Natal, desconfortos e expectativas

22/12/2004
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É tempo de Natal. Tudo se mescla à nossa volta. É verão nos trópicos e, no entanto, há neves de algodão, trenós e Papais Noéis agasalhados do frio. À mesa, castanhas e nozes, alimentos adequados ao inverno. Tudo se mistura em nós, confunde sentimentos e atropela referências. Damos presentes aquém de nosso afeto e, alguns, além de nossas posses. O sangue que enlaça a família parece mais forte que o amor. Em plena festa religiosa, somos movidos por um consumismo compulsório e compulsivo. Seu significado cristão esconde-se em acenos nostálgicos demasiadamente frágeis para que Jesus logre quebrar a hegemonia mercantil de Papai Noel. Como pesa esta data para quem não a celebra liturgicamente! A um canto, a árvore com seus adereços coloridos e, à sua sombra, o presépio com o Menino na manjedoura. Mero artesanato. Ali dorme também o menino que fomos um dia, inebriado pela fé; agora, de olhos fechados, teme abraçar o apelo divino e comemorar o aniversário de Jesus. Sim, há abraços e beijos, presentes que se trocam entre taças de vinho e copos de cerveja. A alegria, como olhos de mulher, é marcada por um risco de sombra: ninguém blefa no mais íntimo de si mesmo; lá onde reside, sufocado, o nosso verdadeiro eu, aquele que sonhamos libertar um dia. Sabemos que as crianças estão felizes com o novo tênis, os jogos eletrônicos, as bonecas que choram sem emoção e falam sem inteligência. Quem é Jesus para esta geração que não freqüenta catecismo e cujos pais têm pudor de rezar com os filhos e dar-lhes as mãos nas veredas que conduzem ao Transcendente? Na falta de mística, muitos, na adolescência, procuram o êxtase em doses químicas. Sem disso terem consciência, gostariam que, atrás da seringa, por dentro da drágea ingerida, entre a fumaça ou o pó que se aspira, Deus irrompesse. Neste Natal, alguns de nós vão ao culto e oram em família. Outros preferem a solidão de um mosteiro, a missa cantada em gregoriano, todos os presentes contidos num simples gesto de carinho. Porém, o que fazer? A TV universaliza a publicidade, a publicidade impregna a mercadoria de fetiche, o fetiche traz a ilusão de que os presentes, uma vez desembrulhados, irradiam felicidade. Assim, deixamos nos escravizar pelas convenções, sem ao menos indagar o que significam e se nos convêm. Dentro de poucos dias, recarregaremos a despensa e a geladeira para o revéillon e, de novo, os mesmos abraços e afagos, com a vantagem de não dar presentes. Apenas desejar boa sorte. Talvez, no íntimo, o propósito de que "daqui pra frente tudo vai ser diferente". Beber menos, balancear a comida, deixar o cigarro, dar mais tempo à família. Ou, quem sabe, ir um passo além do próprio umbigo: uma causa solidária, uma instituição de caridade, um projeto que minore a dor dos excluídos. Preocupar-se menos com o dinheiro e ocupar-se mais com os outros. Propósitos de renascer. Para que outros tenham vida. Então, sim, será Natal. Nascimento. Como Jesus propôs a Nicodemos, sem que seja preciso retornar ao ventre materno. Deixar que o Espírito dispa-nos do homem e da mulher velhos para nos revestir do novo ser, aquele que tem seu protótipo e paradigma no Menino que dorme no presépio e, agora, desperta dentro de nós, faminto de Deus e de justiça. * Frei Betto é escritor, autor de Gosto de uva – escritos selecionados (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111063
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