Os novos deuses da opulência
14/01/2005
- Opinión
A dessacralização do mundo expulsou os deuses do Olimpo e
livrou-nos do medo do Inferno. Os efeitos não são a
secularização, a razão sensata, a lógica razoável, como
era de se esperar. O resultado mais evidente desse
processo é a "morte de Deus", não no sentido filosófico
de Nietzsche ou Camus, mas na dimensão empírica do
materialismo prático, do paganismo efetivo, do consumismo
irrefreável, da competitividade ditando como mandamento
"armai-vos uns contra os outros".
Respiramos uma cultura idolátrica, na qual alguns seres
humanos, sacralizados pelos símbolos do poder, da riqueza
e da fama, ocupam os céus, os altares da veneração
coletiva, incensados pela mídia e canonizados pela inveja
da turba. Maquiados pela espetacularização da notícia,
tornam-se ícones, seres sobrenaturais capazes de encarnar
a esperança de milhões.
São eles que ocupam páginas e páginas dessas revistas
cujas fotos retratam um mundo de facilidade e felicidade,
festas requintadas, mansões luxuosas, ilhas paradisíacas,
castelos majestosos.
Ali estão as caras de quem galgou os degraus do sucesso
e, do lado de cá, o leitor consumido e carcomido pela
frustração de não gozar da fortuna de pertencer ao
restrito clube da opulência. Busca, pois, compensar-se
por uma intimidade psicológica de quem se gaba de
conhecer em detalhes a vida dos famosos, o que comem e
onde moram, como e com quem dormem, que lugares
freqüentam e para onde viajam.
Deus é recriado à nossa imagem e semelhança. E o Paraíso
existe, mas custas caro obter o bilhete de entrada. Pode-
se aplicar hoje aos grandes centros urbanos do Ocidente a
descrição de Paris feita por Balzac na primeira metade do
século XIX: "É um bazar onde tudo tem seu preço, e os
cálculos são feitos em plena luz do dia, sem escrúpulo.
A humanidade tem apenas dois tipos: o enganador e o
enganadoŠ A morte dos avós é esperada com ansiedade; o
homem honesto é bobo; as idéias generosas são meios para
se obter um fim; a religião surge apenas como uma
necessidade de governo; a integridade se tornou pose; o
ridículo é um meio para se promover e abrir portas; os
jovens já têm cem anos, e insultam a idade avançada"
(Scènes de la vie parisienne, Paris, Édition de Béguin,
p. 110).
Buscamos significados e sentido naquilo que é impessoal,
descartável, efêmero. De tal modo estamos imbuídos do
caráter fetichista da mercadoria que, diante de uma arma,
há quem prefira entregar a vida para não perder o carro.
Como nos deprime a perda de um objeto ao qual nos
apegamos! Pois aquele objeto nos imprimia valor, adornava
a nossa personalidade, abrilhantava a nossa mortal
insignificância.
O exemplo mais notório dessa cultura do despeito é o
onanismo voyeurista que hipnotiza milhões de
telespectadores devotados a observar a intimidade de quem
se tranca numa casa promíscua. Depois os pais se queixam
do desinteresse dos filhos pelo estudo, da gravidez
precoce da filha, do desrespeito com que os jovens tratam
idosos e subalternos.
Como infundir valores se há no centro da casa um aparelho
destinado a esgarçar o tecido social? Fôssemos uma
sociedade cidadã, faríamos saber aos patrocinadores que
decidimos não mais adquirir os seus produtos. Oh,
retrucam os arautos do sistema, então você defende a
censura? Defendo os valores morais e condeno esse
neoliberalismo que transforma um veículo importante, a
TV, num bordel virtual. Repudio a religião que prega,
como primeiro mandamento, "acumulai lucro acima de todas
as coisas".
Mas ainda há esperança, e muita. Toda a Europa parou no
dia 5 de janeiro para homenagear as vítimas das tsumanis.
E mobilizou-se num grande mutirão de solidariedade.
Talvez a presença avassaladora da morte nos faça, agora,
refletir melhor sobre o significado da vida. E com
certeza ela não merece ser vivida para que o seu pouco
tempo de duração seja consumido em devorar com os olhos e
a mente a suposta felicidade alheia.
O mecanismo lucrativo do entretenimento é simples: incita
e excita-nos a almejar a aparente felicidade dos que são
alvo da notícia e, para compensar a nossa frustração, já
que a desigualdade social nos castra o desejo, oferece
publicações e programas televisivos que nos imprimem a
ilusão de participar da vida dos que pertencem ao círculo
hermético. É como nos contos de fadas. Milhões de gatas
borralheiras transformam a TV no espelho à espera de que
possam ver refletido o seu rosto de Cinderelas.
* Frei Betto é escritor, autor de "Sinfonia Universal - a
cosmovisão de Teilhard de Chardin" (Ática), entre outros
livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111185
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