Entre a razão e a perplexidade

12/06/2005
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Posso entender a reação de leitores insurgindo contra aqueles que demonstraram indignação ao ver, num jornal carioca, a foto de PMs chutando o rosto de bandidos deitados e algemados. Posso entender, sim, quem acha que bandido bom é bandido morto, pois faz parte dessa parcela da sociedade que prefere a empregada doméstica fora do elevador social; negro pela porta dos fundos; e desconfia que todo judeu é falso e todo muçulmano um terrorista em potencial. Minha perplexidade é quando vejo essas mesmas pessoas ­ que, com certeza, nem são negras, nem pobres ­ irem ao culto no fim de semana, comungar na missa, acender vela ao santo e professar o nome de Deus. Posso entender que o governo Bush julgue os 34 países representados na OEA encabeçados por um bando de ignorantes e incapazes, e se proponha a policiar a vigência da democracia em cada uma das nações da América Latina. Afinal, a arrogância da Casa Branca a impede de se reconhecer como a raposa disposta a tomar conta do galinheiro. Minha perplexidade é constatar que da Casa Branca partiu a iniciativa de subverter os regimes democráticos do Continente e, nas décadas de 1960 e 1970, implantar ditaduras militares no Brasil, na Argentina, no Chile, no Uruguai, na Bolívia e no Peru. Milhares de jovens foram exilados, presos, torturados, mortos, suicidados e desaparecidos. Qualquer manifestação de resgate da democracia era severamente reprimida como subversão e terrorismo. Posso entender que haja na política brasileira tantos corruptos; maracutaias em licitações e contratos; nepotismo; desvio de verbas; caixa dois; superfaturamentos; propinas e mensalões. Afinal, até agora não houve reforma política e é inútil esperar que Ali Babá faça uma faxina completa na cova dos quarenta ladrões ou que “300 picaretas” deixem de perfurar o poço do dinheiro fácil. Minha perplexidade é ver políticos do PT ­ o único partido a desfilar em nosso cenário político erguendo a bandeira da ética ­ temerem CPIs, investigações, transparências. A emenda fica pior do que o soneto quando se atribui a apuração de suspeitas ao esforço de a oposição desestabilizar o governo. Ao resistir no deserto às propostas do Diabo, Jesus demonstrou que todo o poder do mundo não vale um dedal de prevaricação. Assim como o desenvolvimento social deve, em princípio, preceder o crescimento dos índices econômicos, também a ética deve reger a política e esta direcionar a economia. Quando se inverte a ordem desses princípios entra-se num atoleiro. Sobretudo ao submeter o jogo político aos interesses econômicos e, em nome da robustez dos cofres públicos e privados, pôr a ética de escanteio. Posso entender que haja bandidos em todas as camadas sociais: empresários que sonegam o fisco e subornam fiscais; padres pedófilos; dependentes de drogas que sustentam o narcotráfico; donas de casa que gastam em uma hora no salão de beleza o que não pagam por um mês de trabalho da cozinheira. Minha perplexidade é ouvir pessoas com alto grau de instrução, aparentemente cultas e inteligentes, justificarem que o mundo é assim mesmo, nunca vai mudar, a desigualdade social é “imexível”, o capitalismo é definitivo, a soberania do mercado, absoluta. Como se duzentos anos de história humana anulassem todas as mudanças ocorridas no passado e paralisassem o movimento rumo a um futuro melhor. Até porque a economia de livre mercado fracassou para 2/3 da população mundial que, segundo a ONU, vivem abaixo da linha da pobreza. Ou seja, cerca de 4 bilhões de pessoas. Cabe no meu entendimento ver o sistema produzir mais e mais, e como o poder de adquirir produtos supérfluos é restrito a uma pequena parcela da população, a poderosa máquina publicitária procura impor-nos modismos, grifes, simulacros de felicidade perpétua e elixires de eterna juventude. Minha perplexidade é ver pessoas que atiram pela janela do tempo os 2/3 de vida que lhes restam (pois 1/3 passamos dormindo), hipnotizadas longas horas diante da TV, atiçando a inveja que as consome, devorando revistas que revelam supostas intimidades de ricos e famosos, nutrindo o coração e a língua de mágoas e futricas. Melhor proveito tirariam da leitura dos clássicos, de filmes históricos, de pesquisas na Internet, da alegria do encontro com amigos, do perene aprendizado do silêncio interior, da prece sem palavras e imagens, da solidão prenhe de plenitude. Posso entender quem não me entende e me julga obtuso e equivocado, e sem nenhuma perplexidade, pois desde que ruiu a torre de Babel aceito como fato incontestável que todo ponto de vista é apenas a vista a partir de um ponto. - Frei Betto é escritor e autor, em parceria com Paulo Freite e Ricardo Kotscho, de “Essa Escola Chamada Vida” (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/112206
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