Fome Zero Mundial

16/09/2004
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O velho Marx tinha razão: ainda não saímos da pré- história da humanidade. Somos 6,1 bilhões de habitantes nesta nave espacial chamada Terra, dos quais 4 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza. Vivem com menos de US$ 30 por mês. Desses, 1,2 bilhão estão abaixo da linha da miséria, dos quais 841 milhões estão ameaçados pela desnutrição crônica. A cada 24 horas morrem de fome no mundo 100 mil pessoas, entre as quais 30 mil crianças com menos de 5 anos de idade. No dia 11 de setembro, a derrubada das torres gêmeas de Nova York completou três anos. Houve imensa comoção internacional. A cada dia a fome faz desabar 10 torres gêmeas repletas de crianças. Ninguém chora nem se comove. Por quê? Dias 20 e 21 de setembro, por ocasião da abertura da Assembléia Geral da ONU, o presidente Lula lançará em Nova York o Fome Zero Mundial. Estará respaldado por cerca de 55 chefes de Estado, inclusive o papa João Paulo II. Se a fome é o principal fator de morte precoce e vergonha para a civilização do século XXI, por que não provoca mobilização? Por uma razão cínica: ao contrário do terrorismo e da guerra, do câncer e de outras doenças, a fome faz distinção de classe. Só atinge os miseráveis. E, em geral, apoiamos campanhas em benefício próprio. Nem sempre demonstramos sensibilidade quando se trata de direitos alheios. Lula aprendeu, com a história da escravidão no Brasil, que um problema social só encontra solução quando se transforma numa questão política. Durante mais de 300 anos a escravidão foi considerada legítima e legal. Mas pouco antes de 1888 ela passou a ser tratada como uma questão política. Veio, então, a sua abolição oficial (pois todos sabemos que ainda há, em nosso país, fazendeiros que mantêm trabalhadores em regime de escravidão). O Fome Zero beneficia, hoje, milhões de brasileiros (as), entre os quais 5 milhões de famílias que recebem renda mensal do programa Bolsa Família. Por ser uma política pública não- assistencialista, e sim de inclusão social, atrai a atenção de outros países. Em função desse interesse já estive no Paraguai, na Argentina, no Peru, na Guatemala, na Itália, na Espanha e na ONU. Há iniciativas semelhantes no Chile, na Argentina, no México e na Guatemala. Cresce a consciência de que a fome é um flagelo a ser imediatamente combatido. Devemos nos empenhar para que a pobreza, à semelhança da escravidão e da tortura, seja considerada crime hediondo, grave violação dos direitos humanos. O presidente Lula quer evitar no exterior o que logrou no Brasil: que se pretenda combater a fome apenas com distribuição de alimentos. Se um país rico envia toneladas de comida às regiões mais pobres do mundo ele incorre em quatro erros: justifica seus subsídios agrícolas; destrói as culturas locais; aumenta a dependência dos beneficiários; e favorece os políticos corruptos que distribuirão os donativos. Já bastam o fracasso da Aliança para o Progresso, nos anos 60, e da Revolução Verde, na década seguinte, para sabermos por onde não ir. A proposta é mobilizar recursos mundiais, dos quais o Brasil não será beneficiário, para não levantar suspeitas de advogar em causa própria. Esses recursos, supervisionados pela ONU, financiariam projetos de empreendedorismo, cooperativismo e desenvolvimento sustentável nas regiões mais pobres. Pois fome não se combate com donativos, nem apenas com transferência de renda. Precisa ser complementada por políticas efetivas de mudanças estruturais, com as reformas agrária e tributária, capazes de desconcentrar as rendas fundiária e financeira. Tudo isso amparado por uma política ousada de insumos e créditos às famílias beneficiárias, que devem ser alvo de um intenso trabalho educativo na linha de Paulo Freire, de modo a se tornarem protagonistas socioeconômicas e sujeitos políticos e históricos. "Eu tive fome e me deste de comer", disse Jesus encarnado na figura do pobre. Combater a fome é uma exigência evangélica, um imperativo ético, um dever de cidadania e solidariedade, para que possamos tirar a humanidade dessa pré-história em que bilhões de pessoas ainda não têm assegurado o direito animal mais elementar - comer. * Frei Betto é escritor, autor e organizador, em parceria com outros autores, de "Fome Zero" (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/110551?language=en
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