Proclame sua independência
07/09/2006
- Opinión
Saiba que a maioria dos homens e mulheres não é independente. Carece de vôo próprio. Quais moluscos grudados na pedra, são incapazes de se soltar e mergulhar na vastidão do mar. Julgam que impedem a pedra de se precipitar na água e, assim, permanecem a vida toda colados a um peso que os aprisiona e, no entanto, não é parte deles.
A pedra são os preconceitos que os impedem de olhar a própria alma. Fitam-se nos olhos alheios, têm de si uma imagem importada. Não alcançam jamais aquela auto-estima que brota do mais profundo de si mesmo. Estão sempre a pedir licença para ser o que não são, a suplicar compreensão, a mendigar afeto, sujeitos à servidão voluntária e escravizados por modismos que os transformam em personagens de ilusões descabidas.
Ser independente não se resume a quebrar tabus e inovar comportamentos. É fácil afrontar os diques do moralismo, lá onde se produz a energia nefasta do fundamentalismo, aquele altruísmo às avessas de quem julga saber melhor o que convém aos outros e insiste em subjugá-los à sua vontade. O difícil é cultivar os valores infinitos engendrados pela autonomia da consciência como reduto inexpugnável, a lucidez crítica, a coragem de divergir acima de todas as afeições, a ousadia de dizer não e praticar a ascese do calar-se, descompactuar-se com ações malévolas, jamais subscrever o que pereniza a injustiça, a desigualdade e a exclusão.
Dê o seu grito de independência, mas não com a garganta, como quem exibe uma rebeldia confinada ao niilismo narcísico. Vale é o grito que ecoa na vida social, suscita o vendaval que semeia utopias, rasga horizontes e aplaina montanhas. O grito uterino dessa gravidez histórica que prenuncia albores de partilha. O grito alucinado que imprime sentido à revolução que subverte as causas de todas as misérias.
Conquistar independência é um projeto coletivo, mutirão de convicções éticas, teimosia de quem se recusa a acatar o que é como sendo o que será, o que está como o que restará, o que se faz presente como antecipação do futuro.
Arranque do mais fundo de si mesmo aquele duplo que o falsifica para efeitos sociais. Anule os fantasmas de seus temores; professe o ateísmo frente aos ídolos dessa sociedade que verga os joelhos perante a suposta sacralidade do mercado. Pratique a iconoclastia diante dessa opulência engordada pela perversa gula de quem suga da terra os nutrientes da vida para todos.
Mergulhe no mais íntimo de si sem medo da vertigem provocada pelo inusitado de sua própria identidade. Embriague-se com a sua singularidade e deixe que ela baile no espaço etéreo de sua liberdade. Penetre suas cavernas interiores, explore os subterrâneos de seu inconsciente, deixe que aflorem em revoada todos os anjos que o povoam.
Corte o fio de seu labirinto cartesiano, pois jamais haverá de conquistar independência quem se mantém à superfície, qual náufrago desesperado a boiar agarrado às conveniências, a dar satisfações imerecidas, vestido de espantalho em plena horta de frutas podres.
Olhe o passado e verá que as pessoas verdadeiramente independentes acreditaram numa causa, deixaram-se impregnar dessa indignação que fizeram delas artífices de um novo tempo. Tomaram em mãos a história e retorceram-lhe o rumo, e suas vidas simbolizam, hoje, novos marcos, pois ali se rompeu o limite entre idéia e ação, sonho e realidade, amor e gesto.
Arraste consigo multidões à independência. Não permita que a linha de montagem do sistema anule o seu ímpeto e rotule os seus projetos, tornando-o mero repetidor ortofônico de velhos discursos embrulhados em sedutoras embalagens.
Saiba que a matéria-prima da independência encontra-se na sua subjetividade, nas dobras do seu ser, naquele outro que o habita e para quem parece estranho aquilo que agora é. Mantém os olhos bem abertos, pois jamais será completa a sua independência se não se alastrar à sua volta, derretendo todos os grilhões que, agora, impedem que todos sejam independentes, solidariamente independentes, amorosamente independentes.
Independência e vida!
- Frei Betto é escritor, autor de “A Obra do Artista – uma visão holística do Universo” (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/116961
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