Segredo de corrupção
19/05/2005
- Opinión
O penitente ajoelhou-se no confessionário. Impossível definir-lhe o
rosto através da treliça de madeira. Tinha, porém, a voz nítida:
“Padre, há anos sou corrupto. Agora, estou arrependido.”
O arrependimento viera de um trauma de família: a filha adolescente
aparecera com câncer. Ele fizera a promessa de virar a página das
maracutaias. Narrou a seqüência de notas frias, achaques, negociatas,
propinas, paraísos fiscais, doleiros, evasão de divisas, sonegações e
outros crimes do mundo em que vivia.
Perguntei-lhe se aceitava um café na casa paroquial. Não
interessava a sua identidade. Queria saber como se faz um corrupto.
Na copa, detalhou como, ao longo dos anos, aprendera a mandar os
escrúpulos às favas:
“Comecei numa empresa privada, para a qual eu fazia contatos com o
poder público. No início, eu nem pensava em pegar dinheiro para o meu
bolso. O patrão me convenceu de que os negócios têm regras que nem
sempre condizem com a lei. E quem não participa vira Francisco de
Assis, santo mas pobre.”
“Eu acertava o contrato da obra, oferecia ao representante do poder
público comissão de 10 a 15% do orçamento, marcava as cartas da
licitação. Aprendi que, assim, certos políticos fazem seu caixa de
campanha. O que custa 100 é aprovado para receber 500, e 200 vão para o
caixa dois. Tudo sem nota fiscal, intermediação bancária, assinaturas.
Vale o dinheiro vivo. Lucra a empresa, que ganha a obra; lucra o
empresário, que superfaturou; lucra o político, pois as campanhas estão
cada vez mais caras. E tudo pago pelo contribuinte.”
“Com o tempo, fiquei tentado a atuar do outro lado da banca. Entrei
no serviço público por indicação de um político cuja hiena se
alimentava na minha mão. Aprendi a fazer lobby, tráfico de influência,
negociar intermediações, vender informações. Utilizava com freqüência a
triangulação: meu setor público conveniava-se como uma instituição
aparentemente idônea através de projetos que, ditados por nós, eram
preparados e enviados por ela. E a instituição contratava serviços a
custos bem mais altos do que aqueles que o Estado paga diretamente.
Nesse repasse, ganham todos, onerando os cofres públicos.”
“Um dia me dei conta de que até nas pequenas coisas eu virara
ladrão: carregava para casa caixas de lapiseiras e material de
escritório e informática. O melhor eram as viagens, nas quais eu
superfaturava contas de hotéis e restaurantes.”
“Meu único receio residia em meu padrão de vida. Morava em
condições muito confortáveis para o meu nível salarial. Não chegava a
ter medo, porque as pessoas são ingênuas, não prestam atenção na
desproporção do cargo que ocupamos com o luxo de que desfrutamos. Nem
sequer cobram dos políticos e dos partidos transparência nos gastos de
campanha. É por isso que a reforma política não sai. E se sair duvido
que acabe com o financiamento privado de candidaturas e obrigue todos
os políticos eleitos a quebrarem seu sigilo bancário.”
“É muito dinheiro que vai para o ralo da corrupção. E há pessoas
honestas que sabem disso, mas fazem vista grossa porque não ignoram que
a corda rompe do lado mais fraco. Há também chefes e chefetes que não
sujam as mãos com o dinheiro escuso, mas se apropriam das vantagens
sociais e políticas das negociatas. Pagam a conivência com o seu
silêncio.”
“Por que não existe um Disque Corrupção no qual o denunciante não
tenha que se expor?” – perguntei.
“Poderia haver uma “caça às bruxas” alimentada por inescrupulosos
interessados em manchar a honra de gente séria” – disse ele. “Mas
garanto que, na peneira, muito graúdo não haveria de passar.”
Indaguei do penitente como pretendia agir daqui para frente. Disse
que enviara um relatório-denúncia ao Ministério Público e entregara
cópias a jornalistas de sua confiança. E decidira se desfazer de tudo
aquilo que fora adquirido em negociatas, favorecendo a manutenção de
uma clínica para enfermos de baixa renda.
Ele me autorizou a publicar o relato. Dei-lhe a absolvição após
meditarmos sobre o encontro de Jesus com o rico Zaqueu, que entregou
metade de seus bens aos pobres e quatro vezes mais a quem havia
fraudado (Lucas 19,1-10).
- Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil”
(Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111990
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