão ser beneficiadas por ele. Já a "modernização" é uma palavra que não tem conteúdo humano, mas sim forte conotação tecnológica. Modernizar é equipar-se tecnologicamente, competir, conseguir que a minha empresa, a minha cidade, o meu país, estejam próximos do paradigma primeiro-mundista, ainda que isso signifique sacrifício para milhões de pessoas. Outrora ouvíamos falar em trabalho. Lembram-se de quando sentíamos orgulho de dizer: "Olha, meu pai educou a família trabalhando trinta anos na rede ferroviária". O trabalho era fator de identidade. Ainda alcancei uma geração que tinha o privilégio de falar em "vocação". Era comum os adultos perguntarem a um adolescente: "Qual é a sua vocação?" Posteriormente, deixou-se de falar em vocação. Falava-se em "profissão": "Qual a sua profissão?" Hoje só se fala em "emprego" - e olhe lá! Quem consegue um emprego dá graças a Deus. Não se menciona mais o trabalho, porque infelizmente o fator de identidade social não é o trabalho, é estar no mercado. O mercado é o novo fetiche religioso da sociedade em que vivemos. Antigamente, nossos avós consultavam a Bíblia, a palavra de Deus, diante dos fatos da vida. Hoje consulta-se o mercado: "Será que o dólar desvalorizou? Subiu a Bolsa?" O grande drama das pessoas, hoje, é como se inserir no mercado. Precisam estar no mercado, têm que ser competitivas, fazer reengenharia, disputar espaços, sem levar em conta conotações éticas. O mercado, hoje, é internacional, globa-lizado, move-se segundo suas próprias regras, e não segundo as necessidades humanas. Frei Betto é escritor, autor de "A Obra do Artista ­ uma visão holística do Universo" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/110213
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