As grandes incertezas na Igreja atual
10/04/2007
- Opinión
Síntese: A Igreja ainda não tomou conhecimento da grande revolução dos anos 70. Não entendeu a grande aspiração para a liberdade e os passos que foram dados. Essa revolução inclui uma crítica de todas as instituições por serem repressivas e obstáculos à liberdade. A crítica das instituições atinge também a Igreja e está na base das crises internas da Igreja desde os anos 70. Doravante a distinção entre Igreja e a instituição é inevitável. A instituição é tudo o que foi acrescentado à mensagem de Jesus. Ela varia e ainda pode e deve variar. A nova situação, provocada pela conquista do mundo pelo sistema capitalista mundial, obriga a mudar de atitude frente ao mundo. A Igreja parece estar muda e desorientada. O Papa poderá dar sinais proféticos claros neste mundo neoliberal? Continuará pensando que a função da Igreja é oferecer uma doutrina social?
1. O fato básico
O fato fundamental é que Igreja ainda não percebeu ou não reconheceu ou não quis aceitar a grande revolução da sociedade ocidental que se manifestou nos anos 70 do século passado e se estendeu rapidamente ao mundo inteiro. O que acontece atualmente na China e nos ”tigres asiáticos” é altamente significativo. Povos que tinham uma longa tradição de civilização adotam com entusiasmo e quase que com fúria a nova sociedade ocidental nascida da revolução dos anos 70.
A Igreja vive ainda na ilusão do mundo do tempo de Vaticano II, como se não tivesse havido uma revolução tão radical como a Revolução Francesa, logo depois do Concílio. Quem hoje em dia lê certos textos conciliares, por exemplo, da Gaudium et Spes, não pode não ficar impressionado pela ingenuidade da concepção do mundo que se fazia naquele tempo. O Vaticano II falou para um mundo que hoje já não existe mais. Entrou na história, mas não fornece orientações para o mundo de hoje.
A partir dos anos 70 começou o desmoronamento da cristandade. Nos tempos do Vaticano II alguns apressados tinham proclamado o fim da cristandade. Mas ainda não era o fim. Pelo contrário, o Concílio viveu num ambiente de neocristandade. Poucos anos depois, começou a grande revolução da sociedade ocidental que repercutiu também dentro da Igreja como um furacão. Muitos católicos separaram-se da instituição, inclusive muitos sacerdotes e muitos religiosos. Os conservadores intransigentes atribuíram esse fato ao Concílio, mas o Concílio não tinha nada a ver com isso. O que aconteceu foi a grande revolução total da sociedade ocidental: revolução na ciência, na economia, na política, na cultura; revolução total e profunda com conseqüências de uma revolução na ética e na religião.
Esta revolução abalou todas as instituições: a família, a empresa, a escola, a universidade, o Estado e, naturalmente, as instituições religiosas. Antigos poderes desapareceram e apareceram novos poderes. Agora sim, estamos chegando ao fim da cristandade. Mas ainda não é o fim da consciência de cristandade dentro da Igreja. Pelo contrário, toda a instituição continua funcionando como se nada tivesse mudado e como se a Igreja ainda tivesse o mesmo poder social de sempre. Há movimentos poderosos que acham que podem refazer de novo uma neocristandade como aconteceu depois da Revolução Francesa. Pura ilusão. Faltam os elementos sociais para recomeçar esta operação.
Porém, esta consciência de cristandade numa situação de esvaziamento dessa cristandade gera um sentimento bastante generalizado de mal-estar. Compare-se a psicologia dos católicos e mesmo do clero com a psicologia dos evangélicos! Entre os evangélicos prevalece um sentimento de euforia, de confiança, de vitória. Os evangélicos sentem-se vitoriosos e os católicos têm a consciência dos derrotados que procuram manter o passado sem muita convicção.
Ora, o fim da cristandade significa que a evangelização e a pastoral já não podem ser feitas a partir de uma posição de poder.
Desde Constantino, a pastoral se fez a partir da posição de poder dos bispos e do clero. Eles ensinam, administram os sacramentos, governam as comunidades. Cada pároco é papa na sua paróquia: ele é infalível, com plena jurisdição. Os leigos são objeto de obrigações: os leigos devem ir para a paróquia, devem obedecer e, sobretudo, sustentar financeiramente uma instituição na qual não têm poder nenhum. E o poder do clero apresenta-se como se fosse o poder de Deus. A paróquia é a imagem do poder. O pároco é enviado pelo bispo sem nenhuma consulta aos leigos. Ele manda, não porque é reconhecido pelo seu povo como a pessoa mais capacitada, mas simplesmente por imposição do bispo. De repente, chega e pode mandar em tudo. O único limite a seu poder é a resistência do povo, a indiferença da maioria e uma atitude de defesa, tão freqüente entre os católicos que faz com que somente uma pequena minoria participe da paróquia.
Quanto à evangelização do mundo, ela se fez quase sempre por imposição. A evangelização acompanhou a conquista pelos poderes da cristandade do Ocidente, por guerras de religião ou conquista de colonização. A América Latina é o exemplo mais completo dessa evangelização pela conquista e conversão forçada. Houve exceções. Houve missionários que protestaram contra a conquista. Mas eles não tiveram nenhuma influência. Os seus escritos não foram publicados antes do século XIX, quando os impérios de Espanha e Portugal já tinham desaparecido. Os povos conquistados receberam o cristianismo pela pressão do poder político e militar associado à missão.
Hoje em dia, a Igreja não tem mais poder ou somente fica com algumas ilusões de poder. Já não pode evangelizar a partir do poder. Isto deixa a Igreja desconcertada, com um sentimento de impotência. Eu mesmo ouvi um núncio dizendo que sem apoio do poder civil a Igreja não consegue evangelizar. Os que ficam apegados à tradição ficam desconcertados. Acostumados à idéia de que o padre é uma pessoa de poder, de repente ficam desorientados, quando percebem que ninguém mais aceita seu poder, salvo algumas senhoras piedosas que cuidam da igreja paroquial. Monsenhor Expedito, de São Paulo do Potengi, contava as palavras do bispo de Natal que o fez pároco. Dizia o bispo: “Expedito, nunca se esqueça de que você é autoridade. Procure ter boas relações com o prefeito, com o delegado e com o juiz. Quanto ao resto, faça o que puder”.
O problema entre todos os problemas, e que está na base de todos, é a necessidade de evangelizar sem poder, a partir de uma relação de igualdade: um ser humano com outro ser humano, como modo de relacionamento entre pessoas iguais e não num relacionamento de superior e inferior.
É o drama de muitos jovens sacerdotes que foram formados para o poder num ambiente de poder e descobrem, de repente, que não existe mais esse poder. Mas não foram preparados para um relacionamento de pessoa a pessoa, como irmãos iguais.
No linguajar do Vaticano II os leigos foram promovidos. Desde então foram publicados muitos documentos excelentes sobre os leigos na Igreja. Os documentos da CNBB são particularmente excelentes e mostram a qualidade dos assessores que assistem os bispos. Porém, na prática, nada mudou. Os leigos não têm mais poder, mais autonomia do que antes. Tudo ficou nas palavras, porque nada mudou na instituição. Durante o pontificado anterior foi publicado um Catecismo católico. Qual foi a participação do povo de Deus na preparação desse catecismo? Nenhuma. Nem se sabia quem eram as pessoas que estavam elaborando esse catecismo. Foi publicado um novo Código de Direito Canônico. Qual foi a participação do povo cristão na redação desse código? Nenhuma. Os leigos não valem nada; na prática, não têm o Espírito Santo. Eles são ignorantes e, como ignorantes, devem aceitar tudo sem reclamar. Antes disso houve reformas litúrgicas. O povo cristão foi consultado? Não. O povo é ignorante, os leigos são ignorantes. Tudo isso, como se o Espírito de Deus estivesse somente na hierarquia. O que dizem os documentos fica nas palavras. Na prática, tudo continua como sempre: um relacionamento de poder e uma pastoral de poder. É isso que deve mudar, se quisermos evangelizar este mundo novo em que ora estamos mergulhados.
Pois estamos num mundo novo. A grande maioria dos batizados já nem conhece o Pai-nosso e ignora tudo da Igreja. A vida é um corre-corre, correndo de uma atividade para outra, para sobreviver. A desorganização social é tal que as pessoas vivem como indivíduos solitários, isolados, sem confiança nos outros, sem relação humana firme: às vezes, nem sequer entre esposos. A cristandade tradicional, com seu modo de viver, sobrevive em algumas tradicionais famílias “mineiras”. Sempre haverá alguns representantes do passado. Porém, eles não exercem mais influência na sociedade e constituem refúgios eclesiásticos. Para os 5 milhões de habitantes dos condomínios de São Paulo que significa a Igreja? Para os 3 milhões de favelados, que significa a Igreja? Qual é seu poder? O que vale são os missionários que conseguiram formar pequenas comunidades vivas a partir de uma relação de irmãos, relação de igualdade, sem invocar nenhum poder eclesiástico.
Este é o desafio prático ainda não assumido coletivamente pela Igreja: reconhecer que não se pode mais evangelizar a partir de uma posição de poder, mas apenas numa relação de seres humanos com seres humanos iguais. Na teoria, ninguém contesta, mas na prática, tudo continua como se a Igreja ainda tivesse na sociedade o poder que teve até os anos 70 do século XX.
2. A grande revolução cultural
Existe uma abundante e excelente literatura sobre a revolução da economia e da política depois dos anos 70. Houve uma transferência de poderes com repercussões imensas na vida diária das pessoas como na vida social. Queria apenas aqui chamar a atenção para a revolução cultural, ou, melhor dito, para alguns de seus aspetos.
Um elemento importante dessa revolução foi, e ainda é, a crítica sistemática de todas as instituições, denunciadas como máquinas de poder e de repressão da liberdade e da personalidade individual. A primeira instituição criticada foi a família, e está claro que a família tradicional se desintegra. Mesmo nos Estados Unidos onde a ortodoxia capitalista sempre tinha postulado que as relações de competitividade e de busca da maior vantagem na vida pública[1] não afetariam a vida privada das famílias, os mais conservadores, como Francis Fukuyama, devem reconhecer que a família está em plena crise. Quem provoca a crise são os jovens que se sentem oprimidos pela cultura antiquada de seus pais, cujos valores eles já não reconhecem.
A segunda crise tem por objeto todo o sistema de educação, desde a universidade até a escola de ensino básico. O sistema foi denunciado como opressor, tanto pela maneira de impor e exercer autoridade sobre os jovens, como pelo vazio de conteúdo que quer impor, e não prepara os jovens para a vida real. Esta crítica provocou, de fato, um enfraquecimento do sistema escolar e educativo no mundo inteiro. Em todos os países se reconhece uma diminuição dos resultados do sistema escolar, cada vez mais improdutivo, de tal modo que a escola aparece como escola de analfabetismo. As estatísticas oficiais são enganosas, porque fornecem índices elevados de alfabetização, mas não referem o número de analfabetos funcionais que são incapazes de ler um texto e de entender seu conteúdo.
A crise do Estado é geral. Ela provoca um desprestígio crescente da democracia e a indiferença política dos jovens, de modo geral. A crise política é objeto de comentários permanentes, desde os anos 70. Na América Latina, a luta contra as ditaduras militares escondeu o que estava sucedendo nos paises dominantes do Ocidente: o desprestígio crescente do Estado. Quando se voltou ao regime democrático, muitos tiveram ilusões, porque não sabiam o que estava acontecendo com a democracia.
Todas as outras instituições foram vítimas da mesma crítica e ficaram desprestigiadas: decadência dos partidos políticos, dos sindicatos, das associações de bairro e de quase todos os tipos de associação. Muitas entraram no caminho da corrupção, a ponto de a corrupção atingir também os próprios clubes de futebol e todo o sistema empresarial. Falta repressão à corrupção, que se tornou a nova instituição social.
A crítica a todas as instituições abriu a porta para uma nova institucionalização. Abriu a porta para as entidades econômicas e para a prioridade da economia na sociedade. Hoje em dia, cada vez mais, o poder pertence às multinacionais, que se concentram cada vez mais e adquirem cada vez mais poder. Em nome da liberdade do mercado, vão adquirindo cada vez mais poder, constituindo uma pequena rede de megaempresas que impõem as suas leis. Conseguem colocar a seu serviço o Estado, o sistema de educação – começando pelas universidades –, o trabalho científico, e corromper, comprar ou subordinar, cada vez mais, toda a rede de instituições privadas. Dirigem todo o sistema de informação e de comunicação, todo o sistema de publicações e de transmissão de mensagens. Transformam a cultura em comércio, isto é, numa fonte de capital. Tudo isso foi muito bem analisado. Aproveitam o vazio de instituições fortes e se transformam num só poder total, que consegue dominar a vida, sem que a maioria dos habitantes possa dar-se conta. Graças à manipulação da mídia conseguem fazer com que os cidadãos se transformem em consumidores, aumentando assim seu poder.
Acontece algo semelhante ao que aconteceu com a Revolução Francesa. Esta suprimiu todos os sistemas de constrangimento do comércio e de circulação de mercadorias e abriu o caminho para o capitalismo. A revolução cultural da atualidade abriu o caminho para uma nova forma de capitalismo, muito mais poderosa, porque invade todos os setores da vida e pode contar com um imenso progresso tecnológico e científico. Como lutar contra os abusos deste novo poder? Será tarefa de um século.
3. A Igreja frente à revolução cultural
Globalmente, durante o pontificado de João Paulo II, podemos dizer que a Igreja tomou uma atitude negativa com relação à revolução cultural. Assim tinha acontecido também depois da Revolução Francesa. Claro está que há aspetos negativos na nova cultura: ela destrói valores que tiveram muita importância no passado, que eram parte do patrimônio da cristandade.
No entanto, há também valores positivos, e, sobretudo, valores definitivos contra os quais é em vão lutar. Sem dúvida, há, desde os anos 70, um despertar da liberdade pessoal, da vontade de conquistar mais liberdade, uma denúncia e rejeição de todas as formas de repressão. Ainda que apareçam novas formas de dependência, a consciência já não é a mesma.
Esta consciência de liberdade despertou, sobretudo, nas mulheres. O que mais mudou foi justamente a consciência das mulheres, que querem ser reconhecidas como seres humanos completos e autênticos, com o mesmo valor dos homens. Pela primeira vez foi uma revolução dirigida por mulheres para a emancipação das mulheres. Mas, há também um despertar de consciência de liberdade nos jovens. Há uma vontade de viver plenamente a vida, ainda que esta vontade possa ser contaminada pelo consumismo.
Há uma vontade de viver plenamente a vida com o desenvolvimento máximo de todas as capacidades. Para muitos, o cristianismo perdeu valor porque ensina uma maneira penitencial de viver a vida. O cristianismo tem fama de ser uma força de repressão de todos os movimentos vitais, um freio à libertação humana.
É preciso reconhecer que, na cristandade, o clero ensinava aos cristãos que a vida cristã era uma vida de sacrifícios, que era necessário não somente aceitar as mortificações que Deus mandava, mas também acrescentar outras, facultativas, para aumentar os méritos. Havia o que Jean Delumeau chamou de pastoral do medo,[2] que consistia em manter vivo um sentimento permanente de pecado, acompanhado pelo medo da condenação final e, por isso, da necessidade de obras de expiação. As mulheres andavam vestidas de preto e cobrindo o corpo inteiro. A revolução cultural libertou dessas coisas que não pertencem ao Evangelho, mas foram introduzidas na cristandade na Idade Média.
Depois da revolução cultural, milhões de homens e, sobretudo, de mulheres saíram da Igreja, não por motivos de doutrina ou de crenças, mas porque não aceitavam mais o estilo penitencial da espiritualidade que se ensinava. Deixaram de ter medo do inferno e dos castigos de Deus. O que rejeitam na Igreja não são os dogmas, menos ainda o Evangelho, mas a austeridade de vida, a preocupação constante pelo pecado e o medo que se infundia na consciência do pecador. Os jovens fogem disso como da peste. Não querem nem saber. Os movimentos integristas, como o Opus Dei e os Legionários de Cristo, devem praticar uma lavagem cerebral radical para que seus membros aceitem essa volta ao passado.
Cristo não veio criar um movimento penitencial, mas anunciar a alegria da chegada do reino de Deus. O centro do cristianismo é a proclamação da ressurreição, que é promessa de vida e de vida abundante.
Precisamos mudar o eixo fundamental da espiritualidade. Durante a cristandade ocidental o eixo foi a Sexta-feira Santa, a maior festa celebrada pelo povo. A espiritualidade estava concentrada ao redor da expiação pelos pecados. A própria eucaristia foi entendida durante toda essa época como oração de sufrágio pelas almas do purgatório. No centro da figura de Jesus estão a paixão e a cruz, então os grandes símbolos da cristandade. Isto penetrou profundamente na mente e no coração do povo católico, e ainda foi acentuado pelas Igrejas da Reforma.
Doravante, o eixo da espiritualidade deverá ser a ressurreição, ou seja, a vitória da vida, apesar da morte e do pecado. Ainda não sabemos qual será o eixo da espiritualidade do novo Papa. Não sabemos se entrará na mentalidade da nova cultura ou se procurará restaurar a espiritualidade medieval.
Por outro lado, com relação ao nascimento de um novo poder, o poder econômico das multinacionais, do sistema financeiro mundial e da formação de uma nova burguesia, o magistério mostrou-se bastante tímido e reservado. Ninguém se sentiu atingido por suas condenações muito vagas. Deu-se, e ainda se dá, a impressão de que a Igreja não quer entrar em conflito com os novos poderes e prefere uma aliança com eles, embora de modo discreto, para não escandalizar os fiéis. Acha que poderá acomodar-se à economia, embora rejeite o conjunto da nova cultura.
4. A crítica da instituição eclesiástica
A crítica das instituições não podia deixar de lado as instituições eclesiásticas. A crítica das instituições que se manifesta claramente desde os anos 70 obriga-nos a fazer uma distinção que não tinha sido feita antes dessa data. Ela ainda está ausente no Concílio Vaticano II. Quando este fala da Igreja, fala ao mesmo tempo da instituição católica romana e da Igreja como mistério de Deus, como realização presente do reino de Deus. Não faz a distinção. Fala como se todo o aparelho institucionalizado e burocratizado da instituição eclesiástica pertencesse à essência da Igreja. Ora, tanto a história, como as ciências humanas, especialmente a sociologia, mostram que todo esse aparelho é uma construção histórica, que variou bastante no decorrer dos tempos e que foi definido a partir de empréstimos feitos a outras instituições que pertenciam às culturas nas quais a cristandade tinha entrado. A instituição mudou e ainda pode mudar, inclusive deve mudar, porque já não constitui uma ajuda para a evangelização, mas, muitas vezes, um obstáculo.
Começaram a manifestar-se movimentos críticos, sobretudo a partir dos anos 70. Antes dessa data, prevaleceu a idéia de que o Concílio Vaticano II tinha trazido as respostas às preocupações do povo de Deus. A partir dos anos 70 a revista Concilium mudou sua orientação: fez-se cada vez mais crítica, sendo porta-voz do pensamento de vários movimentos e de muitas pessoas na Igreja católica em contato com a nova cultura.
A essas críticas feitas à instituição a hierarquia respondeu até agora com um silêncio completo. Ela ignora ou finge ignorar essas reivindicações.
Diante da crítica à instituição, João Paulo II respondeu voltando à grande disciplina. A resposta dele foi restaurar tradições, usos, costumes, devoções anteriores ao Vaticano II e que tinham perdido prestígio ou caído em desuso. O Papa quis restaurar o sacramento da penitência por confissão auricular ao sacerdote, embora essa disciplina tivesse sido introduzida já numa fase bem adiantada da Idade Média e tivesse sido ignorada na Igreja durante quase 12 séculos. Tudo isso, num ambiente de rigor na doutrina tradicional, na liturgia e em toda a organização institucional, declarando terminada a fase da experimentação.
Desta maneira, João Paulo II reiterou o que aconteceu no século XIX depois da Revolução Francesa. A Igreja restaurou o passado a partir da classe dos camponeses. Muitos missionários dedicaram-se a evangelizar o campo e os camponeses ainda eram a grande maioria da população. No meio rural foi possível reconstituir um fragmento de cristandade, ainda que sempre em conflito com a sociedade dominante. A atitude da instituição para com a modernidade foi sempre mais de rejeição, até atingir um ponto culminante no pontificado de Pio X.
Esta nova cristandade não podia deixar de ser frágil, ainda que não se soubesse naquele tempo. Não se podia prever a imensa migração do campo para a cidade. No entanto, era previsível que era perigoso concentrar a Igreja numa classe social que começava a diminuir, e alguns católicos avisaram, porque tinham visto o perigo que havia em rejeitar toda a modernidade. Havia nela valores positivos, que era perigoso atacar. Durante todo o século XIX a atitude dominante foi de rejeição. O preço foi a perda de toda a classe intelectual e das pessoas que tinham estudado, e a perda da classe operária. Quando, finalmente, com João XXIII a Igreja aceitou os princípios da declaração dos direitos humanos, já era tarde demais. A imensa maioria dos católicos já tinha saído.
Até os anos 50 do século XX, a América Latina viveu na dependência cultural da Europa. Foi assimilando a luta contra a modernidade nos seus diversos aspetos, e uma pequena classe operária nasceu quase sem presença da Igreja. Também na América Latina a classe letrada se afastou da Igreja. As mulheres permaneceram fiéis, porque elas não podiam estudar. Quando se lhes abriu a porta das universidades, elas reagiram como os homens. Acharam a Igreja uma instituição respeitável e poderosa entre a classe dirigente, mas sem valor para sua vida pessoal e sem relevância para seu pensamento. Embora menos profunda do que na Europa, a separação entre a Igreja e a classe letrada ainda tem repercussões fortes no mundo universitário e intelectual atual: predomina uma atitude de indiferença. Poucos e poucas acham que poderiam encontrar na Igreja algo importante para sua vida. São cristãos fiéis à mensagem evangélica, mas sem contato com a instituição.
Hoje em dia, a estratégia que consiste em condenar a nova cultura não tem mais o apoio de uma classe de camponeses, porque os camponeses foram para as cidades e os que ainda ficam estão em contato permanente com a cultura urbana mediante a TV. João Paulo II proclamou que os agentes da nova evangelização seriam os chamados movimentos, isto é: Opus Dei, Legionários de Cristo, Focolarinos, Comunhão e Libertação e outros semelhantes. Estes constituiriam uma tropa de choque, mas sem massa para seguir. É uma base muito estreita para fundar uma nova neocristandade.
Quais são as críticas que se fazem à instituição?
Em primeiro lugar, há a crítica da burocratização. Em todos os níveis, o clero ficou burocratizado. A agenda dos padres, dos bispos e da Cúria Romana está cheia de reuniões, seminários, congressos, programação, relatórios, documentos, assessoria, projetos. Naturalmente, tudo isso fica no papel. A burocracia enuncia tudo o que deveria ser feito, mas sem nunca dizer quem vai fazer. Por isso, tudo fica no papel. Isto não importa para a burocracia. Pois a burocracia procura atender e agradar a seu chefe, muito mais do que aos “clientes”. O que importa com toda essa atividade feita de palavras é que se digam coisas que agradem ao chefe. É preciso esconder os problemas, fazer demonstração de otimismo, mostrar que os problemas estão sendo resolvidos. Qual é a finalidade de qualquer burocracia? Sobreviver, crescer, garantir seu futuro e aumentar seu poder. Uma burocracia tem sua finalidade em si mesma. O que acontece lá fora, no mundo, no meio dos homens e das mulheres, não importa muito. Basta evitar que as críticas cheguem até os ouvidos do chefe. Cresce na Igreja a impressão de que tudo o que o clero faz, desde a Cúria Romana até a casa paroquial, é totalmente irrelevante e artificial, e permanece longe da realidade humana. A burocracia constituiu-se num corpo autônomo e independente. A burocracia eclesiástica tornou-se seu próprio fim.
Um publicista francês do século XX, Charles Maurras, fundador do movimento direitista chamado L’Action Française, era agnóstico. Mas um dia declarou que felicitava a Igreja romana, que tinha sido capaz de purificar o cristianismo do perigoso fermento do Evangelho. Na prática, há casos em que, de fato, a burocracia eclesiástica serve para evitar que o fermento perigoso do Evangelho possa penetrar.
Em segundo lugar, apesar da concessão feita no novo Código de Direito Canônico, a Igreja mantém nas cidades a estrutura obsoleta da paróquia. O clero está sendo preparado para atuar dentro do quadro paroquial. Os próprios religiosos estão integrados em paróquias. Ora, estruturalmente, a paróquia é feita para conservar, ajudar, promover os que participam do culto, as pessoas que pertencem à pequena minoria dos que já estão no templo. A paróquia vive em função do templo, ainda que diga o contrário. Em lugar de preparar os cristãos para evangelizar a sociedade, ela se fecha sobre a minoria fiel às instituições do passado.
A paróquia não assume as fábricas nem os supermercados, nem as escolas, nem os colégios, nem as universidades, nem os hospitais, as instituições esportivas, culturais, de diversão, nem os meios de comunicação da cidade. Ela está organizada ao redor dos sacramentos e das festas litúrgicas. Nem sequer consegue organizar a catequese dos adultos, menos ainda sua formação missionária. Ela concentra as energias dos fiéis no próprio templo, em si própria. A Igreja está claramente a serviço de si própria. Não se pode negar as excelentes intenções de muitos párocos, toda a imaginação para fazer uma paróquia missionária. O problema é estrutural. Já foi denunciado por Santo Tomás de Aquino. Depois de 8 séculos ainda não se deu a solução. A conseqüência é um povo passivo, incapaz de dar testemunho na sociedade, fechado em si mesmo, numa espiritualidade de pura interioridade.
No entanto, na América Latina, houve uma experiência básica que podia ter dado uma resposta. Foi a experiência das CEBs. A experiência continua, mas não foi adotada oficialmente pela Igreja. Não se lhe deu nenhum estatuto oficial, e as CEBs permanecem como algo estranho e frágil, porque qualquer pároco ou qualquer bispo pode desfazer um trabalho fecundo de dezenas de anos.
As CEBs que ainda subsistem permanecem subordinadas às paróquias, na dependência dos párocos. Acontece com elas o que aconteceu com a Ação Católica em muitos paises: a subordinação à paróquia é uma esterilização de fato. Os movimentos de Ação Católica, ou não se submeteram à ordem paroquial e foram condenados como no caso da JUC, ou se integraram e foram absorvidos, ou permaneceram como grupos pequenos semiclandestinos. As comunidades devem adotar o programa paroquial e acabam dedicando-se primeiramente ao culto e às festas religiosas, embora conservando o discurso das origens. O modelo inicial de comunidades inseridas no mundo popular e comprometidas com o mundo popular foi desfigurado. O novo clero não o adota. No entanto, a autonomia das pequenas comunidades integradas numa pastoral da cidade e não da paróquia é o único caminho. Não adianta determinar que doravante a paróquia seja missionária. Estruturalmente, ela não pode ser missionária, porque não está organizada em função da cidade, mas em função de seu próprio crescimento.
Em terceiro lugar, a crítica que se faz à Igreja como instituição é que ela mantém um sistema de poder obsoleto e ineficaz. É o famoso problema do clero. O clero monopoliza todos os poderes e está mandando de modo absoluto, unicamente porque foi enviado pelo bispo sem que os leigos pudessem intervir em nada. A cada 5 anos eles têm que se subordinar aos humores do novo pároco. A razão é administrativa. O bispo faz as nomeações em função dos problemas do clero e não em função de sua capacidade evangelizadora. O padre luta para conquistar uma autoridade que se vai perdendo.
O padre não foi preparado para estar no meio do mundo, dando testemunho do Evangelho. Foi preparado para administrar uma paróquia conforme as tradições religiosas. Alguns conseguem ir além da formação recebida, mas a maioria fica com o que aprendeu no seminário.
Já escrevi muito sobre o problema do clero. Não vou repetir o que já disse muitas vezes. Também não creio que o novo Papa tenha a menor disposição para mudar alguma coisa no clero e na estrutura de poder na Igreja.
Há muitos leigos e leigas, que trabalham efetivamente como missionários e missionárias, geralmente sem mandato, sem reconhecimento oficial, sem poder, e gratuitamente. São heróis que conseguem tempo e energia e se dedicam à missão com muita generosidade e gratuidade. Haveria muito mais homens e mulheres, se se lhes fizesse um apelo, oferecendo-lhes reconhecimento, confiança, autonomia, porque muitos não querem ser simplesmente auxiliares do padre. Quantos milhares de pastores evangélicos surgiram no Brasil ultimamente que se dedicam à pregação, à missão, com entusiasmo, sacrifício e dedicação! São mais de 100.000. Muitos teriam podido ser missionários na Igreja católica, se se lhes tivesse oferecido essa missão, confiando neles.
No futuro, os ministros serão reconhecidos e identificados pelas comunidades, graças às suas qualidades de profeta e a seus dons espirituais. Em cada cidade haverá um núcleo de pessoas permanentes, conhecedoras dos diversos aspetos da vida da cidade, que poderão aconselhar e organizar atividades públicas comuns, reunindo a grande comunidade.
Uma quarta crítica tem por objeto a estratégia, que consiste em educar os cristãos quando são crianças. A catequese se dirige às crianças. Desde o século XIX a pastoral da Igreja concentrou-se nas crianças. Por isso se deu prioridade absoluta às escolas católicas e à catequese infantil. Desta maneira, os adultos cristãos parecem infantilizados. Do cristianismo eles sabem o que lhes foi ensinado quando eram crianças. Nunca aprenderam o que significa ser cristão como trabalhador, cidadão, pai ou mãe de família dentro das circunstâncias e dos obstáculos reais da vida.
O resultado é que os meninos educados na catequese católica se tornam evangélicos quando ficam adultos, porque a mensagem dos evangélicos é para os adultos e não para as crianças. A pastoral concentrada nas crianças não tem eficiência na nova sociedade. Já acabou fracassando no século XX.
5. O Evangelho e a instituição
A tarefa principal da teologia vai consistir em identificar o que é do Evangelho, o que foi proposto por Jesus e em que constituiu a instituição atual, em função de desenvolvimentos históricos. Jesus nunca pensou na Igreja na sua forma atual. Isto não quer dizer que o que existe agora seja bom ou mau. Mas muitos elementos se devem à influência de movimentos culturais e de religiões não-cristãs, porque as religiões não-cristãs tiveram uma influência profunda durante toda a cristandade.
No mesmo sentido escreveu Hans Küng, quando propôs que se destacasse o núcleo básico do cristianismo. Esse núcleo somente pode ser o que nos vem do próprio Jesus.
Durante 1000 anos, sobretudo desde o século XIV, a teologia foi apologética e dedicou-se a demonstrar a identidade entre todo o aparelho institucional da Igreja, os dogmas, a moral, a liturgia, a organização eclesiástica com o Evangelho. Mostrou a continuidade. Procurou demonstrar primeiro que tudo estava no Evangelho e, quando os estudos históricos tornaram essa posição insustentável, defendeu o tema da homogeneidade, ou seja, do desenvolvimento homogêneo. A teologia oficial procurou mostrar que todo o sistema institucional tinha por finalidade e por efeito um melhor entendimento do Evangelho. Teria sido um esclarecimento do Evangelho que ainda era confuso.
Ora, todas essas explicações são puramente gratuitas. Serviram para manter a continuidade na cristandade. Mas hoje em dia devemos constatar que o Evangelho é mais claro do que todo o sistema que se construiu sobre ele com a pretensão de explicitá-lo melhor.
Esta teologia apologética esteve a serviço da hierarquia, para defender o status quo da cristandade, mas impediu que a Igreja desse uma resposta adequada aos desafios da modernidade. Essa apologética, que prevaleceu até o Concílio Vaticano II, ainda não desapareceu, sobretudo nas inumeráveis faculdades de teologia situadas em Roma. Para a evangelização do mundo e mesmo do povo cristão, essa teologia foi estéril. Mais ainda: está condenada a ser estéril. Não vai converter nenhum pagão, nem sequer os católicos. Foi a base dos catecismos, mas os catecismos não formaram cristãos adultos e maduros.
Essa apologética forneceu o material que permitiu que o magistério desse resposta negativa aos gritos que surgiram do meio da cristandade durante 1000 anos, pedindo reforma. Em cada geração houve católicos que não puderam aceitar a instituição, porque viam nela uma contradição com o Evangelho. Esse debate deu origem às chamadas “heresias”, que, no fundo, eram todas formas de contestação da instituição. Houve muitos cismas e muita repressão, mas nunca houve aceitação unânime das posições defendidas pela teologia oficial.
Uma vez que nossa tarefa será anunciar o Evangelho a todos os seres humanos sem posição de força, sem poder contar com uma imposição, essa teologia está completamente fora de foco. Não conseguiremos com ela conquistar novos membros para a instituição. Evangelizar é provocar a iluminação dos corações e das mentes, não pela força de uma instituição, mas pela revelação divina que se manifestou em Jesus.
O princípio da nova teologia é que a Igreja está subordinada ao Evangelho e não o Evangelho subordinado à Igreja. Durante a cristandade o poder eclesiástico sustentou que o sistema institucional era a interpretação fiel e a expressão atual do Evangelho. Na prática, a teologia serviu para demonstrar que a Bíblia apoiava o sistema eclesiástico católico, para subordinar o Evangelho à instituição. Agora, a tarefa é diferente. Trata-se de descobrir o que é realmente revelação divina, separando-a de todos os elementos que foram acrescentados.
Tudo o que foi acrescentado teve um papel histórico, positivo ou negativo. Muitos elementos entraram por influência de outras religiões, ou por razões políticas ou culturais do tempo. Podem ter tido em efeito positivo ou negativo e provavelmente algo de positivo e algo de negativo. O problema é que as circunstâncias mudaram e muitos acréscimos que foram úteis no passado aparecem como incompreensíveis e inassimiláveis na atualidade
Quando falamos do Evangelho, queremos pensar naquilo que vem realmente de Jesus. Há nos próprios evangelhos acréscimos que procedem das comunidades, e há dentro da cultura judaica em que Jesus se expressa vários elementos de mitologia. Não podemos conservar essas mitologias dentro do núcleo central.
Claro está que o povo cristão precisa de instituições: precisa de crenças definidas, de ritos e celebrações, de comunidades e de organização das comunidades. Precisa de ministérios organizados. Podemos inclusive pensar que precisa de mitologia. O desafio é que essas instituições ajudem efetivamente a introduzir o Evangelho na vida. Não podem ser consideradas como definitivas, irreformáveis, mas devem deixar lugar para outras expressões institucionais quando os tempos mudaram.
Da mesma maneira os cristãos precisam de sinais de identificação. Precisam realizar gestos significativos, pronunciar palavras significativas, o que lhes permite renovar a consciência de pertencer a um povo, o povo de Deus. Todos os povos têm sinais de identidade e o povo de Deus também. Ora, esses sinais devem ser compreensíveis e ter um conteúdo, não ser puramente gestos mecânicos.
Na realidade, as grandes linhas de uma reforma da instituição já foram explicitadas muitas vezes nos últimos 30 anos. O problema é a vontade de mudança. Toda burocracia tem repugnância a qualquer tipo de mudança porque poderia provocar mudanças na própria burocracia e questionar a carreira dos funcionários. Todos desejam que não mude nada. Ora, a burocracia vaticana adquiriu uma força inaudita durante o pontificado de João Paulo II que não manifestou nenhum desejo de mudar qualquer coisa, a não ser acrescentar novos serviços burocráticos.
Há no povo cristão, em todos os níveis, uma aspiração a uma descentralização do poder romano. Porém, é justamente essa reforma que a Cúria vai impedir por todos os meios à sua disposição. Porque seria para ela uma perda de poder e uma supressão de empregos.
No entanto, o desafio está aí e não vai desaparecer. O sistema burocrático atual impede a evangelização dos povos e desestimula as Igrejas locais. Provocou a saída de milhões de católicos, sobretudo na Europa e na América Latina. Somente o Evangelho de Jesus Cristo pode converter.
6. A Igreja e o mundo
O Concílio Vaticano II proclamou que a Igreja está a serviço do mundo e não é um fim em si mesma. Sua finalidade é a salvação de todos os povos, da humanidade inteira. Ele reconhece a autonomia do mundo e reconhece que já não é a Igreja que dirige o mundo, como nos tempos da cristandade. Na Gaudium et Spes se renuncia ao projeto de cristandade. No entanto, as palavras dizem uma coisa e a realidade é diferente. Na prática, grande parte da Igreja age como se ainda houvesse ou como se se pudesse refazer uma nova cristandade semelhante àquela que havia na primeira parte do século XX.
Quando se fez a separação da Igreja e do Estado no Brasil os bispos não seguiram as recomendações do padre Júlio Maria, mas elaboraram um programa de reconquista do poder perdido, aproveitando as estruturas da sociedade republicana, de tal modo que a Igreja pudesse, na prática, refazer uma cristandade. Adotaram como prioridade a estratégia de sempre: evangelizar por meio das crianças e das instituições de educação. De fato, em pouco mais de 50 anos e sob a batuta do Cardeal Leme, grande admirador da nova cristandade da Europa, a Igreja reconstituiu no Brasil um grande poder. Diziam que 80% das elites brasileiras tinham sido educadas em colégios católicos. De novo, a Igreja tinha uma fachada impressionante. Houve, de novo, um entrosamento entre a Igreja e o Estado. A classe dirigente sentia que precisava da Igreja para manter o povo na submissão, e não poupava os favores e até os privilégios, dos quais foram beneficiárias as instituições católicas.
Quase todos os países latino-americanos tiveram uma evolução semelhante. O modelo era o Estado de Bem-estar da Europa Ocidental, ou seja, um capitalismo limitado por uma legislação social protetora dos trabalhadores e a conservação dos valores éticos tradicionais, sobretudo na família. É verdade que havia uma diferença no campo. Essa nova cristandade não questionou a estrutura do campo e os camponeses permaneceram ignorados e sem influência na vida das nações. O plano da CEPAL combinava com esse modelo porque impedia que o grande capital mundial tomasse conta da economia nacional, embora já tivesse realizado algumas entradas. Tudo parecia estar em paz. Os acordos entre os bispos e Juscelino Kubitschek eram o símbolo das harmoniosas relações dentro de uma neocristandade de fato, em que oficialmente a Igreja não tinha poder político, mas o tinha na realidade, graças a relações cordiais entre o poder religioso e o poder civil, nacional, estadual ou municipal.
Vieram os regimes militares. Salvo no Chile, onde Pinochet introduziu o novo modelo de globalização neoliberal desde os anos 70, os outros governos militares não mudaram basicamente a estrutura da sociedade. No Brasil, a Igreja assumiu a defesa das liberdades civis e dos direitos dos cidadãos, com um certo êxito. Pois, se comparamos os países, a repressão foi muito menor do que na Argentina ou no Chile ou nos países da América Central. Mas não houve muito conflito com relação à estrutura social e econômica. Na prática, os governos militares, salvo no Chile, permaneciam de alguma maneira fieis à concepção social da doutrina social da Igreja, prolongando a fase anterior. Praticavam um nacionalismo que os protegia contra a contaminação pelo modelo neoliberal. Os governos militares concordavam com a doutrina social da Igreja globalmente tomada. Por isso, os episcopados que colaboraram com os governos militares invocavam esse argumento.
Depois dos regimes militares, muitos, entre eles o clero e o episcopado, pensaram que se ia voltar ao sistema anterior, tão harmonioso, de relações pacíficas em que a doutrina social poderia fornecer a ideologia de regimes de Bem-estar social. Como novidade, o Estado de Bem-estar poderia inclusive integrar outros setores da população, por exemplo, os camponeses. Achavam que tinha chegado o tempo da reforma agrária. Um olhar sobre o Chile podia ter despertado mais desconfiança. Pois, no Chile, a democratização manteve o modelo neoliberal sem questionamento real, e a Igreja ficou calada: o partido democrata cristão era o governo e ficou responsável pela continuidade do modelo neoliberal.
Entrou o novo modelo de sociedade que se chama globalização, ou neoliberalismo – não importam os nomes. Tudo isso aconteceu na década dos 90, a “década vergonhosa” depois da “década perdida” dos 80. Os países latino-americanos abriram-se para o modelo neoliberal e integraram-se no império do neocapitalismo das grandes multinacionais. Tudo isso é bem conhecido.
O que tinha acontecido no Primeiro Mundo desde os anos 70 e, sobretudo, nos anos 80, entrou na América Latina nos anos 90 (no Chile nos anos 70), sem efeitos sensíveis sobre a relação Igreja-mundo.
Sob as aparências democráticas, o poder foi transferido dos Estados para os grandes complexos financeiros e as multinacionais. Os governos ainda se proclamam fiéis à doutrina social da Igreja, mas o novo poder econômico mundial ignora completamente essa doutrina. Seus critérios são diferentes. Entre o projeto da Igreja e o projeto do grande capital não há mais contato. O modelo econômico invoca a autoridade da ciência. E contra a ciência não se pode fazer nada.
Isto significa que a doutrina social da Igreja perdeu toda sua força. Ela se tornou irrelevante, porque ineficaz, sem efeito real na sociedade. É como se não existisse.
Por isso, estamos numa situação nova: uma Igreja do silêncio no meio de uma sociedade guiada pelo valor supremo do dinheiro em que as normas são a competitividade e o aumento do poder. Ninguém lê a doutrina social da Igreja, porque todos sabem consciente ou inconscientemente que ela perdeu toda a vigência. A Gaudium et Spes tornou-se irrelevante, sem conteúdo real, porque não tem aplicação.
Então a Igreja deve expressar seu testemunho de outra maneira. Hoje em dia, publicar documentos ou fazer discursos é irrelevante. Ninguém lê esses documentos, proclamações, apelos e assim por diante. Para o FMI, isso é irrelevante. O mundo atual precisa receber mensagens mais concretas, mas fortes, que consigam mobilizar a mídia e despertar a atenção e a emoção das massas.
O que faz um testemunho hoje em dia não são as palavras, mas os gestos. O gesto de Daniel que se nega a adorar a estátua de ouro. Onde está a estátua de ouro? Está em Davos, no clube de Paris, no FMI, na OMC. Está nas multinacionais. Os efeitos são inumeráveis: mercantilização do trabalho, redução do trabalhador a escravo da empresa, exclusão social da metade da população, favelização das grandes cidades e assim por diante. Não são pequenos escândalos isolados, mas fatos imensos. No entanto, esses fatos dizem respeito a seres humanos.
O que se espera são ações proféticas de grande visibilidade que manifestem a palavra de Deus na humanidade, de modo que ela possa, de fato, atingir multidões. Um exemplo pode iluminar essa necessidade. Quando o bispo de Barra, Dom Luís Flávio Cáppio, faz a greve de fome para chamar a atenção sobre as mentiras e as injustiças do projeto de transferência das águas do Rio São Francisco, toda a mídia comunicou a notícia e essa simples ação conseguiu provocar um debate na opinião pública nacional, suspender, e possivelmente para sempre, o projeto. Se a CNBB tivesse publicado um documento ninguém teria tomado conhecimento.
Nos tempos dos regimes militares houve muitos atos proféticos semelhantes, por exemplo, por parte de bispos de grande personalidade, no Brasil, no Chile e em muitos países. A morte de Dom Oscar Romero foi um sinal extraordinário. Naquele tempo os sinais destinavam-se aos povos dominados por ditadores militares.
Hoje em dia, o problema não são mais os militares. Pelo contrário, há militares que podem voltar à tradição nacionalista muito forte na história latino-americana. O inimigo é o sistema econômico ditatorial mundial centrado nos países do Primeiro Mundo.
Desde a entrada do novo sistema de comunicação na Igreja, toda a atenção da mídia foi orientada para a pessoa do Papa João Paulo II, que monopolizou o poder das imagens, porque era o único católico conhecido pela mídia. O Papa tinha o dom da comunicação e consciente ou inconscientemente queria ser a única estrela. O Papa conseguiu dar à Igreja uma visibilidade muito expressiva. Porém, globalmente, sua mensagem estava orientada e de modo bastante unilateral. Não era possível que uma só pessoa concentrasse em si mesma toda a missão de testemunho da Igreja.
A neocristandade criada depois da Revolução Francesa suscitou a criação de muitas obras católicas. Estas conseguiram manter no seio da Igreja os antigos camponeses de cultura rural tradicional. Não conseguiram integrar os operários, nem os intelectuais. Hoje em dia, também aparecem muitas obras “católicas”. Elas têm suas vantagens e seus efeitos positivos.
As obras católicas já não são sinais fortes no mundo de hoje. Antes, parecem ser ilhas, refúgios, entidades que permanecem desconhecidas ao resto do mundo. Servem para os cristãos tradicionais, mas não constituem um anúncio do Evangelho para a grande massa. Não existe mais nem sequer uma massa de camponeses de cultura tradicional. Não faltam casos em que a mensagem difundida por essas obras é que “a Igreja é rica”.
Além disso, elas fazem com que não haja presença católica nas instituições e na sociedade civil. Elas consomem as energias dos católicos mais preparados. Quem vai dar testemunho no meio do mundo? Em lugar de serem enviados como missionários, os católicos vivem juntos numa sociedade paralela sem contato com a grande sociedade. Se a Igreja continuar reservando para si mesma as melhores forças dos religiosos e dos leigos, quem estará presente e quem dará testemunho nas empresas, nos conjuntos habitacionais, nas favelas, nas universidades, nos colégios e assim por diante?
Hoje em dia existem milhares de associações e organizações de luta contra a sociedade neoliberal. Há espaço para os católicos. Pois em todos esses movimentos há necessidade de uma ideologia, de projetos concretos e de dirigentes honestos. Há espaço para que os católicos se manifestem como os servidores mais desinteressados, mais dedicados, mais honestos. Podem ser o sal da terra, a luz que na montanha atrai os olhares.
As exortações oficiais dizem que os leigos devem dar testemunho no mundo, mas como podem fazê-lo, se são mobilizados a serviço das instituições católicas? A Igreja prende muitas pessoas que poderiam estar no mundo. Há uma contradição entre o discurso oficial sobre os leigos e a prática institucional que não se interessa pelo mundo. A hierarquia deveria tomar uma atitude mais clara e dar orientações não contraditórias.
O desafio dos cristãos no mundo é hoje muito mais difícil do que antes. Pois o sistema é muito forte, muito autoritário. Dentro das empresas a vigilância é total. Ninguém pode contestar, ninguém pode protestar, ninguém pode criticar. Quem não se submete como escravo fica suspeito e pode ser eliminado. Por isso, dar testemunho cristão supõe heroísmo. Ao mesmo tempo é preciso ser prudente como as serpentes. Não existe liberdade de expressão. Ao mesmo tempo há uma campanha de lavagem cerebral para manipular as mentes e conseguir que todos se convençam que é preciso obedecer, que não há alternativa e que são muito felizes por estar na empresa. Todas as ciências humanas concorrem para submeter as mentes. A mídia, as instituições, o ambiente global da sociedade: tudo serve para desencorajar qualquer tentativa de mudança. Por isso, somente personalidades fortes, com convicção muito forte, poderão dar testemunho. A maioria ficará calada. A economia neoliberal tem a mesma força dos imperadores romanos. A pressão psicológica é forte. Na prática e de fato, a maioria cede e perde sua própria convicção.
Daí a necessidade de uma preparação e de um apoio muito forte. Sem formação muito profunda ninguém poderá abrir a boca na sociedade e todos repetirão as mentiras divulgadas pela mídia.
A paróquia não dá essa formação. Se quisermos evangelizar o mundo, precisamos tomar como prioridade a formação de leigos em todos os ambientes. Os melhores sacerdotes, os melhores religiosos e as melhores religiosas devem ser reservados para essa formação. Basta de formação para crianças. É melhor deixar paróquias sem pároco, pois leigos podem assumir quase todas as tarefas. Também uma primeira geração de leigos formados pode ser formadora. Mas isto exige 10 anos. Se não se tem a coragem de formar leigos que vão ter que lutar contra uma estrutura mais dura do que o Império Romano, porque submete as mentes, não haverá presença da Igreja no mundo, apesar de todos os textos e de todos os discursos bonitos.
Para tomar somente um exemplo, a corrupção existe em todos os níveis em todas as empresas. Este é um fato mundial e não tipicamente brasileiro. A mídia fala dos casos de corrupção na vida política, porque pode fazê-lo sem temer a repressão. Mas ninguém se atreve a denunciar os casos de corrupção nas empresas, na indústria, no comércio, no transporte, nas prisões, nas escolas, nos hospitais, nas administrações públicas, e até no futebol que agora é uma grande empresa. A regra é que todo mundo pratica corrupção. Como mudar isso? As leis não se aplicam porque todo mundo dá cobertura. Ninguém sabe de nada, ninguém viu nada nem ouviu falar de nada. Quem vai poder ser honesto e negar-se a entrar na corrupção? Precisa ser de uma energia sem par.
A vida atual é uma preocupação permanente para não perder o emprego, para quem já tem, ou para buscar um emprego para quem não tem, ou para achar biscates para sobreviver para quem já desistiu de buscar emprego. Entre todos existe uma competição. Para ter emprego é preciso agradar, bajular, e, sobretudo, ter boas relações. Nesse ambiente como manter o equilíbrio? Como viver serenamente com tais ameaças? Somente heróis.
A pressão social é tão forte que sem uma profunda mística não há maneira de se salvar. O clero não participa de tudo o que acontece na sociedade; está morando num lugar privilegiado e, por isso, não sabe o que acontece. A hierarquia não está consciente dos desafios da sociedade atual. Não adianta pensar que com o desenvolvimento essas coisas vão melhorar por si mesmas, pois no mundo desenvolvido esses problemas são mais fortes ainda.
Por isso, sem mística não se pode agir como cristão no mundo. Rahner já dizia que no século XXI a Igreja será mística ou não será. A formação paroquial não basta. Por sinal, quem vai ao culto, são justamente as pessoas que não vivem nessa pressão permanente.
Não há uma forma única de mística. Há uma grande variedade de místicas que vão surgindo. Sem uma vida em permanente presença de Deus, ninguém agüenta. Hoje em dia a mística não pode ser vivida num refúgio longe do mundo, se não quiser ser um privilégio e salvo algumas vocações muito excepcionais. Deve ser vivida na sociedade, como nos primeiros tempos, isto é, numa sociedade contrária ao Evangelho, alheia aos valores morais, numa sociedade sem amor e em que todos são rivais e todos podem ser machucados, despedidos, abandonados.
A economia neoliberal, a forma como se faz a globalização, não é inevitável. A superação deste sistema é a grande meta do século XXI. Não se fará em poucos anos. Há um despertar, mas ainda falta a participação dos cristãos nesse despertar. Os homens e as mulheres que ali estão já praticam vida evangélica. São da Igreja, mas precisam reconhecer-se, conhecer-se e mutuamente solidarizar-se em vista de mútuo apoio. Este será o papel das pequenas comunidades. Sem pequenas comunidades os heróis irão se cansar e desanimar. Com uma Igreja viva, os heróis podem multiplicar-se e mudar este mundo.
Há uma terrível contradição entre a aspiração à liberdade que nasce na revolução cultural dos anos 70 e o sistema de economia mundial que exerce uma ditadura nos corpos e nas mentes. Quem estiver na frente da luta para superar essa contradição dará um sinal. A mensagem de Jesus não será difundida a partir do poder, mas a partir de pessoas heróicas que se põem à frente do combate somente com a força e Deus.
- José Comblin é Teólogo, sacerdote, reside na Paraíba, Brasil. Este artigo foi originariamente publicado na REB-Revista Eclesiástica Brasileira 265 (Janeiro 2007) 36-58.
https://www.alainet.org/pt/articulo/120479?language=en
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