Tirem as tropas do Haiti

07/03/2007
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O povo haitiano se mostra mais sábio do que o brasileiro. Tanto que nas paredes do bairro mais populoso da capital do país, uma pichação dá conta desta verdade. “Viva Adriano, abaixo Ribeiro”. E o que isso significa? Que os laços amorosos que unem os dois povos, a ponto de fazer com que os haitianos amem de paixão a seleção de futebol brasileira (daí a menção a Adriano), não se desfazem apesar da ação vil das tropas brasileiras de ocupação (daí o abaixo Ribeiro – que é o militar que coordena as tropas). Os haitianos sabem que o acordo que levou os soldados para o seu país é um acordo entre as elites, entre os governos, não entre os povos. Por isso pedem que as gentes daqui se mobilizem. “Basta de silêncio. O povo brasileiro precisa entender que o Haiti precisa de outro tipo de ajuda. A luta efetiva contra o mesmo inimigo: o capitalismo”. Este foi o apelo do sindicalista, professor da Universidad de Haiti, Didier Dominique, durante a conversa que teve com estudantes e militantes sociais, na Universidade Federal de Santa Catarina, a convite do Jubileu Sul e do Instituto de Estudos Latino-Americanos.

Para Didier, a situação mundial, com uma ofensiva imperialista jamais vista, é inaceitável. “O presidente Bush diz claramente que está arrumando o mundo para a eternidade. E isso significa intervenção econômica nos países, destruição cultural, guerra genocida, destruição dos recursos naturais, egoísmo, terror. Ele propõe uma humanidade odiosa, feia, baseada em mentiras. Não podemos aceitar”. O Haiti está dentro deste contexto de mentiras e destruição e, segundo o professor, as gentes estão alienadas, embarcando na idéia do pacifismo, da salvação da democracia e da ajuda. “Nós não queremos ajuda, não essa ajuda que está lá oprimindo, queremos a luta contra aqueles que querem roubar nossas terras, nossas riquezas e provocam migrações em massa. Queremos denunciar essa mentira do pacifismo num tempo em que era preciso haver uns cem Vietnãs, como dizia El Che, porque estamos sendo destruídos e o mundo está calado”.

Um pouco de história

Didier alertou que para saber o papel que estão jogando as tropas brasileiras no Haiti é preciso primeiro entender a lógica do projeto que está proposto para o país e um pouco da sua história. O Haiti tem uma longa tradição de luta popular. Foi o primeiro país de Abya Yala a garantir, na luta, a sua independência. O único no mundo onde os escravos foram os protagonistas, e não os criollos, como no restante dos países. Foi lá, naquelas terras, que Francisco de Miranda e Simón Bolívar buscaram abrigo e conhecimento, que os levou à luta pela libertação da Pátria Grande. Mas esta ousadia teve um preço: 150 milhões de francos/ouro, a primeira dívida externa que saqueou o país, impedindo a construção de uma alternativa econômica para seu povo. Desde aqueles dias de independência colonial, mas não financeira, o Haiti se manteve na linha da pobreza, com uma classe dominante bastante débil.

Por conta deste permanente estado de tensão, o Haiti ficou vulnerável a lutas internas também consideráveis entre negros e mestiços. Viveu ainda décadas de ditadura do pai e do filho Duvallier, governos ferozes, predadores, mortais. E, quando conseguiu sair da longa estrada da opressão elegendo um presidente, Bertrand Aristide, se deparou com a corrupção, o roubo de suas riquezas e a companhia nefasta do império, os Estados Unidos.

Desde os anos 80, no governo Regan, foi organizado um plano para os países do Caribe. Criaram-se fábricas, parques industriais e zonas francas. Tudo isso com a promessa do desenvolvimento. Mas, como sempre, o plano só é bom para os EUA. Assim, o Haiti começou de fato a produzir coisas, mas nada do que faziam era ou é vendido no país. O povo não tem dinheiro para comprar. No acordo firmado, a grande vantagem que o governo haitiano oferecia às empresas era a mão de obra barata de sua gente. Ou seja, entregou o povo aos tubarões. A jogada é manter o salário miserável para que as empresas fiquem no país. Assim, ganhando 1,65 dólar ao dia, um haitiano ainda tem sob sua cabeça a ameaça constante: se brigar contra isso, as empresas vão embora. Então, entre nada e o dólar miserável, ele tem de preferir o dólar.

A política de zona franca no Caribe torna a região um espaço surreal. Hoje já são 56 zonas livres de impostos. Coisa para turista. A burguesia existente é a que mexe com esse setor. A lógica da ALCA é a que manda. Aos trabalhadores resta a fome e a opressão. Didier conta que os trabalhadores das zonas francas passam o dia todo sem comer, porque não têm condições de ir para casa e muito menos comida para levar. Quando muito, fazem uma refeição por dia, e rala. A repressão aos sindicatos é coisa normal. Estar vinculado a uma organização de classe é quase como pedir demissão. “Há pouco tempo criamos um sindicato para os trabalhadores da Coca, da Pepsi e de um outro refrigerante nacional. Todos os sindicalizados foram demitidos”.

Diz o professor que existe uma lei no Haiti que protege o sindicalizado. Ninguém pode ser demitido por pertencer a um sindicato. Mas os patrões alegam que as demissões são por outros motivos e fica tudo por isso mesmo. “Trabalhar nas fábricas maquiladoras é um inferno, mas quem fica de fora sequer consegue ganhar um dólar. Essa é a lógica de dominação”.

Destruir para dominar

Didier conta que durante o governo Carter um golpe profundo foi dado na gente do país, coisa que desestruturou completamente as famílias. Lá, ter um porco é como ter uma poupança. Se um homem casa uma filha, mata-se um porco, se alguém morre é o porco que garante o recurso para o enterro. Na dificuldade é o porco que salva o sujeito. Está na cultura do haitiano ter um porco em casa. Pois em 1982, a economia local foi arrasada com a declaração – feita pelo governo estadunidense - de que os porcos do Haiti estavam infectados com a febre africana. Houve uma matança e não ficou um porco em pé. Isso foi como o prenúncio de toda essa tragédia que o povo vivencia hoje. Sem sua riqueza mais visceral, o haitiano migrou. Saiu do campo e foi engrossar o cordão de miséria nas cidades maiores. Nesta época, Porto Príncipe, a capital, aumentou em quatro vezes sua população. Foi quando os bairros miseráveis principiaram sua existência.

Outro golpe que levou os camponeses para a cidade foi o fim das lavouras de cana. Foi no momento em que o povo estava completamente envolvido com as lutas que levaram ao fim da ditadura de Duvallier. Aproveitando que as gentes estavam ocupadas com o fim de um regime de terror, empresários estadunidenses começaram a comprar os engenhos de açúcar. Naqueles dias, o Haiti era exportador desse produto. Com a compra dos engenhos, as lavouras foram incendiadas, tudo foi destruído. Hoje, o país importa 100% do açúcar que consome. Além disso, com a chegada da Rice Corporation – outra empresa dos Estados Unidos, também foi destruído o plantio do arroz. A empresa vendia arroz muito mais barato do que o dos produtores locais, que quebraram todos. Logo em seguida, com o mercado na mão, a RC deu o preço que quis.

Estes dois golpes arrasaram a vida camponesa e criaram o exército de reserva que as empresas maquiladoras precisavam para garantir salários miseráveis e lucros astronômicos. Foi o tempo da chegada do FMI, do Banco Mundial e de uma outra dívida externa estratosférica. A desorganização social chegou a índices gigantescos. Sem terra, sem trabalho e sem porcos, os haitianos do campo não tiveram outro caminho a não ser a favela na cidade grande. Cité Soleil, onde a mídia cortesã diz que estão os bandidos, os terrorristas, nada mais é do que um desses bairros formados pela gente que – de forma criminosa – foi expulsa do seu viver.

A crise atual


Com a vida no campo destruída, a cidade não é opção. Os bairros populosos e empobrecidos abrigam uma massa de desempregados ou subempregados que lutam para sobreviver. E é neles que se dá a maior repressão. O novo presidente, eleito a partir de algumas expectativas de mudança, não está cumprindo o que prometeu. Didier conta que entre os 30 candidatos que apareceram nas eleições presidenciais, certamente Preval (o atual presidente) era o menos pior. “Nós poderíamos até trabalhar a idéia do voto nulo, pois ninguém significava mudanças objetivas. Mas, diante, do caos, o povo precisou ter um filete de esperança. O processo eleitoral burguês é contraditório, mas, naquele momento era tudo o que tínhamos. Entendemos que a democracia burguesa é uma mentira, mas temos de acumular forças para romper com isso”.

Na análise do sindicalista haitiano, Preval segue o mesmo diapasão dos antigos dirigentes. Até firmou acordo com as forças armadas dominicanas para proteger os bens da burguesia caso a situação fique fora do controle. “Ele disse que iria transformar os tanques em caminhões e até agora nada disso aconteceu. Enquanto isso, nossa gente está morrendo. Nós, os movimentos sociais, é que estamos fazendo o contrapeso. A velha esquerda faliu, se organiza desde cima, não tem mais representatividade”. As “forças de paz”, que o Brasil dirige, servem então de anteparo para os desmandos de uma classe dirigente insensível e para o domínio das transnacionais. “Vivemos sob a ocupação militar, momentos de terror. Massacres, matanças de civis. Sempre são civis. Mulheres, crianças, velhos. Mas, nossas mulheres seguem parindo, tirando de dentro delas a força que vai mudar”

Essa é a conjuntura e esse é o povo que sofre, todos os dias, a pressão dos fuzis brasileiros. “É importante que o povo do Brasil saiba que as tropas estão lá para manter essa ordem. A da miséria dos haitianos, da fome. Porque esse é o interesse das transnacionais. A primeira regra é manter as zonas francas – estão até construindo outras. E a segunda é manter os trabalhadores assim, como escravos. É a tal da vantagem que os governantes dizem que o país tem: mão de obra barata”. Didier Dominique fez que questão de frisar que os países que estão praticando esse tipo de “ajuda”, com tropas e apoio ao projeto estadunidense, são governos que se elegeram a partir das esperanças do povo, como o de Lula. E isso é uma contradição, porque o povo brasileiro certamente não iria querer que seu país cumprisse esse papel. É um acordo entre governos e entre as elites. “É bom que as pessoas pensem porque não estão lá a Venezuela, o Equador, Cuba? Esses países não mandam tropas. Eles mandam médicos, engenheiros, agrônomos, pessoas que buscam construir um outro projeto. Que são solidários na busca de um outro modelo de vida”. Ao observar isso, o sindicalista coloca luz sobre as forças sociais que estão em jogo hoje na América Latina. De um lado a idéia do socialismo, de outro o projeto predador das multinacionais, dos Estados Unidos e dos seus governos satélites.

Os planos em médio prazo

Didier frisou que as forças armadas que hoje matam e aterrorizam os haitianos são as mesmas que matam no Rio de Janeiro. “É a mesma estrutura que se mantém, mesmo com as trocas de governo, e às vezes é até a mesma gente dos tempos sombrios. E o que é pior, sempre articuladas com as forças estadunidenses”. Para ele existe um laço de amor entre o povo do Haiti com o Brasil que não pode se quebrar. “Quando o Brasil ganha a copa do mundo, tem festa por dias seguidos no Haiti. Os jogadores são amados como irmãos. Tem a música, tem a cultura, tudo nos aproxima. Por isso queremos o povo brasileiro gritando contra essa ocupação. Há que resolver logo tudo isso porque pode ser fatal para a América Latina. “A proposta dos Estados Unidos é fazer duas bases militares no Haiti. Uma de frente para Cuba e outra de frente para Venezuela. Estes são os inimigos dos EUA e é dali que pode partir uma contra-ofensiva contra os governos que estão propondo a mudança de sistema. Seguir com a ocupação militar é defender o projeto do capitalismo transnacional, é defender a miséria do povo haitiano e de todo o continente. É apostar no fim da possibilidade de uma mudança para os povos da América Latina”.

Compreendendo todas as forças que estão em jogo fica muito mais fácil para as gentes do Brasil darem mais visibilidade a campanha de retirada de tropas do Haiti. Até porque isso só não basta. É preciso organizar a solidariedade concreta e a luta contra o inimigo comum. Os haitianos não querem ver os brasileiros reforçando a opressão. Querem seus irmãos de alma na mesma trincheira. Em defesa da soberania e da dignidade de toda a gente de Abya Yala.

- Elaine Tavares – jornalista no Ola/UFSC. O OLA é um projeto de observação e análise das lutas populares na América Latina.
http://www.ola.cse.ufsc.br
https://www.alainet.org/pt/articulo/119826
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