O homem que podia tudo
22/06/2006
- Opinión
Havia um homem que podia tudo. Não sei se era alguém do
tempo em que as mágicas eram verdadeiras ou alguém que
houvesse atingido a culminância do processo evolutivo.
Ele se chamava simplesmente o homem-que-podia-tudo. Tinha
uma obsessão: a tranquilidade. Não suportava o torvelinho
das coisas cotidianas. Decidiu fugir delas.
Certo dia, largou tudo e demandou lugares ermos para
poder gozar da tranquilidade de estar parado. Depois de
alguns dias, começou a refletir e com a reflexão veio a
perturbação. Deu-se conta de que estava girando a uma
velocidade de 1.700 km horáros, pois esta é a velocidade
da Terra ao redor de seu próprio eixo. Aborreceu-se da
Terra que o arrastava irresisitivelmente consigo.
Como era o homem-que-podia-tudo resolveu abandonar o solo
terrestre e pô-se com seu satélite, lá em cima, muito
além da estratosfera. Corria muito mas pelo menos a
velocidade era menor do que aquela da Terra sobre seu
própro eixo. Mas logo perdeu a tranquilidade porque deu-
se conta de que junto com a Terra girava a 107.000 km
horários ao redor do Sol. Enfurecido excogitou logo uma
saída que lhe garantisse a tranquilidade. Decidiu
deslocar-se para fora da órbita terrestre. Foi lá pelas
bandas de Júpiter. Ai estaria, enfim, livre da esfuziante
velocidade da Terra. Não demorou muito e perturbou-se
sobremaneira. Por mais que fugisse da Terra não fugiria
todavia do Sol. Juntamente com o Sol e os demais planetas
encontrava-se girando a 250 km por segundo ao redor do
centro de nossa galáxia, a Via-Láctea.
Como era o homem-que-podia-tudo resolveu abandonar o
sistema solar. Buscou outras paragens cósmicas. Pôs-se
tão longe e tão tranquilo que pouco lhe importava saber
em que sistema estelar se situava. Pelo menos estava
tranquilo.
Certo dia, porém, descobriu um dado que lhe roubou
totalmente a tranquilidade. Estava efetivamente girando a
uma velocidade de 1.500 km por segundo, acompanhando
nossa galáxia numa viagem ao redor do centro de um
conglomerado de outras 2.500 galáxias vizinhas.
Ficou furibundo. Começou a andar no sentido inverso da
galáxia, na certeza de que assim anularia a velocidade e
podia sentir-se praticamente parado.
Certo dia emudeceu de estarrecimento e de impotência.
Deu-se conta de que, integrado ao conjunto de todos os
corpos celestes, conglomerados de galáxias e sistema
solar, estava correndo, não, fugindo a uma velocidade de
5.790 km por segundo, de um ponto imaginário do espaço,
onde presumivelmente todos tiveram origem, no big-bang,
ocorrido há l5 bilhões de anos. Mas ninguém sabe na
direção de quê.
O homem-que-podia-tudo finalmente intuiu que por mais que
fugisse, não fugia suficientemente. Era carregado por
algo maior que envolvia tudo.
O homem-que-podia tudo renunciou ao seu nome e a suas
pretensões. Regressou humildemente à Terra e à sua casa.
Sentou-se em sua varanda e começou a contemplar a
tranquilidade de todos as coisas. Apesar da velocidade,
elas estavam como que paradas na tranquila serenidade e
na serena tranquilidade de uma natureza morta. Acolher a
velocidade foi encontrar a tão ansiada tranquilidade.
Será que isso tudo não tem a ver com o grande e ignoto
Atrator, com o Tao e com Deus?
- Leonardo Boff, teologo e da Comissão da Carta da Terra
https://www.alainet.org/pt/articulo/115703
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