Dilemas e tensões do Fórum

31/01/2006
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Fim de mais uma edição do Fórum Social Mundial – a sexta, desta vez realizada descentralizadamente na África, Américas e Ásia. Com o fim do encontro, a retomada de assuntos tão recorrentes que formam um enredo conhecido, como o debate acerca da ação política e da intervenção pública, que acompanham o Fórum Social Mundial desde seu surgimento em 2001. A cada edição mundial do Fórum, muito se especula sobre os resultados concretos que serão apresentados e sobre os rumos que o evento-processo-espaço deverá ter daí em diante, como se a cada encontro o Fórum fosse submetido a um check-up. No Vo FSM em Porto Alegre em 2005, um grupo de intelectuais e pensadores críticos divulgou o “Manifesto dos 19”, um documento sem inovações (aliás, surpreendeu nele a ausência de menção clara aos governos europeus em relação à guerra) que basicamente sistematizou os pontos fundamentais da agenda anti e pós-neoliberal muito debatida no espaço e na dinâmica do Fórum. O “Manifesto dos 19” foi uma espécie de “inventário” das principais propostas políticas construídas no contexto do Fórum ao longo dos últimos anos, sobre as quais há importantes consensos e poucas novidades. A polêmica gerada com a apresentação do manifesto, por isso, foi conseqüência da forma como a iniciativa foi divulgada pelos seus signatários - aparentando artificialmente tratar-se de uma deliberação geral do Fórum -, e não devido ao conteúdo nela contido. Ao final deste Fórum novamente observam-se manifestações de desacordo e desconforto adicionadas com divergências políticas e um clima de tensão entre integrantes do Conselho Internacional devido (i) à proposta de adoção do “Apelo de Bamako” pelo capítulo venezuelano do FSM2006; e (ii) à cobrança de um novo papel político do Fórum, feita pelo presidente venezuelano. De Bamako à Venezuela e Chávez O Apelo de Bamako foi discutido e aprovado por organizações terceiro-mundistas européias e africanas nos dias que antecederam o capítulo do FSM2006 na África, que foi realizado em Bamako, no Malí, de 19 a 23 de janeiro passado. A idéia principal desta iniciativa é, por um lado, atualizar e retomar a plataforma de desenvolvimento com soberania lançada em Bandung-Indonésia em 1955 pelas lideranças de nações subdesenvolvidas e não alinhadas às duas potências dominantes no período pós-guerra, os EUA e a URSS. (grave-se que em Bandung surgiu a expressão “Terceiro Mundo”). O outro objetivo com o Apelo de Bamako é articular política e ideologicamente os dois Fóruns que se realizam no sul da geografia política, construindo dessa forma uma unidade sul-sul entre os povos e nações e suas respectivas lutas. Já o Presidente Hugo Chávez, durante pronunciamento feito para mais de 6 mil pessoas no dia 27/01, tocou em pontos sensíveis para determinadas correntes de opinião que habitam o espaço do Fórum. Chávez cobrou um protagonismo político mais radical do Fórum no atual estágio de luta contra o neoliberalismo e o imperialismo, e propôs a formação urgente de uma frente internacionalista contra o império. Além disso, Chávez alertou para os riscos de que o Fórum possa se tornar algo folclórico e festivo caso não acentue sua capacidade concreta de intervenção nos acontecimentos mundiais. Temores e fantasmas Alguns grupos do Fórum têm posições francamente contrárias a movimentos que impliquem na politização do processo ou na adoção de plataformas que possam significar uma ação coletiva ou de representação política forte frente aos fatos de cada conjuntura. Nas palavras de um integrante do Conselho Internacional (CI), “a pessoa que falar de política no CI pode ser acusado de ser pervertido sexual”. Nesta perspectiva, é negada a essência extremamente política e politizadora do Fórum, numa atitude de negação da política. Daí se compreende a condição do Fórum como uma espécie de “ator poderoso sem ação”, ou seja, um empreendimento com enorme autoridade moral, cultural e política que, entretanto, não é capaz de representar politicamente o Fórum perante governos e organismos internacionais. Mesmo que seja a respeito de questões absolutamente consensuais (senão unânimes) como de oposição à guerra e à militarização ou de manifestação de solidariedade a povos e nações atingidas por fenômenos naturais. Outros grupos, ao contrário, defendem a necessidade de que o Fórum ocupe a arena política internacional a partir de uma plataforma global de enfrentamento ao neoliberalismo e ao imperialismo. Esta plataforma, sustentam estes grupos, em princípio já foi tecida coletivamente nestes anos todos de realização do Fórum, e conformaria o arsenal programático e ideológico para a ação mais determinada na conjuntura internacional. Segundo esta percepção, ao longo desses anos o Fórum foi capaz de esmiuçar e produzir uma síntese fundamental a respeito da realidade de discriminação e opressão capitalista em todas suas múltiplas dimensões - da cultura, do ambiente, da economia, das relações humanas, das cosmovisões, da religiosidade, da democracia, da política, da economia, do Estado, do poder, etc. Seria o caso, a partir de agora, de se assumir com urgência os desafios da luta mais efetiva contra o padrão de desordem e destruição neoliberal vigente no mundo, num quadro político favorável na América Latina. Desta mesma linha de pensamento, também partem as críticas ao que é considerada a despolitização do processo e do espaço do Fórum, ocasionada pela equivalência horizontalista dada a lutas de caráter muito específico e restrito que, além disso, se desvinculam das estratégias de construção de um poder contra-hegemônico. Mais além dos aparentes limites do Fórum O Fórum Social Mundial é, seguramente, o espaço mais amplo e plural de convivência e organização da sociedade civil internacional. No seu interior coabitam movimentos sociais e organizações civis de distintas procedências étnicas, religiosas, setoriais, sociais, geográficas, de gênero e geracionais, assim como outras pertencentes a tradições teóricas identificadas com os clássicos da militância socialista e internacionalista. Esta é, precisamente, a base que confere ao Fórum uma enorme pertinência histórica, singular na história da humanidade – talvez o principal e paradoxal efeito rebatido da globalização. O Fórum, desde o seu princípio, nunca se constituiu como um espaço que tivesse como objetivo pré-figurar a organização de uma nova internacional de seções partidárias nacionais. A Carta de Princípios com toda clareza estabelece a natureza deste processo, seus compromissos e as condições para que dele façam parte tantas quantas forem as organizações da sociedade civil que se opõem à globalização capitalista excludente e autoritária. Além disso, nas sucessivas edições mundiais do Fórum foram gestadas propostas e bandeiras de lutas com forte entonação de esquerda, sem comprometer a diversidade e a pluralidade de milhares de resoluções adotadas por distintos setores. A partir deste campo foram construídas as iniciativas que atacam centralmente os fundamentos da dominação neoliberal e imperialista, como a denúncia da guerra e da militarização, a luta contra a Alca, as campanhas contra o livre comércio, a luta contra a dívida e a livre circulação de capitais, a defesa da soberania dos povos, campanhas de solidariedade e outras tantas de caráter continental ou setorial. Isto, em certo sentido, vem conferindo uma identidade e imagem pública do Fórum como um espaço político da esquerda mundial. Muito se tem avançado através do Fórum, principalmente no continente latino-americano. No ascenso das lutas contra o neoliberalismo foram eleitos diversos governos de esquerda e progressistas, foi interditada a implantação da Alca que deveria entrar em vigor em janeiro de 2005, e tem-se dificultado os projetos belicistas e intervencionistas do governo norte-americano. Estes avanços foram conquistados através da geração da consciência anti-imperial e anti-capitalista no continente, bem como em decorrência da qualidade com que os movimentos sociais radicalizados, organizados em redes continentais, conseguiram atuar com plataformas comuns e construir alianças com instituições partidárias e governamentais aliadas. Perguntas verdadeiras para pensar os desafios e as tarefas do Fórum Pode-se garantir que haja retrocesso ou atraso no aprofundamento da luta contra o neoliberalismo e o imperialismo? O patamar atual de consciência dos povos latino-americanos impede saltos de qualidade no enfrentamento do império? Na Europa, na Ásia e na África verifica-se a mesma capacidade de mobilização social como nas Américas? O Fórum de fato não possui uma plataforma radical e por isso corre o risco de se tornar um grande festival? O Fórum deve mesmo adotar posições únicas a respeito da estratégia e do programa para o combate ao neoliberalismo e ao imperialismo, sob pena de perder sua potência política? Para se responder aos questionamentos sobre o futuro e o destino do Fórum deve-se levar em conta que o Fórum tem contribuído para o avanço geral da consciência das massas e para o êxito das lutas empreendidas no continente e em todo o mundo. De outra parte, deve-se observar que a alquimia do Fórum não tem interditado o avanço das lutas, das alianças políticas e das formulações programáticas. O Fórum não é e provavelmente não será uma nova Internacional dos Trabalhadores, entretanto o Fórum não proíbe que setores atuem na perspectiva de formação de uma nova Internacional ou de qualquer outro organismo mundial, inclusive uma central internacional de ong’s. Da mesma forma não há proibição para que setores identificados com determinadas correntes do internacionalismo e que atuam no movimento social, possam oferece e disputar suas posições. Os resultados do Fórum a cada ciclo entre um encontro mundial e outro são determinados pela capacidade de articulação, de elaboração estratégica e de inserção social no movimento real de massas. Estes componentes parecem estar em contato íntimo com os setores que buscam a politização do Fórum e sua aderência aos processos mais radicalizados da luta libertária. O FSM é o espaço e processo mundial com o maior poder aglutinador de consciências e de mobilização social para a construção de uma nova hegemonia que supere a globalização capitalista e derrote o imperialismo. Apostar nele a partir de suas próprias regras parece a melhor perspectiva. E não se trata de uma visão taticista ou utilitária de entrar no espaço para dele cooptar o que de melhor poderá servir à perspectiva socialista. Fortalecer e investir no Fórum é uma questão estratégica, determinante para a expansão do espírito de esquerda que inflama e contagia as multidões para a construção de um futuro generoso. Este é um tempo em que devemos entender a urgência revolucionária como imperativo indissociável da paciência histórica. - Jeferson Miola é integrante do IDEA – Instituto de debates, estudos e alternativas de Porto Alegre. www.agenciacartamaior.com.br
https://www.alainet.org/pt/articulo/114209
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