João, Pedro e Paulo
29/06/2006
- Opinión
Junho é lembrado pelas festas juninas que, a rigor, deveriam ser chamadas de festas joaninas, em homenagem a são João Batista, cujo nascimento é comemorado dia 24. Filho de sacerdote, há indícios de que ingressara no mosteiro dos monges essênios de Qumran, junto ao Mar Morto, cujas ruínas visitei em 1997, ao pesquisar para o meu livro sobre Jesus, ³Entre todos os homens² (Ática).
Os essênios centravam a sua espiritualidade na pureza; João, na justiça. Após abandonar a condição de monge tornou-se pregador itinerante à beira do Rio Jordão. Ali batizou seu primo Jesus e pregou o arrependimento dos pecados como primeiro passo à conversão. Dirigia a cada penitente uma palavra adequada: aos abastados recomendava partilhar vestes e alimentos com os pobres; aos soldados, não torturar nem extorquir dinheiro.
Indignado frente à corrupção de Herodes Antipas, governador da Galiléia, João o denunciou ao público. Preso por desacato à autoridade, foi decapitado durante uma festa palaciana, quando Salomé, filha da amante de Herodes, pediu, por sugestão da mãe ofendida, a cabeça de João Batista.
Anos depois, outro João, o evangelista, abriria seu relato sobre Jesus evocando João Batista que veio para ³dar testemunho da luz², Cristo. Daí as fogueiras, símbolos da luz do mundo anunciada por João.
Junho fecha comemorando, dia 29, dois outros importantes personagens do cristianismo primitivo: Pedro e Paulo. Tivesse eu o talento de um Chesterton, escreveria sobre o humor nos evangelhos, destacando a figura bizarra de Pedro. Irmão de André, era um tipo meio turrão. Foi dos primeiros discípulos de Jesus. Pescador, espantou-se quando, após uma noite de rede vazia, viu-a retornar cheia de peixes ao ser lançada no lugar indicado pelo Mestre. Julgou-se indigno de estar ao lado dele, devido à aguda consciência de seus pecados.
Casado, Pedro viu Jesus curar-lhe a sogra. Porém quase se afogou quando tentou caminhar sobre as águas para ir ao encontro dele. Tinha dificuldade de captar o sentido das parábolas e recriminou Jesus quando este prenunciou sua paixão; ao vê-lo preso, negou três vezes tê-lo conhecido.
No entanto, foi este homem frágil, pecador, pouco inteligente e covarde que Jesus escolheu como pedra angular de sua Igreja. Ele é o exemplo maior do que significa ocupar o poder. Como primeiro papa, jamais abusou de sua autoridade, a ponto de suportar repreensões públicas de Paulo, conforme narra a Carta aos Gálatas. Morreu martirizado em Roma, no local em que se ergue a basílica consagrada a seu nome.
Nenhum outro papa, ao longo de mais de dois mil anos de história da Igreja, adotou o nome de Pedro II. Séculos depois, Nostradamus predisse que se alguém o fizesse seria indício do iminente fim do mundo. Ora, do jeito que andam as coisas pode ser que o mundo acabe antes do prazo de validade estabelecido por Deus. Basta lembrar que, além dos estragos feitos por nós ao meio ambiente, há nos arsenais nucleares ogivas suficientes para destruir este Planeta 36 vezes!
Todos os políticos fazem projetos a longo prazo, ao menos no que concerne à carreira pessoal. Querem permanecer o maior tempo possível no poder, como tantos que serviram à ditadura militar e, ainda hoje, agarram-se tenazmente ao mandato recebido das urnas. Tratam de semear em qualquer horta que lhes sinalize uma breve e promissora colheita em termos de indicações, nomeações e promoções de correligionários, de modo a assentar o tapete no qual trafegam imbuídos da ilusão de imortalidade. Raros os que seguem os exemplos de João, Pedro e Paulo. Muitos calam-se coniventes frente à corrupção, preferem agradar Salomé a defender o Batista, jamais ousam propor a partilha das riquezas e punir quem tortura e pratica extorsão.
O precursor de Jesus e os dois apóstolos fundadores da Igreja foram homens que sofreram perseguições em defesa da verdade e da justiça. Todos passaram pelo cárcere, admitiram suas fraquezas, pagaram com o sangue a coerência às suas convicções.
Talvez seja isto que falta aos nossos homens e mulheres investidos do mandato popular: pensar mais na obra de justiça e menos em si mesmos. Imortal é a obra e, com ela, aqueles que lhes serviram de alicerce. Sem ela, todas as palavras e promessas e conchavos e articulações são tão importantes quanto a primeira página do jornal de ontem, que hoje embrulha legumes na quitanda da esquina.
- Frei Betto é escritor, autor de ³Alfabetto autobiografia escolar² (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/115801
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