Pedro do Araguaia

29/03/2005
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Um homem tem tantos motivos para ser lembrado que cansa lembrá-los. Pedro Casaldáliga tem todos esses e muitos mais. O Araguaia tem inúmeros heróis, quase todos anônimos, homens de poucas letras, de falar simples; que acumulam dores infindas, de profundos sentimentos – que a literatura não alcança descrever. Eu nasci lá em Luciara – cidade pequena, aconchegada na sua simplicidade, única; indescritível como o mês de julho no Araguaia. Vi ali homens de fardas descerem a Rua Principal, armados fortemente, buscando inimigos públicos, comunistas. Em nome da Lei, e de uma lógica que ninguém entendia, reviravam camas, armários, quartos e salas, buscando armas, inocentemente guardadas em parreiras de uvas e maracujazinhos. Porque era difícil alguém não ter armas no Araguaia dos anos setenta. Todo morador tinha pelo menos uma cartucheira, e ninguém as tinham para além da própria sobrevivência e defesa da família e da honra, sertanejamente concebidas. É claro que os governantes militares e seus agentes eram burros demais para entender isto! Vi nas eleições de 1976, se não me falha a memória dessa dura cabeça araguaiense, o velório de homens apaixonados por suas posições políticas – como o de Jorge, assassinado pelo Elias, que o Jim (filho do assassinado) jurou matar um dia. E de tantos outros, mortos estupidamente. Vi índios vestidos de soldados, velando uma ordem que eles mesmos não entendiam, nem nunca compreenderam; mas que lhes davam o direito de prender, bater e até matar, impunemente – como é próprio das ditaduras. E foi assim que vi numa noite de Missa alguém revestido desse poder espúrio adentrar a igreja e surrar impiedosamente com relho o padre que se recusara batizar alguém. Mas o Araguaia tem histórias mais cabeludas e tristes. De mortes e silêncios. De tortura e escravidão que contando vai lhe custar acreditar. Acredite! Naquele tempo não existiam tratores, nem motosserras, nem qualquer facilidade para abrir a mata bruta. Tudo era feito com machado e foice. E foi assim, meu amigo, que a Suiá, a Bordon, a Codeara, a Porto Velho e todas as demais grandes fazendas foram abertas. E o povo que derramou o suor nessa lida terrível vive ainda lá, ou seus descendentes. Gente nordestina, goiana e alguns outros que, miscigenadamente, fizeram, ao custo de longas décadas, a gente araguaiense – que nossos governantes ainda não conseguiram entender. Porque entender o Brasil se gasta mais que o fosfato, tecnicamente concebido. Por isso é preciso se conceber um desenvolvimento pra Região para além da soja e do algodão. Porque sob o falar manso, destemido e laborioso daquela gente lateja inexorável a alma araguaiense, uma construção de muitas décadas, que a Unemat vem tentando entender. Quem nasceu sob os confortos da classe média não alcança entender o que é a fome e a falta de perspectiva. Ainda que viva as incertezas próprias da classe média. Quem nasceu no Araguaia nos anos sessenta ou setenta não tinha perspectiva para além daquilo que as grandes agropecuárias apresentavam como futuro: ser peão, ou gato. Foi nesse tempo que nasceu a Prelazia de São Félix do Araguaia. E o Bispo foi se fazendo Pedro, Pedra, Igreja – para além da compreensão do Vaticano. Se não queria riqueza nenhuma, nem poder, nem fama e se apresentava como um amigo, porque não tê-lo como irmão? E se fez mais: fez-se o irmão mais velho, que aconselha e a gente ouve e segue e respeita – na presença ou falta do Pai. Fez-se Bispo de uma Igreja esquisita, que fala da vida cotidiana pelo seu revés. Quando o dinheiro e o poder que excluem contam menos que a compaixão e a solidariedade. Fez-se verbo que a gente carrega pelo dever de ser Gente! Entendeu? Certa vez viajei com Pedro Casaldáliga nas esburacadas estradas do Araguaia. Anos oitenta. Nós vínhamos de São Félix para Cascalheira e Cuiabá, respectivamente. A Elis Regina havia falecido poucos dias, e o Bispo chorava a sua ausência. “Sou caipira pirapora, Nossa Senhora de Aparecida”. E sob os solavancos do velho ônibus da Xavante ele me mostrava uma poesia que falava de garças e águas e gente do sertão. Eu, um menino secundarista; mas araguaiense! Por mais que fossem ligados aos “terroristas” de Xambioá, como nos dizia todas as informações oficiais, nunca se viu maldade nem nas palavras nem nos gestos do Bispo e seus Padres. Ternura infinda, sim. Evangelho, coragem e respeito! Tantos anos depois, já não mais menino, vejo as notícias: o Bispo vai se “aposentar” e, agora, que o “Vaticano o quer fora da sua Terra”! Daqui de Várzea Grande acompanho a notícia se espraiando pelo mundo, repercutindo em clamores de justiça e respeito. A dor do Bispo sendo compartida com gente de todo mundo, reverberando indignações e solidariedade. Pobre Vaticano que não consegue perceber que o poder do Bispo, porque árvore e fruto da humildade cultivada entre pobres e desvalidos, se faz maior que toda a sua secular governabilidade – que é pagã e suntuosa. Os governantes do Vaticano sequer têm compaixão com um homem que se deu por inteiro, a vida toda, ao Evangelho, à Igreja e ao seu Povo. Pedro, Pedra, Poeta. Mas se, por fim, Pedro tivesse que se mudar de São Félix, os católicos de Luciara, Santa Terezinha, Ribeirão-Cascalheira, Cana Brava, Xingu, Porto Alegre, Lago Grande e de tantos outros lugares da América Latina, fariam tudo para tê-lo consigo, acolhendo-o com o amor que O Evangelho proclama e o Vaticano não conhece. E certamente, onde quer que viesse morar seria lugar de peregrinação de amigos e companheiros de todas as partes do mundo. Porque o problema dos poderosos é não dominar por inteiro a vida, de modo que gente de bom coração sempre acha um jeito extraordinariamente lindo de viver. E morrer. A Benção, Irmão! * Elismar Bezerra é secretário Municipal de Educação e Cultura de Várzea Grande
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