Concentração da mídia e acesso aos meios são grandes desafios da comunicação no Sul
24/01/2007
- Opinión
Para ativistas em Nairobi, a construção de uma visão contra-hegemônica, pregada pelas grandes corporações de comunicação, depende da criação de meios públicos e da apropriação da mídia pela população. Aproximação dos movimentos sociais é central.
Nairobi (Quênia) – No primeiro dia desta sétima edição do Fórum Social Mundial, durante a marcha de abertura, o professor de políticas econômicas da Universidade Meijigakuin, em Tóquio, Makoto Katsumata, se mostrou preocupado com uma questão central: o problema de muitos países desenvolvidos, que ainda defendem o modelo capitalista, não conhecerem de fato a realidade gerada pelo sistema dentro e além de suas fronteiras. “No Japão, somos muito liberais, mas as pessoas não conhecem o abismo social que enfrentamos, e que está crescendo muito. Também não conhecem a realidade da África. Infelizmente, nosso país prega uma política nacionalista muito estreita. Somos menos solidários, menos socialistas. Então temos que falar sobre isso”, disse.
O conseguir “falar sobre isso” apontado pelo professor Katsumata tem se mostrado, na verdade, um dos grandes desafios na luta do movimento altermundista pela construção de alternativas. Combater o pensamento único, que aponta o neoliberalismo como saída para os problemas da humanidade, é, desde o princípio, uma bandeira do Fórum Social Mundial. Neste sentido, para os movimentos e organizações que participam do processo do FSM, fica cada vez mais claro que isso só será possível se uma outra comunicação, contra-hegemônica, também for construída.
“O maior problema que enfrentamento no Sul é que estamos nos cegando. Estamos sendo vistos com os olhos de fora. Através da mídia, os países do Norte nos dizem o que somos, o que fazemos e o que devemos e vamos fazer”, acredita Aran Aharonián, diretor da Telesur, um canal estatal criado pelo governo venezuelano para difundir informações da América Latina. “Cerca de 80% do que é transmitido nos países do Sul é produzido pelas grandes agências, que pautam a agenda internacional”, completa.
Num cenário de concentração da mídia, em que cinco grandes conglomerados de comunicação controlam o que se vê, lê e ouve no mundo, o problema parece se agravar em países como os africanos, onde as mídias locais enfrentam grandes barreiras para se consolidar, sobretudo internacionalmente.
“Podemos até ter internet, onde publicamos nossos blogs, mas quando ligamos a TV só vemos a CNN, a BBC e a Al-Jazeera. Nossa concepção de mundo fica muito mais estreita”, avalia o jornalista sul-africano Chris Kabwato, da agência de notícias Highways África.
Historicamente, os governos africanos tem se comportado de maneira diversa em relação a concentração de mídia no continente. Em grande parte dos países, o monopólio das comunicações ficou, durante muito tempo, nas mãos do Estado. Em outros, houve abertura a iniciativa privada e algum tipo de controle em relação à propriedade cruzada dos meios. O primeiro passo a ser dado na África parece ser, no entanto, garantir o acesso da população à comunicação, começando pela melhoria da infraestrutura do sistema. Hoje, por exemplo, somente 2% da população africana têm acesso à internet. Resolvido o problema tecnológico, os países africanos passam a enfrentar um desafio comum em todo o mundo: ampliar o espaço para a veiculação da informação produzida pela sociedade civil.
“Trata-se de garantir um espaço público para as organizações sem fins lucrativos, que não esteja sob o controle do Estado, mas que seja garantido por ele, onde uma variedade de atores possa distribuir seu conteúdo produzido e se transforme em fonte primária de informação”, explica o italiano Jason Nardi, integrante da Campanha CRIS (Communication Rights in the Information Society).
Vinte anos atrás, governos africanos reunidos em Nairobi se comprometeram a criar um programa de troca de conteúdo entre emissoras de televisão locais, como forma de fortalecer suas redes. O mesmo aconteceu com o rádio e com o projeto de implementação de uma agência panafricana de noticias. Nenhum dos três saiu do papel. Na opinião de Chris Kabwato, há uma dificuldade grande em não tratar a população apenas como consumidora de mídia. “Cidadania significa investir recursos nisso, criar um sistema público de comunicação. Não queremos somente música e publicidade”, afirma.
A iniciativa da Telesur vai justamente neste sentido. “Para enfrentar a mensagem hegemônica, é preciso uma mídia de massa. E a Telesur é uma mídia para transformar a idéia das pessoas de que o neoliberalismo será responsável por melhorar o mundo”, completa Aharonián.
Mídia alternativa e comunitária
Além do desenvolvimento de mídias públicas capazes de fazer uma contraposição ao pensamento único, o fortalecimento de veículos alternativos e comunitários mais uma vez foi debatido no espaço do Fórum Social Mundial como essencial no desenvolvimento de sociedades plurais e mais democráticas no hemisfério Sul. Na opinião de ativistas da área, somente através do exercício do direito à comunicação da população que se garante sua plena cidadania.
Na África, o principal meio de exercício desse direito são as rádios comunitárias. Assim como no Brasil, e na América Latina como um todo, no continente negro tais emissoras têm sido um importante instrumento de luta e reivindicação de direitos.
“É por isso que, no Quênia, o governo fecha rádios que veiculam informações que não agradam os políticos. Porque, a partir do momento que as pessoas conhecem seus direitos, vão exigir mudanças”, explica Joshua Kakuvio Loyaual, do Grupo de Advocacia Enorikinos.
Na avaliação da Amarc (Associação Mundial de Rádios Comunitárias), o tratamento dado a essas emissoras deveria ser encarado como de garantia de direitos humanos, já que as rádios dão condição aos mais pobres de obterem a propriedade dos meios de produção de conteúdo e informação, transformando-os em sujeitos de comunicação. Uma das estratégias desenhadas pela Amarc neste sétimo FSM é passar a acessar os mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos para defender o direito à comunicação das comunidades através dessas emissoras.
“Nunca conseguimos o reconhecimento internacional pela Assembléia Geral da ONU acerca da importância das rádios comunitárias. Talvez seja a hora de reforçar este aspecto, para que o sistema de direitos humanos nos proteja”, acredita Steve Buckey, da Amarc na Inglaterra. “Aqui na África há um forte reconhecimento das entidades de direitos humanos da centralidade da radiodifusão comunitária, mas as organizações não têm poder político para conseguir resultados no sistema juridicional. Então precisamos capacitá-las”, explica.
O papel do Fórum Social Mundial
Há dois anos, quando o direito à comunicaçao finalmente ganhou espaço dentro das discussões do Fórum, o objetivo dos ativistas do setor era conseguir pautar a centralidade do tema entre os demais movimentos que consolidaram o FSM como seu espaço de articulação internacional. De lá pra cá, houve avanços, mas o desafio ainda segue marcante. Em Nairobi, as oficinas e painéis que trataram do assunto foram poucas se comparadas às duas últimas edições do encontro, realizadas em Porto Alegre, em 2005, e em Caracas, no ano passado.
No Fórum Mundial da Informação e Comunicação – que, desta vez, aconteceu durante o próprio FSM – a urgência de fazer chegar ao mundo todo a mensagem que hoje parte do Quênia permaneceu como uma meta ainda a ser alcancada. Mais uma vez, propôs-se a criação de redes de jornalistas e de veículos comprometidos com os valores do movimento altermundista, que possam trabalhar de forma colaborativa com organizações da sociedade civil que, capacitadas, também passem a produzir conhecimento. Outra estratégia será reforçar a aproximação com os movimentos sociais que participam do Fórum.
“Os movimentos precisam se apropriar da luta pelo direito à comunicação, porque isso significa uma luta pelo seu direito à liberdade de expressao; algo que fortalecerá suas próprias bandeiras”, afirmou Sally Burch, da Agência Latinoamericana de Informação (ALAI).
A idéia é transformar a compreensão da comunicação somente como uma ferramenta de trabalho para as organizações da sociedade civil para o conceito de que, através de uma outra comunicação, será possível impulsionar o movimento altermundista como um todo.
“Este é um momento importante para determinar quais devem ser as alianças para que a comunicação deixe de ser vista só como uma ferramenta. Se continuarmos usando-a somente para difundir informação e não como um fator estratégico de mudança, continuaremos invisíveis”, acredita a mexicana Aleida Callejas, também da Amarc. “Temos que tratar a comunicação como um direito. Se continuarmos a vir para o Fórum apenas como jornalistas que pretendem fazer uma outra cobertura, não caminharemos. Temos que vir como atores políticos que somos”, concluiu Cristina Charão, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
Nairobi (Quênia) – No primeiro dia desta sétima edição do Fórum Social Mundial, durante a marcha de abertura, o professor de políticas econômicas da Universidade Meijigakuin, em Tóquio, Makoto Katsumata, se mostrou preocupado com uma questão central: o problema de muitos países desenvolvidos, que ainda defendem o modelo capitalista, não conhecerem de fato a realidade gerada pelo sistema dentro e além de suas fronteiras. “No Japão, somos muito liberais, mas as pessoas não conhecem o abismo social que enfrentamos, e que está crescendo muito. Também não conhecem a realidade da África. Infelizmente, nosso país prega uma política nacionalista muito estreita. Somos menos solidários, menos socialistas. Então temos que falar sobre isso”, disse.
O conseguir “falar sobre isso” apontado pelo professor Katsumata tem se mostrado, na verdade, um dos grandes desafios na luta do movimento altermundista pela construção de alternativas. Combater o pensamento único, que aponta o neoliberalismo como saída para os problemas da humanidade, é, desde o princípio, uma bandeira do Fórum Social Mundial. Neste sentido, para os movimentos e organizações que participam do processo do FSM, fica cada vez mais claro que isso só será possível se uma outra comunicação, contra-hegemônica, também for construída.
“O maior problema que enfrentamento no Sul é que estamos nos cegando. Estamos sendo vistos com os olhos de fora. Através da mídia, os países do Norte nos dizem o que somos, o que fazemos e o que devemos e vamos fazer”, acredita Aran Aharonián, diretor da Telesur, um canal estatal criado pelo governo venezuelano para difundir informações da América Latina. “Cerca de 80% do que é transmitido nos países do Sul é produzido pelas grandes agências, que pautam a agenda internacional”, completa.
Num cenário de concentração da mídia, em que cinco grandes conglomerados de comunicação controlam o que se vê, lê e ouve no mundo, o problema parece se agravar em países como os africanos, onde as mídias locais enfrentam grandes barreiras para se consolidar, sobretudo internacionalmente.
“Podemos até ter internet, onde publicamos nossos blogs, mas quando ligamos a TV só vemos a CNN, a BBC e a Al-Jazeera. Nossa concepção de mundo fica muito mais estreita”, avalia o jornalista sul-africano Chris Kabwato, da agência de notícias Highways África.
Historicamente, os governos africanos tem se comportado de maneira diversa em relação a concentração de mídia no continente. Em grande parte dos países, o monopólio das comunicações ficou, durante muito tempo, nas mãos do Estado. Em outros, houve abertura a iniciativa privada e algum tipo de controle em relação à propriedade cruzada dos meios. O primeiro passo a ser dado na África parece ser, no entanto, garantir o acesso da população à comunicação, começando pela melhoria da infraestrutura do sistema. Hoje, por exemplo, somente 2% da população africana têm acesso à internet. Resolvido o problema tecnológico, os países africanos passam a enfrentar um desafio comum em todo o mundo: ampliar o espaço para a veiculação da informação produzida pela sociedade civil.
“Trata-se de garantir um espaço público para as organizações sem fins lucrativos, que não esteja sob o controle do Estado, mas que seja garantido por ele, onde uma variedade de atores possa distribuir seu conteúdo produzido e se transforme em fonte primária de informação”, explica o italiano Jason Nardi, integrante da Campanha CRIS (Communication Rights in the Information Society).
Vinte anos atrás, governos africanos reunidos em Nairobi se comprometeram a criar um programa de troca de conteúdo entre emissoras de televisão locais, como forma de fortalecer suas redes. O mesmo aconteceu com o rádio e com o projeto de implementação de uma agência panafricana de noticias. Nenhum dos três saiu do papel. Na opinião de Chris Kabwato, há uma dificuldade grande em não tratar a população apenas como consumidora de mídia. “Cidadania significa investir recursos nisso, criar um sistema público de comunicação. Não queremos somente música e publicidade”, afirma.
A iniciativa da Telesur vai justamente neste sentido. “Para enfrentar a mensagem hegemônica, é preciso uma mídia de massa. E a Telesur é uma mídia para transformar a idéia das pessoas de que o neoliberalismo será responsável por melhorar o mundo”, completa Aharonián.
Mídia alternativa e comunitária
Além do desenvolvimento de mídias públicas capazes de fazer uma contraposição ao pensamento único, o fortalecimento de veículos alternativos e comunitários mais uma vez foi debatido no espaço do Fórum Social Mundial como essencial no desenvolvimento de sociedades plurais e mais democráticas no hemisfério Sul. Na opinião de ativistas da área, somente através do exercício do direito à comunicação da população que se garante sua plena cidadania.
Na África, o principal meio de exercício desse direito são as rádios comunitárias. Assim como no Brasil, e na América Latina como um todo, no continente negro tais emissoras têm sido um importante instrumento de luta e reivindicação de direitos.
“É por isso que, no Quênia, o governo fecha rádios que veiculam informações que não agradam os políticos. Porque, a partir do momento que as pessoas conhecem seus direitos, vão exigir mudanças”, explica Joshua Kakuvio Loyaual, do Grupo de Advocacia Enorikinos.
Na avaliação da Amarc (Associação Mundial de Rádios Comunitárias), o tratamento dado a essas emissoras deveria ser encarado como de garantia de direitos humanos, já que as rádios dão condição aos mais pobres de obterem a propriedade dos meios de produção de conteúdo e informação, transformando-os em sujeitos de comunicação. Uma das estratégias desenhadas pela Amarc neste sétimo FSM é passar a acessar os mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos para defender o direito à comunicação das comunidades através dessas emissoras.
“Nunca conseguimos o reconhecimento internacional pela Assembléia Geral da ONU acerca da importância das rádios comunitárias. Talvez seja a hora de reforçar este aspecto, para que o sistema de direitos humanos nos proteja”, acredita Steve Buckey, da Amarc na Inglaterra. “Aqui na África há um forte reconhecimento das entidades de direitos humanos da centralidade da radiodifusão comunitária, mas as organizações não têm poder político para conseguir resultados no sistema juridicional. Então precisamos capacitá-las”, explica.
O papel do Fórum Social Mundial
Há dois anos, quando o direito à comunicaçao finalmente ganhou espaço dentro das discussões do Fórum, o objetivo dos ativistas do setor era conseguir pautar a centralidade do tema entre os demais movimentos que consolidaram o FSM como seu espaço de articulação internacional. De lá pra cá, houve avanços, mas o desafio ainda segue marcante. Em Nairobi, as oficinas e painéis que trataram do assunto foram poucas se comparadas às duas últimas edições do encontro, realizadas em Porto Alegre, em 2005, e em Caracas, no ano passado.
No Fórum Mundial da Informação e Comunicação – que, desta vez, aconteceu durante o próprio FSM – a urgência de fazer chegar ao mundo todo a mensagem que hoje parte do Quênia permaneceu como uma meta ainda a ser alcancada. Mais uma vez, propôs-se a criação de redes de jornalistas e de veículos comprometidos com os valores do movimento altermundista, que possam trabalhar de forma colaborativa com organizações da sociedade civil que, capacitadas, também passem a produzir conhecimento. Outra estratégia será reforçar a aproximação com os movimentos sociais que participam do Fórum.
“Os movimentos precisam se apropriar da luta pelo direito à comunicação, porque isso significa uma luta pelo seu direito à liberdade de expressao; algo que fortalecerá suas próprias bandeiras”, afirmou Sally Burch, da Agência Latinoamericana de Informação (ALAI).
A idéia é transformar a compreensão da comunicação somente como uma ferramenta de trabalho para as organizações da sociedade civil para o conceito de que, através de uma outra comunicação, será possível impulsionar o movimento altermundista como um todo.
“Este é um momento importante para determinar quais devem ser as alianças para que a comunicação deixe de ser vista só como uma ferramenta. Se continuarmos usando-a somente para difundir informação e não como um fator estratégico de mudança, continuaremos invisíveis”, acredita a mexicana Aleida Callejas, também da Amarc. “Temos que tratar a comunicação como um direito. Se continuarmos a vir para o Fórum apenas como jornalistas que pretendem fazer uma outra cobertura, não caminharemos. Temos que vir como atores políticos que somos”, concluiu Cristina Charão, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
Fonte: Carta Maior
https://www.alainet.org/pt/articulo/118929
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