homenagem a Manuel Vázquez Montalbán

20/12/2004
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Exército Zapatista De Libertação Nacional. México Novembro de 2004. Para: Dona Ana e Don Daniel Barcelona, Catalunha, Estado Espanhol. Guadalajara, Jalisco, México. (.) Não soube como iniciar. Afinal, esta carta trata de ser apenas um abraço fora do tempo, com o anacronismo típico que define os zapatistas e as pessoas que sentimos próximas. Eu queria falar-lhes de Don Manuel Vázquez Montalbán. Sei que pode parecer absurdo que seja eu a falar dele justo para vocês. Contudo, ao falar dele, trato não de trazê-lo conosco ou a nossa favor, mas sim de voltar a tê-lo como o que foi: uma ponte. E talvez, mesmo sem estar, Don Vázquez Montalbán volta a ser ponte para que a nossa palavra, a dos zapatistas hoje não tão na moda, tenha um lugar entre tantos gênios da palavra que agora se encontram em terras mexicanas. E agora, ao escrever estas linhas, entendo que talvez foi sempre esta a intenção dele, e que deveríamos aproveitá-lo e falar de nós, de nossos sucessos e tropeços, de sonhos e pesadelos, de continuidades e rupturas. Mas não, a tentação durou só alguns instantes. De tal forma que não falarei de nós. Falarei, ou melhor, tentarei falar dele. De início, nós não acreditamos na sua morte. O fato de desaparecer num lugar distante da nossa geografia, exatamente no aeroporto de Bangkok, nos pareceu como uma espécie de recurso típico dos detetives e não como uma ausência definitiva. Não acreditávamos que estivesse morto, e por isso esperamos que aparecesse em seguida com uma nova história de Pepe Carvalho ou com uma entrevista a um grupo de "outros" antineoliberais, desconhecidos pelos demais "outros" que povoam a complexa geografia da resistência mundial. Então lhe diríamos algumas grosserias (claro, cuidando para ele não ouvir), e continuaríamos a caminhar sabendo que ele andava por aí. Ele, achava eu, não morreria sem nos avisar antes. Mas não, Don Manuel Vázquez Montalbán tinha ido embora de verdade, deixando-nos um pouco mais vazios. E isso, o fato dele ter ido de verdade, nos dava (e nos dá) um pouco de raiva, de coragem. É isso que nos acontece com as mortes: antes nos dão raiva, em seguida tristeza, mas depois as duas coisas. Don Vázquez Montalbán não era nosso amigo, era nosso companheiro. "Companheiro de viagem", disse ele num de seus escritos. "Companheiro assim, e nada mais", dissemos e dizemos nós. Não sei se para ele ou para vocês isso é mais ou menos. Para nós é tudo. Só falei pessoalmente com ele uma vez, de tal forma que nem sequer tentarei dizer como era. Com certeza, há mais pessoas, e sobretudo vocês dois, que poderão nos dar um perfil mais acabado dele. Lembro que, daquela vez, trocamos as saudações de praxe e algumas piadas sobre artistas da Espanha (Marisol, Joselito, Pili e Mili), creio até que cantamos em dueto aquela de "a vida é um tômbola, tom, tom tômbola". Claro que ele nunca reconheceu que a entoamos juntos e me atribuiu então o papel de solista. Depois ficamos sérios. Bom, pelo menos tentamos. Na realidade, aquele encontro me pareceu então como quando dois boxeadores se enfrentam e passam os primeiros minutos do combate se estudando reciprocamente para depois descobrir que aquele que se deve pegar é o árbitro. Creio que ele tratava de entender. Creio que tratava de sair da falsa alternativa entre ser "fã" de Marcos ou "antifã" de Marcos (dilema então na moda entre os intelectuais progressistas). Parece-me que, através de seus livros e de sua vida, Don Vázquez Montalbán demonstrou que não era dele o abraçar causas acriticamente. Creio que, seguindo o marxismo de Groucho, não simpatizaria com uma causa que o aceitasse como simpatizante. E tem mais. Creio que não era "fã" nem dele mesmo. Não era desses intelectuais que trocam de deuses e de liturgia como trocam de calças (bom, quando se trocam). Depois de ler seus ensaios, pareceu-me ser ateu até de Manuel Vázquez Montalbán, mas era alguém que acreditava com firmeza na existência do mal e na necessidade de enfrentá-lo. Não aplicou o filosófico bisturi da palavra só para a dissecção dos diferentes poderes que têm se sucedido na geografia mundial. Também o usou diante das supostas ou reais oposições que o espelho do Poder, inevitavelmente, produz. Inclusive, intuo, o usou nele mesmo (mas sobre isso, com certeza, vocês e outros poderão dizer mais). Quando nos falamos naquela única ocasião, me deu a impressão de que procurava, sim, mas não uma nova causa que o redimisse à distância, ou mais uma desilusão que fortalecesse seu ceticismo diante de tudo (esta desculpa elegante para não se comprometer com nada). Creio sinceramente que ele tratava de ver por trás dos passamontanhas para descobrir e encontrar um movimento: o zapatista. E acho que o encontrou, quero dizer, que nos encontrou. Só assim consigo explicar a feliz obstinação em saber de nós, em estar conosco na luz e na sombra, ainda que na Catalunha, num aeroporto de Bangkok ou em Guadalajara. Porque a Guadalajara mexicana se ilumina agora com a palavra, mas também carrega a sombra dos jovens altermundistas reprimidos, presos por estes assassinos da luz que agora são governo em nossa sofrida geografia. Não sei, mas talvez Don Vázquez Montalbán teria desviado nem que fosse um pouco de sua luz para as prisões que, em Guadalajara, encerram a juventude e a rebeldia criadora. É que, a propósito da repressão sofrida por estes jovens, caem bem as palavras que ele uma vez escreveu: "A nova direita se parece como uma gota d'água à direita de sempre quando lhe sai da alma que a desordem é pior do que a injustiça" ("A Teologia Neoliberal", em El País, 5 de abril de 1994). Ou talvez ele teria concordado em que nós zapatistas o usássemos como ponte para saudar e abraçar estes "outros" que estão presos por um delito de "leso neoliberalismo": o de enfear, com sua simples existência, uma ordem construída sobre a morte da inteligência. Porque estes jovens estão presos por serem feios. Ao prendê-los, o governo só está aplicando um tratamento de beleza. A injustiça de seu encarceramento foi branqueada com o detergente da "Ordem". Porque quando o poder fica sem argumentos (coisa que acontece quase sempre), a repressão se veste de ordenadora do caos (onde "caos" é sinônimo de existência do outro). Na assepsia neoliberal, as pessoas enfeiam e sujam as ruas, e os policiais nada mais são a não ser os modernos varredores. Se no lugar de vassouras usam armas de fogo e equipamentos antimotim, se deve ao avanço tecnológico e não, quem ousaria insinuá-lo?, ao afã repressor contra o diferente. Acabei de dizer que Don Vázquez Montalbán esteve conosco na luz e na sombra. A última carta que nos enviou foi no meio da polêmica desatada após nosso apoio explícito à luta política e cultural do povo basco. Eu disse "polêmica?" Bom, na realidade foi uma campanha de linchamento da mídia, mas já estamos acostumados. À diferença daqueles que aproveitaram para afastar-se de nossa sempre incômoda companhia, e, desde o "belo" púlpito dos meios de comunicação, nos acusaram (injustamente, como se demonstraria quase imediatamente) de sermos partidários do terrorismo da ETA, Don Vázquez Montalbán, nos enviou uma missiva privada. Nele (creio que agora posso revelá-lo) nos alertava sobre o que viria: o zapatismo seria vinculado não a uma causa justa, mas sim ao crime messiânico. Claro que ele não achava que o zapatismo tivesse recebido o abraço mortal do fundamentalismo, nos conhecia bem demais. Mas também era um grande conhecedor dos meios de comunicação de massa e sobre isso nos repreendia. Teve logo sua resposta e tenho quase certeza de que ficou satisfeito. Assim, nos fez chegar um de seus últimos livros com uma dedicatória que nada mais era a não ser um "estou aqui, com vocês"; e, reiterando sua simpatia por Euzkal Herria, apoiou, com outras personalidades da cultura européia, nossa malsucedida iniciativa "Uma chance à palavra". Mas, voltando ao nosso encontro, lembro que falamos um pouco de Antonio Machado. Ambos admirávamos o "Juan de Mairena", seus questionamentos, suas dúvidas. Durante a conversa (se supõe que era uma entrevista, mas foi uma conversa) tivemos que concordar quanto ao fato de que, muitas vezes, os melhores textos de análise política estão na literatura universal; e, sem torná-lo explícito, concluíamos que o mundo iria muito melhor se os políticos profissionais soubessem mais de literatura do que de técnicas de mercado, e se lessem mais livros de poesias e novelas, e menos relatos estatísticos e boletins de imprensa. Dito isso, permitam-me uma divagação: A habitação onde o Poder decide é fechada com uma parede. A democracia, nos dizem, é que nós, os de fora e a maioria, podemos escolher quem entra e quem sai. Mas se esquecem de esclarecer que só podemos escolher entre os poucos que a minoria nos apresenta. E não só. Nós, a maioria e os de fora, que sofremos as conseqüências das decisões que se tomam nesta casa, nada sabemos dela. A política, nos repetem, é assunto de especialistas que só os especialistas compreendem. Assim, nos deparamos com guerras envolvidas no papel celofane de argumentos insustentáveis, programas econômicos que nada mais são a não ser guerras "brandas", crimes culturais perpetrados em nome da modernização, aniquilamento de identidades diferentes através do recurso rápido de eliminar seus portadores. Em suma: a arbitrariedade assassina da força, só que vestida de "razão de Estado", de "razão econômica", de "razão divina", de "razão neoliberal". Em alguma passagem do livro de Machado, Mairena e seus alunos discorrem sobre o teatro, sobre como as cenas numa casa se sucedem com a ausência de uma quarta parede, e que é a ausência deste muro que nos permite saber o que acontece lá dentro. Da mesma forma, os atores "falam" seus pensamentos e é assim que sabemos o que acontece dentro de uma personagem. Aqueles que fazem do exercício da razão e da arte o seu próprio trabalho (como aqueles que agora confluem para Guadalajara, México), podem contribuir para derrubar este quarto muro da habitação do Poder e fazer "falar" as personagens que nela moram. Não só ajudariam a derrubar o mito da "política especializada" e a fazer desaparecer a auréola sobrenatural do Poder, mas também contribuiriam para fazer caminhar outro mundo, um melhor, um onde caibam todos os mundos. A democracia seria assim libertada das inserções publicitárias, a frivolidade deixaria de ser programa de governo e a estupidez já não seria a bandeira que agitaram, orgulhosos, os governantes neoliberais. Seria magnífico que, aqueles que estão no Poder fossem obrigados a ler pelo menos sete livros: um de poesia, um de contos, um de novela, um de teatro, um de ensaio, um de filosofia e um de gramática. Sei que tudo isso pode soar subversivo, utópico, ou as duas coisas, por isso não reparem. Na verdade, relato isso porque se há algo que pode definir o trabalho de Don Vázquez Montalbán é a marreta com a qual passou derrubando muros e a hábil ventriloquia com a qual fez falar os poderosos e os intelectuais que lhes servem. Creio que ele, Don Vázquez Montalbán, tinha um profundo respeito pelo leitor. Creio que se perguntava o que escrever, porque e contra o que, e que transferia estas perguntas à leitura: o que se lê, porque e contra o que. E creio que, como escritor, não expropriou as respostas dos seus leitores. Contradizendo o título de um de seus livros, não fez panfletos. Ao contrário, fez da palavra uma janela, e, mais de uma vez, em seus escritos, se esmerou em mantê-la limpa e transparente. Fora dos círculos neoliberais, a palavra costuma concitar respeito entre aqueles que a enfrentam, ou seja, os que as falam e escrevem, e os que as lêem e ouvem. Se alguém me pedisse um exemplo que sintetizasse a resistência da humanidade diante da guerra neoliberal, diria que é a palavra. E acrescentaria que uma de suas trincheiras mais obstinadas, e felizes, é o livro. Ainda que, claro, trata-se de uma trincheira bem diferente porque se parece extraordinariamente com uma ponte. Porque quem escreve um livro e quem o lê não fazem outra coisa a não ser cruzar uma ponte. E atravessar pontes, como consta de qualquer manual de antropologia que se respeite, é uma das características do ser humano. Vou me despedindo, mas não queria fazer isso sem antes declarar que, se alguém me pedisse uma definição de Don Manuel Vázquez Montalbán diria que foi e é uma ponte. Valeu. Saúde e que a vida algum dia passe sem muros. Das montanhas do Sudeste Mexicano. Subcomandante Insurgente Marcos. México, Novembro de 2004. P. S.: Numa carta, propus a Don Manuel Vázquez Montalbán de escrever um conto policial "a la limón" com algumas partes escritas nas montanhas do sudeste mexicano e outras nas Ramblas catalãs. Ele aceitou, ainda que, confessou uma vez, não tinha a menor idéia de como isso seria possível. Eu tampouco, mas ele não soube disso. Em breve, o Sistema Zapatista de Televisão Intergaláctica, "a única televisão que se lê", irá transmitir o primeiro capítulo de um seriado policial que, como qualquer zapatista, tem um futuro incerto. É a pequena homenagem que, durante meses, preparamos para ele. Com certeza será pouco, e a qualidade literária não se aproximará sequer de suas magníficas produções, mas é a nossa forma de fazer saber àqueles que o acompanharam em vida que, quando abrimos alguns de seus muitos livros, não só o lemos, mas também, à nossa maneira, cruzamos em direção a ele, ou seja, o abraçamos. Com cópia para: Manuel Vázquez Montalbán, onde quer que ele se encontre. ______________________________ O texto acima foi lido durante a homenagem a Manuel Vázquez Montalbán na Feira Internacional do Livro em Guadalajara, Jalisco, México em 28 de novembro de 2004 e divulgado pelo La Jornada no dia seguinte.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111074
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