Santiago de Compostela

18/11/2001
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Visitei a Galícia semana passada. Ali fala-se galego, idioma materno do nosso português. Qualquer brasileiro entende o que dizem, bem como é capaz de ler o que se escreve no dialeto derivado dos romanos que andaram, há séculos, pelo norte da Espanha, anteriormente habitado pelos celtas. O curioso é que no alfabeto galego não existe a letra jota. Ela é substituída pelo xis. Hoje escreve-se hoxe. Santiago de Compostela, fundada no século IX, tem poesia no nome. Compostela significa Œcampo de estrelas¹. Deitados no monte em que acampavam, os devotos de são Tiago contemplavam deslumbrados o céu estrelado. Reza a tradição que na catedral, erguida a partir do século XII, jazem os restos mortais daquele que foi um dos doze apóstolos de Jesus. Sua tumba teria sido encontrada por um monge peregrino, exatamente quando os árabes penetravam na Península Ibérica. Toda a Galícia abriga 3 milhões de habitantes. Santiago, com 150 mil, recebe por ano cerca de 4 milhões de turistas! Ou o dobro nos anos santos. A maioria chega pelo Caminho de São Tiago, que se inicia em Roncesvalles, na fronteira da França com a Espanha, e termina na catedral barroca, cujas torres, de 68 metros de altura, não podem, por lei, ser ultrapassadas por nenhum outro edifício erguido na cidade. Há outros itinerários. Se quem tem boca vai a Roma, quem tem fé chega a Santiago de Compostela, seja a pé ou de bicicleta, a cavalo ou de carro, acolhido ao longo do caminho por abrigos e pousadas que parecem contas de um rosário destinadas a alimentar o fervor religioso. Cheguei a Compostela pela porta de trás, a Cidade do Porto, onde fui recebido por Xulio Ríos, coordenador do IGADI (Instituto Galego de Análises e Documentação Internacional). Escritor e cientista social, Ríos tem várias obras sobre a China, que visita com freqüência. Acredita que o fiel da balança do futuro da grande nação oriental é Taiwan. Se ela se declarar independente em 2008, no momento em que a China estiver acolhendo os Jogos Olímpicos, como se ameaça, teremos uma crise mundial. Com uma hora de viagem por rodovia, chegamos a Vigo, cidade portuária, industrial, fundada há pouco mais de 200 anos. Ali vivem 300 mil pessoas. Dali vem metade da produção mundial de mexilhões. Em toda a Galícia peixes e frutos do mar dominam o cardápio. E seus melhores vinhos são brancos. Recebeu-me a prefeita Corina Porro, do Partido Popular, de oposição ao governo Zapatero. Contudo, seu empenho em programas sociais faz com que seja respeitada pelos adeptos do Partido Socialista que, agora, governa a Galícia pela primeira vez. À noite proferi palestra sobre as Metas do Milênio e o combate à fome. Em Santiago de Compostela repeti o mesmo tema na universidade, fundada em 1502, a segunda da Espanha, depois de Salamanca. Visitei o parlamento, onde fui recebido, separadamente, por líderes dos três principais partidos: PSOE, PP e Partido Nacionalista. Num total de 75 deputados, os socialistas têm maioria pela diferença de apenas um parlamentar. Tratamos da cooperação internacional. Encontrei a mais eminente figura política da Galícia, Manuel Fraga, líder do PP. Aos 83 anos, é o exemplo do político camaleão, capaz de se adaptar tanto à ditadura quanto à democracia. Ministro da Informação e do Turismo no regime ditatorial do general Franco (que era galego, como também o pai de Fidel), Fraga governou a Galícia de 1989 até este ano, quando foi derrotado pela oposição socialista. Contudo, continua deputado. Não fiz o Caminho de São Tiago. Fui direto ao ponto final: a catedral erguida sobre o suposto túmulo do filho de Zebedeu e irmão do apóstolo João. Seu exterior não me encantou e, por dentro, o excesso de adornos em prata e ouro me pareceu pesado. Em volta, a parte antiga da cidade é bela, mas já não conserva a harmonia que encontrei, mês passado, em Toledo, e que ainda perdura em Ouro Preto. Nos debates, além do interesse pelo Brasil e, em especial, pelo governo Lula, sobressaía o tema das manifestações juvenis na periferia de Paris e em outras cidades francesas. Assim como o furacão que se abateu sobre Nova Orleans fez vir à tona o bolsão de pobreza que se aninha no seio da nação mais rica do planeta, a rebelião na França denuncia algo grave: após duas ou três gerações, os filhos de imigrantes ainda não se sentem respeitados e integrados como cidadãos. A França não soube criar instituições que sirvam de ponte entre o poder público e a sociedade civil, em especial a das periferias. A globalização pôs fim à separação geográfica entre o mundo dos ricos e o dos pobres. Numa mesma nação os dois mundos se mesclam, e a terceira revolução, a da informática (após a agrícola e a industrial), condena ao desemprego pessoas em idade de ingressarem no mercado de trabalho. Ao queimar carros, os jovens atingem um dos símbolos do consumismo, como que reivindicando um lugar ao sol numa sociedade em que a maximização dos lucros passou a ter mais importância que os direitos sociais. Xosé Sánchez, prefeito de Santiago, reiterou-me que o governo da Galícia valoriza a cooperação internacional, convencido de que ela não deve se restringir ao eixo governo a governo, mas privilegiar movimentos populares, cuja desburocratização agiliza recursos e resultados. - Frei Betto é escritor, autor de ³Sinfonia Universal ­ a cosmovisão de Teilhard de Chardin² (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/113563
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