Sombras da inquisição
14/03/2007
- Opinión
Hoje é um dia triste para mim. Dói no fundo do meu coração, no âmago de minha fé cristã. O papa Bento XVI, às vésperas de sua primeira viagem à América Latina, faz um gesto que imprime um gosto amargo às boas-vindas: condena o teólogo jesuíta Jon Sobrino, de El Salvador.
Conheço Sobrino de longa data. Estivemos assessorando os bispos latino-americanos em Puebla, em 1979, por ocasião da primeira visita do papa João Paulo II ao nosso Continente. Participamos juntos de muitos eventos, empenhados em nutrir a fé das Comunidades Eclesiais de Base que, hoje, fazem da América Latina a região com o maior número de católicos no mundo.
Sobrino é acusado de, em suas obras teológicas, não dar suficiente ênfase à consciência divina do Jesus histórico. Fica, pois, proibido de dar aulas de teologia, e todos os seus futuros escritos devem ser submetidos à censura vaticana.
O parecer condenatório da comissão da Congregação da Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício, parte, sem dúvida, de preconceitos. A leitura atenta das obras de Sobrino revela que, em nenhum momento, ele nega a divindade de Jesus. Nega é o docetismo, heresia já condenada pela Igreja nos primeiros séculos da era cristã, baseada na idéia de que Jesus, de humano, só tinha a aparência, em tudo mais era divino. O que faria da encarnação um embuste e daria asas à fantasia de que, ali na Palestina do século I, o homem Jesus, dotado de onisciência, poderia muito bem ter a antevisão do atual conflito entre palestinos e judeus…
Os evangelhos mostram claramente que Jesus tinha consciência de sua filiação divina. Ao contrário de seus contemporâneos, tratava Javé de modo muito íntimo, carinhoso: Abba, ‘meu pai querido’, uma das raras expressões aramaicas – a língua que Jesus falava – a constar do texto bíblico. Contudo, esses mesmos evangelhos mostram que Jesus, como todos nós, sofreu tentações, teve medo da morte, chorou, experimentou a solidão, pediu ao Pai para, se possível, afastá-lo do cálice de sangue. Ou seja, em tudo foi igual a nós, como afirma Paulo na Carta aos Filipenses, exceto no pecado, pois amava assim como só Deus ama.
Roma, sem dúvida, ainda padece do platonismo impregnado na teologia liberal desde Santo Agostinho. Fala da divindade como se fosse contrária à humanidade. A Criação divina é indivisível. Como diz Paulo, “nele (Deus) vivemos, nos movemos e existimos” (Atos dos Apóstolos 17, 28).
Bem diz Leonardo Boff ao referir-se a Jesus: “Humano assim como ele foi, só podia ser Deus mesmo”. A nossa humanidade não é a negação da divindade, assim como não o era a de Jesus. A divindade é a plenitude da humanidade e esta, o prenúncio daquela. “Somos da raça divina”, afirmou Paulo aos atenienses (Atos dos Apóstolos 17, 28).
Roma, que tanto lida com símbolos, parece desprezar a América Latina ao ignorar que Jon Sobrino vive em El Salvador, cujo arcebispo, dom Oscar Romero, foi assassinado pelas forças de direita ao celebrar missa na catedral, em 1980. No próximo dia 24 comemoram-se 27 anos de seu martírio. Sobrino mora en San Salvador, na mesma casa na qual, em 1989, quatro padres jesuítas, mais a cozinheira e sua filha de 15 anos, foram assassinados pelo Esquadrão da Morte.
Como renovar a Igreja Católica se suas melhores cabeças estão sob a guilhotina de quem enxerga heresia onde há fidelidade do Espírito Santo: Hans Kung em 1975 e 1980; Jacques Pohier em 1979; Schillebeeckx em 1980, 1984 e 1986; Leonardo Boff em 1985; Charles Curran em 1986; Tissa Balasuriya, em 1997; Anthony de Mello, em 1998; Reinhard Messner, em 2000; Jacques Dupuis e Marciano Vidal, em 2001; Roger Haight, em 2004. Nenhum deles, porém, foi excomungado como apregoam os fundamentalistas católicos.
O que está por trás da censura a Sobrino é a visão latino-americana de um Jesus que não é branco nem tem olhos azuis. Um Jesus indígena, negro, moreno, migrante; Jesus mulher, marginalizado, excluído. Aquele Jesus descrito no capítulo 25 de Mateus: faminto, sedento, maltrapilho, enfermo, peregrino. Jesus que se identifica com os condenados da Terra e dirá a todos que, frente a tanta miséria, se portam como o bom samaritano: “O que vocês fizeram a um dos menores de meus irmãos, a mim o fizeram” (Mateus 25, 40).
- Frei Betto é autor de “Entre todos os homens” (Ática), biografia romanceada de Jesus, entre outros livros.
Conheço Sobrino de longa data. Estivemos assessorando os bispos latino-americanos em Puebla, em 1979, por ocasião da primeira visita do papa João Paulo II ao nosso Continente. Participamos juntos de muitos eventos, empenhados em nutrir a fé das Comunidades Eclesiais de Base que, hoje, fazem da América Latina a região com o maior número de católicos no mundo.
Sobrino é acusado de, em suas obras teológicas, não dar suficiente ênfase à consciência divina do Jesus histórico. Fica, pois, proibido de dar aulas de teologia, e todos os seus futuros escritos devem ser submetidos à censura vaticana.
O parecer condenatório da comissão da Congregação da Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício, parte, sem dúvida, de preconceitos. A leitura atenta das obras de Sobrino revela que, em nenhum momento, ele nega a divindade de Jesus. Nega é o docetismo, heresia já condenada pela Igreja nos primeiros séculos da era cristã, baseada na idéia de que Jesus, de humano, só tinha a aparência, em tudo mais era divino. O que faria da encarnação um embuste e daria asas à fantasia de que, ali na Palestina do século I, o homem Jesus, dotado de onisciência, poderia muito bem ter a antevisão do atual conflito entre palestinos e judeus…
Os evangelhos mostram claramente que Jesus tinha consciência de sua filiação divina. Ao contrário de seus contemporâneos, tratava Javé de modo muito íntimo, carinhoso: Abba, ‘meu pai querido’, uma das raras expressões aramaicas – a língua que Jesus falava – a constar do texto bíblico. Contudo, esses mesmos evangelhos mostram que Jesus, como todos nós, sofreu tentações, teve medo da morte, chorou, experimentou a solidão, pediu ao Pai para, se possível, afastá-lo do cálice de sangue. Ou seja, em tudo foi igual a nós, como afirma Paulo na Carta aos Filipenses, exceto no pecado, pois amava assim como só Deus ama.
Roma, sem dúvida, ainda padece do platonismo impregnado na teologia liberal desde Santo Agostinho. Fala da divindade como se fosse contrária à humanidade. A Criação divina é indivisível. Como diz Paulo, “nele (Deus) vivemos, nos movemos e existimos” (Atos dos Apóstolos 17, 28).
Bem diz Leonardo Boff ao referir-se a Jesus: “Humano assim como ele foi, só podia ser Deus mesmo”. A nossa humanidade não é a negação da divindade, assim como não o era a de Jesus. A divindade é a plenitude da humanidade e esta, o prenúncio daquela. “Somos da raça divina”, afirmou Paulo aos atenienses (Atos dos Apóstolos 17, 28).
Roma, que tanto lida com símbolos, parece desprezar a América Latina ao ignorar que Jon Sobrino vive em El Salvador, cujo arcebispo, dom Oscar Romero, foi assassinado pelas forças de direita ao celebrar missa na catedral, em 1980. No próximo dia 24 comemoram-se 27 anos de seu martírio. Sobrino mora en San Salvador, na mesma casa na qual, em 1989, quatro padres jesuítas, mais a cozinheira e sua filha de 15 anos, foram assassinados pelo Esquadrão da Morte.
Como renovar a Igreja Católica se suas melhores cabeças estão sob a guilhotina de quem enxerga heresia onde há fidelidade do Espírito Santo: Hans Kung em 1975 e 1980; Jacques Pohier em 1979; Schillebeeckx em 1980, 1984 e 1986; Leonardo Boff em 1985; Charles Curran em 1986; Tissa Balasuriya, em 1997; Anthony de Mello, em 1998; Reinhard Messner, em 2000; Jacques Dupuis e Marciano Vidal, em 2001; Roger Haight, em 2004. Nenhum deles, porém, foi excomungado como apregoam os fundamentalistas católicos.
O que está por trás da censura a Sobrino é a visão latino-americana de um Jesus que não é branco nem tem olhos azuis. Um Jesus indígena, negro, moreno, migrante; Jesus mulher, marginalizado, excluído. Aquele Jesus descrito no capítulo 25 de Mateus: faminto, sedento, maltrapilho, enfermo, peregrino. Jesus que se identifica com os condenados da Terra e dirá a todos que, frente a tanta miséria, se portam como o bom samaritano: “O que vocês fizeram a um dos menores de meus irmãos, a mim o fizeram” (Mateus 25, 40).
- Frei Betto é autor de “Entre todos os homens” (Ática), biografia romanceada de Jesus, entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/119988
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