As mulheres são as mais oprimidas entre os oprimidos

03/01/2006
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
Entre vivência religiosa e compromisso militante não existe contradição alguma. São coincidentes e complementares como as duas faces da mesma lua ou o dia e a noite, na fala de Carmen Lorenzoni, 56, religiosa brasileira que desde há mais de 20 anos acompanha ativamente diferentes movimentos sociais no Rio Grande do Sul. Atualmente "Carminha", a “irmã-companheira” ou a “companheira-irmã”, faz parte da direção do Movimento de Mulheres Camponesas do Rio Grande do Sul (MMC-RS) e mora numa comunidade da Congregação das Missioneiras de Jesus Crucificado, à qual pertence há 29 anos. Entrevista com uma militante feminista fora do comum. "Sou de origem camponesa e trabalhei a terra com minha família até os 21 anos" enfatiza Carmen Lorenzoni para explicar com total simplicidade a estreita relação com o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Detalhando, automaticamente, que "sou mulher, religiosa, e militante social". Apenas uns poucos segundos e pequenas frases para desenhar tanto sua identidade como sua história de vida. A sua história começa numa família de descendentes italianos. Prossegue no trabalho familiar camponês. Entra num caminho especial quando "aos 27 anos de idade optei pela vida religiosa numa congregação brasileira que se identifica com o trabalho popular". A história se prolonga atualmente em atividades incalculáveis no coletivo que dirige no Rio Grande do Sul a organização de mulheres rurais mais importante na escala nacional. "Foi o ano 1983, quando comecei a apoiar com outras irmãs o acampamento dos sem terra histórico chamado de Encruzilhada Natalino em Ronda Alta/RS, instalado na beira da estrada. Nesse tempo se comprovou que era um dos mais organizados e marcou toda a luta pela terra nessa região". Uma vez conseguida a terra, a congregação optou por criar uma comunidade no assentamento a pedido dos agricultores. "Nos estabelecemos ali. Me sentia como pato na água, no meu próprio espaço". Da prática à vivência e desta à identificação quase espontânea de uma nova prioridade para Carminha: "o trabalho a partir das relações de gênero". Uma necessidade básica, um desafio categórico, uma tarefa que a partir de então se converteria em missão para a religiosa. "Cada dia começamos de novo" As certezas são muitas: "Mas há um salto quantitativo muito grande; cada vez mais mulheres querem participar do movimento e se constata um avanço de consciência entre nossas dirigentes e militantes". Os desafios, porém, seguem sendo imensos: "estamos sempre começando, ampliando o trabalho, tratando de chegar a mais e mais mulheres que se aproximam pouco a pouco da organização. Iniciando novos cursos e criando novos grupos de base. Um processo longo nada simples". "Não temos que nos limitar somente à luta reivindicativa, econômica e pela terra, que certamente é essencial. Porém, as relações de gênero, quer dizer a forma das mulheres se relacionarem com os homens e todos os seres humanos e de uma comunidade entre si são um objetivo de transformação permanente. Toca em questões tão essenciais como a da cidadania, da identidade, do direito de ser alguém", enfatiza Carminha. O MMC conta já com um reconhecimento nacional e está presente na maioria dos Estados brasileiros, os desafios a longo prazo são tão gigantes como enormes os problemas que muitas mulheres camponesas enfrentam todos os dias. A violência doméstica "Um dos problemas, talvez o mais significativo, é a violência doméstica. Cuja expressão é mais dolorosa no campo que nas cidades" enfatiza Carminha explicando de imediato sua afirmação. Enquanto nas cidades as moradias estão uma ao lado da outra, quando tem violência existe a possibilidade de pedir ajudano campo a distância entre casa e casa dificulta a solidariedade. "Na cidade, se há um problema, gritam, e as pessoas vêm. No meio rural tudo fica mais longe e a violência, muitas vezes, se converte num verdadeiro *segredo de Estado*, já que as mulheres não falam. Respondem a uma formação religiosa predominante que não lhes permite reagir, que incentiva a obediência incondicional a seus maridos, viver um espírito de *serviço*. E muitas vezes assumem esta cosmovisão quase como um sacrifício de vida, desde o próprio casamento". Atrás desta constatação, não tem somente uma longa prática cotidiana de proximidade, mas também todo um trabalho científico de pesquisa entre mulheres do MMC que Carmen Lorenzoni realizou nos últimos meses para um estudo de pós-grau universitário. "As respostas de quase 200 questionários que distribui em todo o Estado causaram um choque. Os resultados são muito preocupantes. Não esperava que fossem deste tamanho. Nunca imaginei que o problema fosse realmente tão grave considerando que são as mulheres organizadas e já com um nível de consciência". Somente a confiança humana em Carminha e em seu papel de religiosa facilitaram que as mulheres falassem, vulnerando o *segredo de Estado*. "Confiaram em mim quase como se suas respostas fossem uma confissão sacerdotal. Porém para se abrirem tiveram que enfrentar todos os medos imagináveis. O medo do marido, o *que dirá* da comunidade, o temor da família, ameaças abertas e veladas" Um compromisso integral Entre essas mulheres camponesas, a irmã Carminha não encontra somente uma família estendida mas também o sujeito essencial de sua fé e de sua prática. "O que me move é a idéia da libertação integral do ser humano. Esse é meu motor existencial. E por isso o trabalho junto com as mulheres do campo. Apostei na libertação do povo sem terra; me comprometi no combate pela sua sobrevivência e suas reivindicações mais sentidas...E últimamente me dedico mais específicamente ao movimento de mulheres camponesas porque elas seguem sendo as mais oprimidas entre os oprimidos". O olhar para atrás, impregnado de uma energia crítica -que também é autocrítica- a obriga a não negociar seus juízos. "A luta pela terra avança mas não se trabalha suficientemente a questão de gênero, é preciso esforço redobrado". E sua própria auto-exigência sobre a natureza de sua prática: "o que me move é a libertação integral, fundamental. Nunca poderia aceitar um trabalho de simples assistência social porque estou convencida de que ajudará na transformação e libertação fundamental". Homens e mulheres novas como objetivo: "o projeto de Deus concretizado em Jesus e o Evangelho" na fala da irmã Carminha, para quem a dimensão política e religiosa vão de mãos dadas. "Quero servir ao povo sendo fiel ao Evangelho; minha oração não se separa da minha ação". - Sergio Ferrari, de volta do Brasil A IGREJA DOS POBRES A igreja brasileira passa por um momento complicado, conforme ao que diz a irmã Carmen Lorenzoni. "A hierarquia se fecha; predominam as correntes carismáticas -com compromisso social fraco-; se tenta silenciar a nossos teólogos da libertação; dá a impressão que já não temos mais profetas" Radiografia questionadora da igreja católica do pais onde nasceram e se multiplicaram nos anos 80 e 90 as comunidades eclesiais de base e onde mais enriqueceu, na mesma época, os enunciados transformadores da Teologia da Libertação. "A explosão dos movimentos sociais nessa época ajudou para que a igreja se abrisse. Por outro lado, na base dessa dinâmica estiveram ativamente milhares de agentes pastorais progressistas. Em muitas regiões as Comunidades de Base foram a porta de entrada e uma das condições principais para a constituição desses movimentos". A análise, porém, não cria tristeza nem decepção na religiosa-militante. "Acho que se trata somente de um momento da historia da igreja, mas estou convencida que não morreu a idéia de transformação e compromisso, que em alguns anos vai voltar. O fermento continua ali" (SFi) O MMC E LA LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A pesquisa realizada por Carmen Lorenzoni em 2005, mostra as faces mais perversas da violência doméstica contra a mulher camponesa no Rio Grande do Sul. Mais da metade das mulheres entrevistadas - 54,5% - já sofreram violência sexual em casa. 30% vivenciaram violência física, 31% violência psicológica y 82% violência moral. 38,4% são vítimas de limitações de sua liberdade: seus maridos, namorados, companheiros que lhes proíbem de viajar, participar em reuniões, sair de casa... A luta contra a violência doméstica é um eixo chave da atuação política do MMC. O movimento, que é um movimento feminista e camponês, luta tanto pela libertação das mulheres quanto por um projeto popular de agricultura camponesa que se baseia numa agricultura diversificada e ecológica para garantir a biodiversidade, a permanência no campo e o auto-sustento das famílias. O MMC está presente em 19 Estados do Brasil. Nasceu de uma história de 20 anos de organização das camponesas que lutam por seus direitos sociais e pela construção de novas relações entre os seres humanos e com a natureza. Em 2004, se unificaram os movimentos de mulheres dos diferentes Estados em um movimento nacional, o MMC Brasil (CL+CD/ E-CHANGER)
https://www.alainet.org/pt/articulo/113997
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS