O Índex Federal

08/05/2005
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Entre tantos desafios que o governo federal enfrenta ­ latifúndio, trabalho escravo, discriminação racial e sexual, violência sexual a crianças, impunidade de crimes cometidos por policiais militares etc. ­ a Secretaria Nacional de Direitos Humanos encontrou tempo para se ocupar da elaboração de uma cartilha dos vocábulos que devem entrar no Índex da fala do brasileiro. O Index Librorum Prohibitorum era uma lista, adotada desde 1562 pela Igreja Católica, na qual constavam os títulos de livros e os nomes dos autores vetados à leitura dos católicos, a menos que incorressem em pecado. Em 1961 cheguei a solicitar ao arcebispo de Belo Horizonte permissão para ler Renan e Sartre, proibidos pelo Vaticano. Felizmente, em 1966, o papa Paulo VI pôs o Índex no Índex, em respeito à liberdade de pensamento e opinião. Faltou na cartilha do politicamente correto do governo federal a palavra “trem”. É verdade que o Brasil anda mal de ferrovias. E ninguém sabe onde foram parar os US$ 8 bilhões que o presidente Geisel tomou emprestado lá fora para construir a Ferrovia do Aço. Mas o presidente Lula promete construir uma entre o Ceará e Pernambuco, transpondo produtos e passageiros do asfalto para os trilhos. Tomara. O Aurélio registra doze significados para trem, como “conjunto de objetos que formam a bagagem de um viajante”, “mobiliário duma casa” etc., e só em oitavo lugar se diz “comboio ferroviário; trem de ferro”. Segundo Deonísio da Silva (“De onde vêm as palavras”), train já era usado pelos franceses no século XII como ação de trainer, arrastar, originado do latim trahere, puxar, mover lentamente. Mas os ingleses foram os primeiros a usar train e tramway para designar locomotiva, que eles inventaram. Trem é um vocábulo de uso corrente em Minas, onde, além dos males que vêm para o bem, há malas que vêm de trem... No idioma mineirês, serve para designar, literalmente, tudo, qualquer coisa. O mineiro na estação ferroviária, carregado de bagagens, diz ao amigo ao ver a locomotiva se aproximar: “Compadre, pegue os trens porque a coisa tá chegando”. O trem pode ser “bão” ou “ruim”, significar estorvo (“tira esse trem daí”), esquisitice (“deu nele um trem”), estranheza (“senti um trem diferente”), tralheira (“carrega esses trens pra mim”), preocupação (“esse trem não me sai da cabeça”) etc. Se o governo federal incluísse em sua cartilha o vocábulo trem, com certeza estaria contribuindo para aprimorar a expressão verbal dos cidadãos, que passariam a se sentir obrigados a enriquecer seu vocabulário encontrando sinônimos e equivalentes. Como trem, com seu significado universal, não foi proibido, posso confessar sem temor que, ao ter notícia da cartilha, pensei com os meus botões: “Esse trem não vai dar certo”. E não deu outra. João Ubaldo Ribeiro pôs a boca no trombone, antes que a coisa se aprofundasse e as boas almas não pudessem mais lamentar o estado de quem sofre e exclamar “coitado”, que deriva de “coito” ou, em português claro, “filho da p.”, ou proferir admiração dizendo “formidável”, que deriva de formol e do latim formidandus, gerúndio de formidare, Œtemer¹, e significava, no século XVIII, “terrível” ou “horrível”. Mas não seria mal o governo proibir que os livros didáticos continuem a chamar os revoltosos mineiros, liderados por Tiradentes, de “inconfidentes”, que significa Œaquele que não merece confiança ou não guarda segredo”. Fosse hoje, a Inconfidência seria qualificada de Deduragem Mineira. As palavras mudam com seus significados e, pelo jeito, mais que os governos ­ civis e religiosos ­ no seu afã de prescrever o que convém ou não aos cidadãos em matéria de expressão verbal. É o que se faz, e não o que se fala, que importa. Até porque o poder é mestre em falar sem fazer. E para delimitar, coibir, punir ou expandir a ação dos cidadãos, existe algo simples e tão antigo quanto a humanidade: lei. Se aplicadas pelo governo as que defendem os direitos humanos já estaria de muito bom tamanho. - Frei Betto é escritor, autor de “O desafio ético” (Garamond), em parceria com Luís Fernando Veríssimo e outros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111924?language=en
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