TV digital: dormindo com o inimigo

17/07/2006
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
Dois dias antes do desastre da seleção brasileira na Copa do Mundo, o presidente Lula assinou o decreto que confirma a adoção pelo Brasil do modelo japonês de televisão digital (ISDB). A iniciativa, tomada de forma apressada e sem consultas mais amplas à sociedade, revoltou as entidades que participam da Frente Nacional por um Sistema Democrático de Rádio e de TV Digital – entre elas, a Federação Nacional dos Jornalistas, CUT, UNE e MST. Apenas os donos da mídia e o ministro das Comunicações, Hélio Costa, que por quase duas décadas serviu fielmente à Rede Globo, comemoraram este outro histórico desastre! Para as entidades que compõem a frente, a decisão do governo Lula representa um grave erro estratégico: “Ela significa a morte do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), cuja proposta inicial baseava-se em princípios como a democratização da comunicação, a promoção da diversidade cultural, a inclusão social, o desenvolvimento da ciência e da indústria nacionais e que implicou em investimentos de R$ 50 milhões na formação de 22 consórcios de universidades brasileiras, envolvendo 1.500 pesquisadores. Ao optar pelo ISDB, o governo despreza o acúmulo social que sustentou a sua eleição e submete-se de maneira subserviente aos interesses dos principais radiodifusores, especialmente aos das Organizações Globo”. Falta de transparência O debate sobre o modelo de televisão digital a ser implantado pelo Brasil já perdura há alguns anos. Num primeiro momento, o governo Lula criou o citado SBTVD, através do decreto 4.091/2003, como forma de incorporar as entidades da sociedade civil e os meios científicos neste projeto. Esta instância democrática, que contou com a contribuição de 82 instituições de pesquisa, desenvolveu três alternativas de modulação para a digitalização. Todas elas permitiriam, na passagem do atual modelo analógico para o digital, um inédito processo de democratização dos meios de comunicação, com a multiplicação dos canais de TV, o emprego de milhares de trabalhadores e uma maior autonomia tecnológica, entre outras vantagens. Mas, diante da violenta pressão dos donos da mídia, o governo preferiu esvaziar o SBTVD. As entidades deixaram de ter acesso aos seus relatórios internos e aos argumentos técnicos e econômicos que pudessem justificar qualquer opção. E agora, sem qualquer transparência, o governo comunica a adoção do modelo japonês. “Este silêncio do governo, que abandonou as frustradas tentativas de emplacá-lo por supostas vantagens técnicas ou industriais, induz a uma única conclusão: a de que essas justificativas não são defensáveis publicamente por atenderem exclusivamente a interesses privados”, argumenta a frente. Ao que tudo indica, o papel da televisão na disputa presidencial em curso pesou – e muito – nesta decisão. Mas o risco é o do governo Lula estar novamente se iludindo com os donos da mídia e “dormindo com o inimigo”. Todos os argumentos apresentados pelos lobistas deste poderoso setor não se sustentam. Eles divulgaram que o modelo japonês é mais avançado, permitirá sensível melhora nas transmissões e poderá ser implantado mais rapidamente. A professora Regina Mota, da Universidade Federal de Minas Gerais, nega estas pretensas vantagens. “Nossa tecnologia é mais avançada do que a que será importada do Japão. Além disso, os pesquisadores do SBTVD afirmam que o modelo japonês encontrará muitas dificuldades para funcionar, principalmente no que diz respeito à transmissão do sinal para a totalidade do país”. Quanto à pressa para introdução do novo modelo, ela só interessa às redes de televisões e às empresas de alta tecnologia japonesas. A TV digital não é uma realidade mundial, nem mesmo nos países do chamado “primeiro mundo”. Já a China, que está num estágio mais avançado de pesquisas neste setor, somente pretende finalizar seu sistema em 2008. Mesmo no Japão, nem todas as cidades recebem o sinal digital. Além disso, é sabido que um dos consórcios de pesquisa do SBTVD, bancado pelo governo, desenvolveu um padrão de modulação brasileiro na PUC do Rio Grande do Sul que, com o financiamento necessário, poderia estar finalizado e pronto para ser produzido nas fábricas já no final deste ano. Ainda segundo Regina Mota, o modelo adotado pelo governo afastará ainda mais a população carente das novas tecnologias. “Este sistema vai chegar àqueles que hoje têm poder aquisitivo para ter internet, acesso aos jornais e revistas”. No mesmo rumo, Gustavo Gindre, jornalista do Coletivo Intervozes, ataca: “Como foi concebido, ele aumentará a desigualdade informacional que já existe”. Ele lembra que, como o modelo adotado só está sendo usado no Japão, a tendência é que o preço dos equipamentos necessários para o seu funcionamento fique mais caro ao consumidor. “O governo sequer fez um estudo para avaliar este fator”. Por último, como prova cabal desta decisão precipitada do governo, a adoção do ISDB poderá resultar em vários processos judiciais. Já em fevereiro passado, a chefe da Procuradoria Geral de Direitos do Cidadão, Ela Wiecko, solicitou a averiguação dos eventuais desrespeitos à lei na escolha do modelo. Atualmente, o único marco legal que fixa as regras de como deve funcionar a digitalização é o próprio decreto 4.091 que implantou o SBTVD. Ele estabelece que o novo sistema deve promover a democratização da informação, a criação de uma rede universal de educação à distância e o fomento à pesquisa e à indústria nacionais. O sistema japonês, que visa apenas lucros, evidentemente não respeita nenhuma destas finalidades legais. Um equívoco estratégico Para muitos, o tema da digitalização ainda é algo bastante distante. Mas um rápido estudo evidencia que esta é uma discussão estratégica, vinculada à luta pela democratização da mídia, ou seja, pela ampliação da democracia no Brasil. Conforme explica Gustavo Gindre, “a TV digital permite fazer uma coisa que os nossos computadores já fazem, que é tratar indistintamente os dados. No computador você pode ver um filme, escutar uma rádio ou editar um texto. Nele a foto, vídeo ou música são a mesma coisa: números. Antes uma coisa era o rádio, outra era a TV e outra era a transmissão de dados. Agora, tudo é dígito”. Como efeito mais palpável, “a TV digital permite que você coloque a transmissão dos dados na televisão e ela ainda passa a ser interativa se tiver um canal de retorno. Esse canal pode ser um telefone celular, telefone fixo, internet discada, banda larga ou cabo. É possível até ter acesso às informações de governo. Se levarmos em conta que só 15 ou 20% da população têm computador, essas informações poderiam chegar aos mais de 90% dos brasileiros que têm um aparelho de TV”. Em síntese, o poder da TV digital é impressionante, podendo inaugurar uma nova fase no tratamento e democratização das informações. Exatamente por isso, o tema da digitalização envolve lucrativos interesses. Além do modelo brasileiro, outros três participaram da concorrência: estadunidense (ASTC), europeu (DVD) e japonês. O primeiro foi desenvolvido no início dos anos 90 a partir da evolução do analógico. “Ele é ruim porque paga o preço do pioneirismo”, explica Gindre. Já o europeu tem melhor qualidade tecnológica, mas que já estava sendo desenvolvida no Brasil. “Se a gente pode gerar empresas e tecnologias brasileiras, prefiro isso a comprar algo feito no exterior, o que nos obrigará a ficar pelo resto da vida pagando para estas empresas”. Já o modelo japonês traz outros graves prejuízos. Ele privilegia a alta definição da imagem, o que impede a formação de novas emissoras e beneficia somente os donos da mídia. “A alta definição é um caminho elitista, caro. Com o sistema de alta definição não adianta comprar uma caixinha (um dispositivo) por R$ 300 e botar na TV, que não vai ter alta definição. Ela te dá alguns serviços no campo da interatividade, mas não melhora a imagem da TV. E ele é elitista porque não permite que mais emissoras entrem no dial (freqüência). Não dá para colocar rádio comunitária nem TV pública porque o espaço é limitado”. Na prática, este modelo serve basicamente aos interesses da Globo. “As emissoras pequenas e médias não atentaram para o fato de que esta escolha não é ruim só para quem quer democratizar a comunicação. A Rede TV ou a CNT vão ter condições de pagar R$ 50 mil numa câmera? Porque esse é o valor da câmera digital profissional. Tudo terá que ser mudado: estúdios, iluminação, instalações físicas e até maquilagem. O único estúdio de TV no Brasil preparado para a transmissão de alta definição é o Projac (complexo de estúdios da Rede Globo em Jacarepaguá/RJ). Quanto mais sofisticado mais você exclui as pequenas e as médias emissoras privadas e as produtoras independentes de ONGs e dos movimentos sociais”. Ganância da Rede Globo Segundo estudo do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento em Telecomunicações, a transição do modelo analógico para o digital causará uma nova crise na mídia, como a verificada na implantação da televisão a cabo nos anos 90. Os gastos iniciais das emissoras podem chegar a R$ 5,62 bilhões nos primeiros cinco anos, montante que as receitas publicitárias atuais não cobrem. Já para a população, a transição custará R$ 287 bilhões ao longo de 15 anos, tempo mínimo previsto para o fim das transmissões analógicas, com a aquisição de novos equipamentos – decodificador acoplado ao televisor e antena digital – e dos serviços. Na ponta das emissoras, a maior parte dos investimentos se dará na rede de transmissão e retransmissão, o que se torna o maior obstáculo à entrada de novas instituições e mesmo das geradoras educativas e dos canais básicos de utilização gratuita previstos pela lei do cabo (canais comunitários, educativo-culturais, legislativos, universitários). Já nas três simulações de modelos econômicos pesquisadas pelo SBTVD para o caso das geradoras, o custo médio anual de implantação para todas as emissoras privadas seria de R$ 800 milhões durante cinco anos. Para as emissoras públicas, seria de R$ 215 milhões por três anos. Diante de tamanha diferença de custo, por que as emissoras de TV, em especial a Globo, fizeram violenta pressão pelo modelo japonês? Gustavo Gindre novamente revela o segredo dos donos da mídia. Pelos modelos econômicos estudados as emissoras teriam de abrir mão do controle do espectro eletromagnético, o que possibilitaria maior democratização dos meios de comunicação televisivos. “Elas ficariam sujeitas ao discurso em favor da redistribuição deste espectro para que o operador de rede pudesse colocar no mesmo espaço mais emissoras de TV. No fundo, a briga é pela propriedade e pelo controle sobre o uso de um dos bens públicos mais escassos das sociedades contemporâneas: o espectro eletromagnético”. Além de manter o monopólio na televisão, a Rede Globo ainda tem outras razões obscuras. “Ela foi dona, durante muitos anos, da subsidiária brasileira da japonesa NEC. Ao mesmo tempo, possui forte relação comercial com outra japonesa, a Sony, que já desenvolveu um equipamento de VT especialmente para atender as demandas da Globo. E aqui podemos juntar outra parte desse quebra-cabeça. Assim, além de garantir o seu controle sobre o espectro eletromagnético, evitando que novas emissoras entrem no ar, a escolha pelo ISDB permite à Globo realizar excelentes acordos comerciais com seus antigos parceiros, sob a benção do governo que recentemente reduziu os impostos de importação para o setor”. - Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “As encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, segunda edição).
https://www.alainet.org/pt/articulo/116085?language=es
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS