Teresa, a sedução de Deus

15/10/2006
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A 15 de outubro a Igreja Católica celebra a festa de Santa Teresa de Ávila. Passei a última semana de setembro nesta cidade espanhola do século VI, ocupada pelos árabes no século VIII. Participei de um congresso que debateu, entre outros temas, a atualidade de Bartolomeu de las Casas, frade dominicano que, no século XVI, defendeu heroicamente, na América Central, a liberdade e a dignidade dos povos indígenas. Ávila é cercada por muralhas construídas no século XI. Com 2,5 km de extensão e 88 torres, são as mais belas de toda a Espanha. Devido ao clima seco e ameno, no verão para ali se transferiam os reis católicos Fernando e Isabel. Hospedavam-se com os frades dominicanos, cujo convento ganhou o pomposo nome de Real Mosteiro de Santo Tomás. Ali viveu Torquemada, cérebro tenebroso da Inquisição, e dali saíram Antônio de Montesinos e Pedro de Córdoba, os primeiros missionários que, na América, se opuseram à opressão dos indígenas por parte dos colonizadores. Quando a visitei na década de 1980, Ávila era ainda uma cidade confinada às suas majestosas muralhas. Agora que a Espanha dispara como o país de maior crescimento na Comunidade Européia, a malha de edificações se estende pelos campos áridos que outrora abrigavam oliveiras, ampliando a população para cerca de 50 mil habitantes. A principal fonte de renda do município é o turismo, fomentado pelas construções medievais, as igrejas em estilo românico, e a peculiar culinária. Também atrai – em menor número – turistas e peregrinos o fato de ali terem vivido, no século XVI, os mais destacados místicos da história da Igreja: Teresa de Jesus e João da Cruz, patrono dos poetas espanhóis. Revisitei o Convento da Encarnação, onde ela viveu 30 anos; o Convento de São José, sua primeira fundação; e a casa em que nasceu, hoje transformada em museu. Nos carmelos, a idade média das monjas é de 25 anos. Aos 35 anos, uma das mais renomadas atrizes croatas acaba de tomar o hábito de monja carmelita em São José. Doutora da Igreja, Teresa exerce fascínio mundo afora. Sei de psicanalistas, filósofos e cientistas, gente atéia ou agnóstica, que nutre por ela inexplicável admiração. O que teve essa mulher de tão especial? Teresa situa-se na raiz da modernidade. Assim como Copérnico superou a cosmologia de Ptolomeu e colocou a Terra em seu devido lugar, Teresa arrancou Deus dos céus medievais, onde andava aprisionado pelo pietismo penitencial, e centrou-O no coração humano. Michelangelo, outra figura ímpar do século XVI, ilustrou o teto da Capela Sistina, no Vaticano, com a figura de Javé recoberta de mantos e barba, contrastando com o homem nu, magneticamente atraído em direção à Terra. O Criador estende o dedo indicador à criatura, e esta responde, como que simbolizando que a nova época, moderna, embora antropocêntrica, e não teocêntrica como a anterior, não quer perder o vínculo entre a Terra e o céu, a humanidade e Deus. Teresa subverteu a espiritualidade cristã. Feminista avant la lettre, livrou a mística de seu racionalismo teológico e trouxe-a da razão ao coração. Nela o contemplar se faz gozar, como bem o expressa Bernini na escultura a ela dedicada e, hoje, exposta em Roma. A espiritualidade centrada na dor cedeu lugar ao amor; a culpa, à amizade; a penitência, ao êxtase; os mandamentos, às bem-aventuranças. Teresa se destaca também pelo vigor e talento literários. Nenhuma mulher, até então, havia escrito como ela, escancarando a subjetividade e narrando, sem pudor e com muita propriedade, as sucessivas etapas de sua união amorosa com Deus. João da Cruz, discípulo dela, nasceu em Fontiveros, na região de Ávila, e viveu nesta cidade dois anos, embebendo-se da espiritualidade de Teresa. Ele é mais “anima”; ela, “animus”. Seu talento poético transparece inclusive em suas narrativas. Almocei com o bispo de Ávila. Explicou-me que muitas atividades – estudos místicos, retiros, conferências – se promovem na cidade para quem busca dessedentar-se na espiritualidade teresiana. Mas admitiu não haver nenhum programa pastoral, em larga escala, voltado a jovens e intelectuais. Propus-lhe organizar, a cada ano, uma semana de Jornadas Teresianas, combinando eventos destinados aos jovens a debates, filmes, peças de teatro, e reunir artistas, humanistas e cientistas apaixonados por Teresa, como é o caso do romancista Deonísio da Silva, que lhe dedicou o romance “Teresa”, levado ao palco. Teresa salvou-me a fé. Graças à leitura meditada de suas obras, em especial “Vida” e “Castelo Interior” ou “Moradas”, em 1965 descobri o que significa a relação Pessoa a pessoa. Desde então Deus tornou-se a minha paixão. - Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e Espiritualidade” (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/117595
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