Para os inimigos: a lei!

30/05/2007
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Atribui-se a um político da Velha República a frase famosa: “Para os amigos, tudo! Para os inimigos: a lei!”. Quando as oligarquias da região fazem as leis, certamente não pensam em aplicá-las a si mesmo. Analisando o avanço dentro da legalidade dos Partidos Socialistas e Social Democratas no final do século XIX, Frederico Engels chamava a atenção para a necessária reação das classes dominantes européias contra este ascenso, questionando a legalidade democrática pela qual tanto haviam lutado. Seu grito de guerra, segundo Engels, seria o mesmo de Thiers diante do avanço da Comuna de Paris: “¡la legalité nous tue!”, “a legalidade nos mata!”.

Lamentavelmente, a história nos deu vários exemplos desta atitude. Depois do avanço dos partidos socialistas, as burguesias européias convocaram a guerra em 1914 exigindo destes partidos o voto em favor dos créditos de guerra. Aqueles que se recusaram a votar neles, foram colocados na ilegalidade e até foram mortos em estranhas circunstâncias, como Jaurés, na França, Rosa Luxemburgo y Karl Liebknecht na Alemanha.

Mas a demonstração mais clara desta atitude política foi a abertura dos liberais italianos, e posteriormente alemães, à aventura nazi-fascista. Eles abriram o caminho, junto com os conservadores, a Mussolini e Hitler para que ocupassem o poder, e permitiram todas as ilegalidades que criaram um regime de exceção nestes países. Sem falar da entrega de todas as burguesias européias à ocupação nazista e da criação de regimes de exceção fascistas em toda a Europa sob a ocupação Alemã.

Na América Latina vimos, nos anos 60 e 70, a entrega dos governos e até o patrocínio aberto dos golpes militares, que conduziram aos regimes militares para fascistas em toda a região, com raras exceções. O comportamento dos liberais e de toda a grande imprensa da região, com raríssimas exceções, foi exemplar: defenderam a “justiça” do uso da força contra os regimes “populistas” ou “pró-comunistas” ou o que fosse aos seus olhos e dos seus leitores e seguidores, passível de justificar a quebra da legalidade.

“A legalidade nos mata”, quando, respeitando-a, chegam ao poder governos de origem popular, e a través do voto impõem políticas contrárias aos interesses das classes dominantes. Esta é uma lei sociológica comprovada pelos fatos históricos. Sem falar na célebre frase de Franklyn Delano Roossevelt: “Trujillo é um filho da puta, mas é nosso filho da puta”. Princípio que implementou e alimentou tantas ditaduras na região (Batista, Pérez Jiménez, Somoza e outros tantos).

Esta política encontra, contudo, limitações crescentes na região. Discutimos em vários trabalhos os motivos estruturais desta nova situação. Podemos resumi-los na constatação da crescente perda de hegemonia dos Estados Unidos e na crise definitiva das velhas oligarquias latifundiárias na América Latina. Elas perderam particularmente seu controle ideológico sobre os militares, que ficaram cansados de servir os inimigos dos seus próprios povos.

Creio que isto explica o fracasso da campanha pela manutenção pelo governo da Venezuela da concessão do canal de televisão à empresa RCTV. Ao invés de apoiar a expectativa dos concessionários de manter sua concessão, a campanha foi desenvolvida colocando em questão o “direito” da não renovação desta. Ao acusar o governo de totalitário ou autoritário e de não respeitar a liberdade de imprensa ao exercer um princípio constitucional, a campanha colocou-se no terreno da ilegalidade. Se levarmos em consideração o passado desta empresa e, particularmente, sua inquestionável e ativa participação no golpe de Estado de 2002, vemos que seu respeito à legalidade é bastante duvidoso. É interessante ler a afirmação tranqüila da articulista do jornal O Globo de que participar em golpes de Estado não é motivo para suspender a concessão do Canal. Nada mais evidente da posição conspirativa e antidemocrática da grande imprensa.

É muito perigoso que a grande imprensa do continente esteja patrocinando e apoiando esta atitude completamente ilegal. Durante os anos 60, tentou criar-se uma Lei de Imprensa no Brasil, que transformava em automática a renovação das concessões de canais de televisão e rádio. Os demais setores empresariais, interessados em posteriores concessões, lideraram uma campanha contra essas absurdas pretensões. O que pretendem estes senhores: a absoluta falta de regulação em um setor tão fundamental? O direito de pedir e apoiar a derrocada dos governos que eles não apóiam? Ou pretendem por acaso o direito de distorcer os fatos para apoiar um golpe de Estado tão inconstitucional como o de 2002?

Até agora estas atitudes golpistas foram perdoadas pelos golpes de Estado bem sucedidos. Mas, e se os golpes não fazem mais vitoriosos? Não seria melhor defender a legalidade ao invés de gritar pelo seu abandono? A oposição está pagando muito caro pelas suas atitudes ilegais e golpistas na Venezuela. Os tempos são outros. As oligarquias devem estudar bem suas atitudes. A prepotência não é boa conselheira.

- Theotonio dos Santos é Diretor Presidente da REGGEN (www.reggen.org.br), professor visitante da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
https://www.alainet.org/pt/articulo/121468
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