Os livros e o livro
26/09/2004
- Opinión
Certamente muitos de nós ainda se recordam do belo filme de Denys Arcand, "Invasões bárbaras". Nele, o personagem principal, um intelectual de esquerda prostrado por um câncer terminal, discute com a esposa, referindo-se ao filho, bem- sucedido executivo do mercado financeiro com as seguintes palavras: "Eu gostaria que ele tivesse lido um livro, um só livro, em toda a sua vida." O afastamento da leitura por parte da humanidade dita (ou mal dita?) letrada e um certo obscurecimento da palavra escrita devido à emergência da civilização da imagem, selvagemente impulsionada pela mídia são, sem dúvida, uma das características de nossa época. Lê-se pouco, lê-se menos, ou não se lê diretamente. A imagem, introduzida pela sétima arte, porém hoje liderada poderosamente pela televisão, absorve o cotidiano tempo livre das pessoas quase integralmente. Estas - incluídas crianças e jovens - passam em frente à telinha horas e horas, engolindo sem metabolizar um pouco de tudo, a maioria não muito construtiva nem edificante. O advento da internet deu mais um golpe certeiro na crise da leitura. Pesquisas são feitas diretamente pela rede, que entra nas bibliotecas do mundo inteiro e dali extrai dados, textos inteiros e material abundante. Da atrofia da leitura decorre uma semelhante atrofia da escrita: lê-se pouco ou nada, escreve- se cada vez menos e pior. O e-mail - grande recurso posto à disposição da humanidade para comunicar-se - vicia o escrever, fazendo-o sintético em demasia, parco e pobre. A conseqüência é uma disposição cada vez menor para produzir ou escrever textos mais longos, profundos, científicos. E igualmente para lê-los. Os textos são menores, mais curtos. Senão não serão lidos ou não poderão passar a mensagem que pretendem. O ser humano moderno tem cada vez menos tempo, menos paciência, menos disponibilidade para abrir um livro, um poema, um belo texto e saboreá-lo longamente, gratuitamente, sem esperar nenhum outro efeito senão ser tocado e afetado pela beleza, pela profundidade da mensagem, ou ser estimulado à reflexão pela seriedade do conteúdo. E, no entanto, estamos assistindo, junto com a chegada da Primavera e sua clara e fresca renovação de todas as coisas a vários eventos sobre livros bem perto de nós. Ao lado da tradicional Feira do Livro, vai haver a Primavera do Livro, onde as editoras de pequeno porte poderão mostrar suas criações. Isso nos leva a suspeitar que as profecias que anunciavam a morte do livro e da palavra escrita não são tão certas como pareciam. Há um ressurgir da fome de ler, do prazer de ler, da busca pela experiência indizível de tomar nas mãos um livro, abri-lo e decifrar seus mistérios e segredos. Também na Igreja é neste mês de setembro que se celebra o Livro maior, o Livro dos livros, que é a Bíblia. As comunidades cristãs se reúnem com mais atenção em torno das páginas deste Livro, que é o Texto da Vida, onde cremos que o próprio Deus nos fala através dos diferentes gêneros literários, da inspiração dada pelo Espírito Santo aos escritores sacros, do movimento da revelação do divino que perpassa páginas, linhas, letras e caracteres. O Cristianismo é, juntamente com o Judaísmo e o Islamismo, conhecido como Religião do livro. É neste Livro inspirado que encontrará o rosto de seu Deus, que aprenderá a pronunciar Seu nome querido, que poderá nomear Aquele que dá sentido à sua vida. Um dos sinais da maturidade da caminhada do povo de Israel com seu Deus foi justamente a necessidade sentida de registrar por escrito suas experiências, sua leitura dos fatos da vida e da história à luz da revelação desse que os libertou do cativeiro e os conduziu para a terra da liberdade, propondo-lhes uma aliança de amor jamais revogada. Pôr por escrito a palavra ouvida, escutada na oração e obedecida na prática da justiça e do direito foi o caminho do povo eleito para construir uma referência forte e duradoura para sua identidade enquanto povo. Identidade essa que se manteve através dos tempos, intocada apesar de tantas perseguições, sofrimentos, diásporas que sobre ele se abateram. Assim também os primeiros cristãos, que conviveram com Jesus de Nazaré, sentiram que era necessário deixar registrado para as gerações futuras os ditos e atos do Mestre, para que pudessem ser lidos, ruminados, aprendidos e apropriados amorosamente por todos aqueles que nele cressem e resolvessem segui-lo. A Bíblia é esse Livro, esse texto aberto como a vida, sempre re- lido e sempre re-escrito por cada novo leitor que dele se aproxima. E o que acontece com a Bíblia é paradigmático para o que é e deve ser nossa relação com os livros em geral. Sendo leitores, somos escritores também, adentrando-nos no universo literário com amor e abertura. Que a primavera e o mês da Bíblia nos possam ajudar a re-descobrir a novidade tão antiga, mas sempre tão nova, que a leitura nos pode trazer. Isso certamente nos fará mais humanos e, portanto, mais de acordo ao desejo do Criador sobre nossa vida e nosso mundo. * Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga
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