O futuro do Fórum Social Mundial

03/02/2006
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Concluída a sexta edição do Fórum Social Mundial, que neste ano ocorreu de forma descentralizada – em Bamako, na África, e em Caracas, na América Latina (o capítulo asiático será realizado no final de março, em Karachi) –, os envolvidos neste rico processo passam a avaliar os seus resultados e o próprio futuro do FSM. Uma coisa já é certa: esta edição foi a mais politizada desta iniciativa que tem congregado milhares de ativistas nos últimos seis anos. Até os setores refratários à politização deste espaço plural reconhecem que este fórum teve a marca registrada da luta contra o imperialismo e em defesa do socialismo. Na gíria dos participantes mais assíduos, os ongueiros, profissionais de algumas mal-afamadas organizações não-governamentais (ONGs), perderam influência em 2006. De ano para ano, a sua hegemonia tem refluído! A tensão sobre os rumos do fórum vem desde a sua origem. Nos primeiros anos, houve a predominância das concepções que negam a luta política, que fazem cara feia diante da participação dos partidos e dos chamados movimentos sociais tradicionais (sindicatos, entidades estudantis e outros) e que rejeitam a idéia de interferir nos rumos dos governos nacionais. Conforme lembra o sociólogo Jeferson Miola, estes grupos sempre foram “francamente contrários aos movimentos que impliquem na politização do processo ou na adoção de plataformas que possam significar uma ação coletiva ou de representação política forte frente aos fatos de cada conjuntura. Nas palavras de um integrante do Conselho Internacional do FSM, ‘a pessoa que falar em política no CI pode ser acusada de ser um pervertido sexual’”. Com o passar dos anos, entretanto, esta visão idílica, que prega “mudar o mundo sem tomar o poder”, foi perdendo seu charme. A crua e dura realidade impôs esta alteração. A agressividade do terrorista George W. Bush, marcada com sangue na ocupação do Iraque ou nas chantagens para impor os tratados de “livre comércio”, forçou uma postura mais politizada contra o imperialismo estadunidense. A fadiga do modelo neoliberal, que propõe a redução do papel do estado e a pretensa supremacia da sociedade civil e de suas ONGs, revelou também os limites da ação atomizada, fragmentada e despolitizada. Já a recente guinada à esquerda na América Latina, com as vitórias eleitorais de setores oriundos do próprio movimento social, deu novo animo à militância e reforçou a necessidade da interferência na política. A vida é implacável! Para Edgardo Lander, professor da Universidade Central da Venezuela e um dos organizadores do fórum em Caracas, esta opção foi se impondo devido ao agravamento do quadro mundial. “Não há mais o medo da política. Havia em épocas anteriores uma pretensão de separar o social do político, de acreditar que o político era contaminado e sujo e de que o social era puro e autônomo. Mas, consultando as organizações para a construção do programa deste fórum, apareceu reiteradamente a demanda pelos temas políticos. O que se passa com o Império, qual a relação entre organizações sociais e governos de diferentes graus, de esquerda, progressista, de centro, foram os temas que as organizações estabeleceram como necessários”. Tanto que o maior número de atividades em Caracas se deu no Eixo I (poder, política e emancipação), com auditórios sempre concorridos, o que comprova o amadurecimento do Fórum Social Mundial. PROTAGONISMO POLÍTICO Já no fórum de Porto Alegre, no ano passado, um grupo de renomados intelectuais divulgou o “Manifesto dos 19”, sistematizando as principais bandeiras dos movimentos sociais e propondo uma intervenção mais articulada e politizada desta iniciativa. O documento causou até desconforto, já que a carta de princípios do FSM rejeita a adoção de plataformas e ações unitárias. Desta vez, porém, esta idéia ganhou força. Na África, foi aprovado o “Apelo de Bamako”, que atualiza o programa de desenvolvimento com soberania nacional lançado em Bandung (Indonésia) em 1955 – foi nesta conferência que surgiu o termo “terceiro mundo”. Já em Caracas, o próprio Hugo Chávez, presidente da nação anfitriã do fórum, foi enfático na cobrança de maior protagonismo político do fórum e na defesa da formação de um frente antiimperialista. “O FSM tem uma grande importância na ofensiva mundial dos movimentos sociais, políticos, governos e parlamentos contra o imperialismo. Não podemos permitir que ele se converta num encontro turístico e folclórico, todos os anos. Estaríamos perdendo tempo e não podemos perder tempo. Por isso, convido a todos os líderes do FSM a construir um plano de ação unitário para impulsionar nossas lutas em todo o mundo. Clamo o FSM, respeitando sua autonomia, para a construção de um grande movimento mundial antiimperialista, um movimento autenticamente socialista”, afirmou o líder da revolução bolivariana para o auditório superlotado do ginásio do Poliedro. No mesmo rumo, ele endossou o “Apelo de Bamako”. A conclamação de Hugo Chávez causou um visível incômodo entre os dirigentes de algumas ONGs, que hoje não escondem mais seu temor diante da crescente liderança do presidente venezuelano. Já entre os movimentos sociais, a proposta foi encampada com vibração. Na sua assembléia mundial, que fechou as atividades do fórum em Caracas, eles ressaltaram a urgência da maior politização das lutas e destacaram que a “explosão de mobilizações” nos últimos anos se traduziu, em alguns países, “no ascenso ao governo de alternativas políticas surgidas no calor das lutas populares. O exemplo mais recente é o da vitória de Evo Morales na Bolívia”. Diante deste cenário mais promissor, os movimentos sociais rejeitaram a idéia de qualquer abstinência política. “Devemos manter nossa autonomia política e programática, impulsionar a mobilização social para avançar na conquista de nossos objetivos e pressionar contra qualquer adaptação destes governos ao modelo neoliberal”, afirma o documento da assembléia unitária. Sem negar a sua autonomia e nem os entraves para a superação do neoliberalismo, os movimentos sociais deixaram explícito que é preciso politizar e intervir na luta política. Apontaram também que é necessário repensar as suas relações com os partidos e os governos nascidos das suas mobilizações, tendo como meta maior fortalecer a luta contra o neoliberalismo e o imperialismo. Que nesta luta é preciso ter firmeza de princípios e muita flexibilidade tática, evitando a passividade ou as arapucas do inimigo. “Devemos nos unir, governos, forças políticas e movimentos sociais para construir uma grande frente antiimperialista e travar uma batalha no mundo inteiro, respeitando a diversidade e a autonomia de cada um. Mas sem coordenação e unidade não chegaremos a nada”, insistiu o presidente Hugo Chávez. MARCAS DO FÓRUM Com essa compreensão mais avançada, que supera a falsa dicotomia entre os movimentos sociais e a ação política, o FSM-2006 reforçou ainda mais o seu caráter antiimperialista e retomou a reflexão, em um novo patamar, sobre a luta pelo socialismo. A exemplo do já verificado no ano passado, a passeata de abertura em Caracas não se limitou à genérica defesa da paz mundial, mas colocou o dedo na ferida condenando a guerra imperialista no Iraque e a ampliação de bases militares dos EUA. Mister Danger, como o terrorista George Bush é chamado por Hugo Chávez, foi alvo de duros ataques, sendo considerado o pior inimigo da humanidade. A idéia da urgente formação de um movimento internacionalista contra o imperialismo empolgou várias organizações sociais e políticas, que se comprometeram a discutir o tema em seus países. Já o tema do socialismo, sempre ofuscado nos fóruns anteriores, surgiu com força em Caracas. A defesa explícita de Chávez da construção do socialismo do século XXI criou um clima propício para este debate. Vários partidos e organizações sociais distribuíram panfletos com o slogan “socialismo ou barbárie”. O PCdoB levou camisetas, bandeiras e adesivos com a foice e o martelo; o seu jornal, A Classe Operária, numa edição especial em português e espanhol, estampou na manchete a luta pelo socialismo. No evento mais concorrido do fórum, na palestra do líder bolivariano no Poliedro, uma emocionante abertura ao som do Hino da Internacional revigorou a perspectiva do socialismo. Por estas e outras razões, o FSM-2006 marca o início de uma nova fase da luta contra o neoliberalismo e o imperialismo, da luta pela aproximação do objetivo estratégico socialista. A partir de Bamako e de Caracas, o fórum não será mais o mesmo. Respeitando a diversidade e preservando a unidade, os seus maiores patrimônios, o FSM pode jogar papel ainda mais ativo na denúncia das mazelas da globalização neoliberal, na apresentação de idéias e propostas e, principalmente, na construção de alternativas viáveis e concretas de superação desta que é a fase mais destrutiva e regressiva do capitalismo. - Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Venezuela: originalidade e ousadia” (Editora Anita Garibaldi, 2005).
https://www.alainet.org/pt/articulo/114275
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