O sul é o norte

06/02/2005
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O mundo anda desnorteado, vocábulo derivado da bússola, cuja agulha aponta para o Norte. O modelo imperante é o capitalismo neoliberal, mercadocêntrico. E para justificá-lo a linguagem faz peripécias retóricas, associa democracia com “mercado livre”, crescimento do PIB com desenvolvimento, especulação financeira com investimento. Habitus tabagium, bucalis degenerium (o uso do cachimbo deixa a boca torta) diziam os romanos muito antes de Marco Polo ensinar-lhes a preparar um bom ravióli. É isso, de tanto propalar mentira ela acaba com ares de verdade. Como estas bem contadas mentiras: os italianos inventaram o macarrão, Hollywood é a maior produtora mundial de filmes, o mercado é livre. Pergunte se o mercado é livre a quem abre uma padaria, um posto de gasolina ou uma fábrica de fósforos. O fato é que vivemos sob a ditadura do lucro exorbitante, a ponto de o presidente gabar-se de ter zerado a dívida do Brasil com o FMI, no valor de US$ 15 bilhões. Melhor se tivesse rolado a dívida e aplicado o dinheiro para ressarcir a dívida social. O valor corresponde a pouco mais que o orçamento anual do Ministério da Saúde. Os dados da ONU revelam que a conjuntura mundial se agrava: de 6,3 bilhões de habitantes, 4 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza, com renda mensal inferior a US$ 60. Onde está a saída?, pergunta o Fórum Mundial Social, reunido em Caracas. Lux ex Oriente, diziam os antigos. Desta vez, a luz vem da América do Sul. Inverte-se a ponta da bússola da esperança: o Sul é o norte. Após décadas de ditaduras no Cone Sul, a população demonstra-se saturada com o embuste das políticas neoliberais. Rejeita a Alca, condena a invasão do Iraque e vota por mudanças. É o que explica a eleição de Chávez na Venezuela, Lula no Brasil, Lucio Gutiérrez no Equador, Kirchner na Argentina e, agora, Tabaré Vázques no Uruguai, Michele Bachelet no Chile e Evo Morales na Bolívia. Na prática, a teoria é outra. Uma vez eleitos, alguns governantes rogam para esquecermos o que escreveram, falaram, prometeram. Foi o caso de Gutiérrez, empossado em 2003 e escorraçado do poder, dois anos depois, pelo povo equatoriano. E, no Brasil, Lula ainda nos deve uma política econômica menos submissa ao grande capital e a reforma agrária. Contudo, as placas tectônicas da política se movem no chão da América do Sul. O que há de novo? Primeiro, uma rejeição à elite conservadora. O eleitorado cansou-se dos velhos caciques, das famílias tradicionais instaladas como verdadeiras dinastias no poder. E, agora, acredita em quem lhe é imagem e semelhança, nasceu pobre (Chávez, Lula e Evo), padeceu sob ditaduras militares (Lula, Tabaré e Bachelet), expressa as demandas dos setores excluídos da população. Ainda que da boca para fora, os novos governantes sentem-se obrigados a priorizar as políticas sociais, a reconhecer a autonomia dos movimentos populares, a defender a soberania de Cuba e a manter a devida distância frente às ingerências da Casa Branca. Ainda é cedo para avaliar o quanto há de demagogia nessa renovação política da parte Sul do Continente. O fato é que ele faz emergir um novo sujeito político: os movimentos populares. Outrora tutelados por partidos ou instituições como a Igreja e as ONGs, os movimentos populares (indígenas, mulheres, negros, sem-terra, bairros da periferia, sindicatos etc.) tornam-se o fiel da balança na nova conjuntura. Melhor governar com eles do que contra eles. Já não há como criminalizá-los ou ignorar as suas demandas, como fez FHC em oito anos de mandato. Isso não significa que terão suas reivindicações atendidas. Os donos do poder atravancam os governos. Mas já são um avanço políticas compensatórias que, como o Bolsa Família, distribuem renda a milhões de pessoas, embora se saiba que a remuneração do capital, através do garrote fiscal, é bem superior aos recursos destinados aos mais pobres. Este ano o eleitor brasileiro é, de novo, convocado às urnas. Tomara que vote em sintonia com o processo da renovação política da América do Sul, que em breve poderá se estender por outros países, como Peru, Nicarágua e México, que terão eleições presidenciais em 2006. Talvez não se possa escolher o ideal, e sim o possível. Entre muitos critérios, o Evangelho acentua os direitos dos mais pobres. Sem vida para todos, assegurada por reformas da estrutura fundiária, da educação e ofertas de emprego, o Sul não terá norte. Terá morte. - Frei Betto é escritor, autor de “Treze contos diabólicos e um angélico” (Planeta), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/114289
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