Um dia em Toledo

16/10/2005
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Ir a Espanha e não conhecer Toledo é como vir a Minas e não visitar Ouro Preto. Na noite de segunda-feira, 10 de outubro, o governo da província autônoma de Castilla-La Mancha ­ terra de Dom Quixote ­ concedeu-me o Prêmio Abogados de Atocha, pelo trabalho desempenhado no Fome Zero. Merece-o o governo Lula, frisei, por beneficiar hoje, através do Bolsa Família, 7,5 milhões de famílias que sobreviviam em situação de insegurança alimentar. A vida é repleta de coincidências. Ou cristoincidências. A solenidade ocorreu na antiga igreja dominicana de são Pedro Mártir, construída em 1230 e, hoje, desativada para o culto. No seu claustro, Buñuel filmou a cena do orfanato em Veridiana. Sob o tablado em que eu me encontrava, sentado ao lado do governador, está o túmulo de Torquemada, o grande inquisidor. Em nome dos frades dominicanos, pedi perdão à história. A Inquisição foi um grave pecado da Igreja e de meus confrades espanhóis. Recuso a alegação de que os inquisidores devem ser compreendidos dentro de sua época. Muito antes deles Jesus deixara claro que toda pessoa ­ ainda que cega, surda, muda, pagã ou judia ­ é templo vivo de Deus. E contemporâneo à Inquisição havia frei Bartolomeu de las Casas (1484-1566), que defendeu, perante a corte espanhola e o papado, a irredutível dignidade dos indígenas, e condenou os colonizadores que os submetiam e se apoderavam de suas terras. Em 1977, seis advogados trabalhistas e um assessor foram assassinados em Madri, no bairro de Atocha ­ onde fica a estação ferroviária, explodida pelos terroristas em março de 2004. Adeptos do franquismo, os criminosos manifestaram na chacina sua inconformidade com a reconquista da democracia. Um dos sobreviventes estava presente à cerimônia. Em 2002, o governo de Castilla-La Macha instituiu o Prêmio Abogados de Atocha, que consiste numa escultura de ferro simbolizando elos partidos de cadeias. Percorri pela manhã os monumentos históricos de Toledo, cidade que data de 600 anos antes de Cristo. Hoje com 75 mil habitantes, conserva cuidadosamente as relíquias de suas três culturas: a árabe (os muçulmanos a dominaram ao longo dos séculos VI ao XI), a judia e a cristã. Visitei o mais antigo edifício da cidade, a mesquita de Bab-al-Mardum, erguida em 999 e rebatizada pelos cristãos, no século XII, de Mesquita Cristo da Luz. Curioso é que, ao transformá-la em igreja, tenham conservado o título de mesquita. Esta uma característica de Toledo: nomes de monumentos e logradouros, linhas arquitetônicas e pinturas, artesanato e culinária, tudo entrelaça as três culturas. O clima almiscarado parece favorecer a requintada ourivesaria exposta nas vitrines e o sabor levemente adocicado dos doces de marzipã. Visitei as duas sinagogas mais antigas, construídas por arquitetos árabes que imprimiram ali traços comuns às mesquitas. Depois vieram os cristãos, transformando-as em templos católicos. São a prova de que não há expressão religiosa sem sincretismo, assim como não há fé quimicamente pura. Paulo, o Apóstolo, diz que a graça entra pelos ouvidos, ou seja, não há acesso ao transcendente senão através da cultura que se respira. Toledo é a cidade de El Greco. Nascido em Creta em 1541, ali morreu em 1614, deixando pinturas vertiginosas, mágicas, de forte colorido, inaugurando o barroco. Contemplei, pela terceira vez, sua obra-prima, o "Enterro do conde Orgaz", considerado o primeiro retrato coletivo da história. Em torno do corpo de Orgaz, carregado ao túmulo pelos santos Estêvão e Agostinho, El Greco reproduziu o perfil de seus amigos, incluindo o seu auto-retrato entre as vinte e uma pessoas que assistem ao enterro. Lamentei apenas não conhecer a cela carmelita na qual são João da Cruz esteve preso nove meses, no século XVI. Ali viveu a experiência mística da "noite escura" e compôs os seus mais belos poemas. O convento já não existe. Consolei-me com uma visita às monjas cistercienses enclausuradas, dezessete mulheres que, em pleno coração de Toledo, entregam-se apaixonadas à experiência de Deus ­ o amor que priva os sentidos sem anulá-los, ultrapassa a razão sem negá-la, incendeia o coração sem consumi-lo. - Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de "Mística e Espiritualidade" (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/113272
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